31.1.05

"Um Imenso Caldeirão" (3)


Quarenta anos. Um pouco desgastados. Cabelos compridos, claros. Óculos. Uma pintura barroca. O decote, pronunciado, revelava uns seios descaídos, afastados. A mini-saia vermelha era um chamariz para as compridas e magras pernas que se equilibravam nos finos saltos altos dos sapatos de verniz igualmente vermelhos. Só tinha um pequeno saco desportivo, bem cheio. E uma carteira preta, coçada.

Ele vestia um amarrotado fato esverdeado. A gravata era feia e o nó estava lasso, o colarinho desapertado. Também nos quarenta, ainda tinha muito cabelo, apesar da ameaça de duas entradas. Por enquanto escapava às cãs. Estava mesmo atrás dela, na fila das bilheteiras.

A nota de dez contos escapou-se da mão dela, caindo. Baixou-se devagar, sem reparar que, mantendo esticadas as longas pernas, a saia subia, subia, subia. Eu também lhe vi as cuecas de renda preta. O homem atrás dela sentiu um desejo enorme de a agarrar, apalpar, possuir. Numa fracção de segundo passaram-lhe pela cabeça mil e um cenários anti-sociais. O condicionamento a que todos nós somos sujeito evitou que se mexesse. Só os olhos devoraram a visão que o excitou.

Depois de comprar o bilhete ela virou-se pelo lado errado e embateu nele. Sentiu-lhe o cheiro, o peito largo, a mão que lhe amparou o desequilíbrio. Olhou-o rapidamente e partiu. Partiu com o desejo de ir para a cama com aquele homem. Nada de sentimentos. Só sexo. Só sentir-se desejada. Possuída. Só ultrapassar as dúvidas que a idade lhe trazia.

Quando o comboio partiu ambos ocupavam o mesmo compartimento para a longa viagem.

Sozinhos.

Woody

Woody Allen realiza um filme por ano. Os críticos dizem sempre que é mais do mesmo, que a criatividade se esgotou e que já não são bons filmes.
Eu digo: é mais do mesmo, o homem consegue reinventar sempre o mesmo conceito, e cria personagens com uma profundidade que satifaz os amantes do cinema.
Quem viu um filme de Woody Allen viu todos. Mentira. As histórias podem ser previsíveis. MAs ninguém como ele sabe dar-nos personagens imperfeitos, com falhas de personalidade, problemas por resolver, inseguranças, neuroses e humor.
Melinda & Melinda é mais um porto seguro. Durante o tempo que estamos no escuro da sala entramos em comunhão com os personagens e reencontramos artifícios e situações talvez familiares. Mas, pegar num conceito, e dele fazer um drama e, simultâneamente, uma comédia romântica é um bom golpe de asa criativo. E, desta forma, temos dois filmes num só, que nunca se cruzam, mas seguem a par pois foi na mesma "realidade" que se basearam.
E, quando acabam, ficamos com vontade de ver o próximo. O próximo Woody Allen que certamente já estará filmado.
Até para o ano, Woody.

28.1.05

Semanada

Mais uma semana de trabalho que chega ao fim e o balanço é inseguro.
A pré-campanha avança sem rigor, contenção ou esperança. A classe política, ou a mensagem que consegue transmitir nos meios de comunicação social, perde-se em discussões estéreis. Muito barulho para nada, e desvia-se da discussão das soluções para os nossos males. O PR aparece no seu tom aborrecido de quem diz que já muito avisou mas nada aconteceu. "Um dia..." Um dia o quê? Quem tem medo do quê? O Sampaio não dá votos a ganhar a ninguém...
Santana e Sócrates fazem birra ao melhor estilo de meninos mimados por causa do debate que "ora se faz, ora não se faz, aqui, ali, em que canal..."
No PP já a mostarda chega ao nariz de alguns e vozes apelam ao afastamento relativamente ao PSD, porque isso custa votos. Tantos que nas sondagens de hoje o PCP e o BE estão claramente à sua frente. Na perspectiva de perder toda a pose e responsabilidade que andam a vender no seu "voto útil", arrefecem os ânimos e preparam-se para nova reclusão.
O PCP é o PCP.
O BE cresce e ganha responsabilidades. Porém, o seu discurso tem dificuldade a adaptar-se a um lugar muito para além "dos gajos do contra". E se chegarem aos hoje apontados 8% já ameaçam ser o 3º (!) maior partido.
No meio disto aparece Freitas do Amaral a defender a maioria absoluta do PS. Derivando para a esquerda já muita gente esqueceu quem delatava actividades e alunos suspeitos na Faculdade de Direito de Lisboa quando lá leccionava antes do 25 de Abril. Ou isso ou então há muita gente a não reparar que o PS, de esquerda só tem a expressão "socialista".
Ontem debateu-se a Justiça na TV e, ao que parece, tudo fazia lembra o Ricardo Araújo Pereira dos Gato Fedorento "falam, falam falam, mas não os vejo a fazer nada". Para ajudar o actual Ministro da Justiça fala como se não lhe coubesse decidir. Segundo li, PS e PSD até acham que foi um grnade passo a reforma da acção executiva. Só é pena que agora, pelo menos em Lisboa e no Porto, ninguém veja os seus processos de execução (ou seja, para cobrar quantias em dívida) a andar.
Mas animem-se as hostes. O Benfica e o Sporting jogaram a meio da semana e foi "um dos melhores derbys de sempre". Viva a bola, e o Carnaval vem já aí.
Passa o frio, falta a chuva, mas se Deus quiser em Agosto está sol e calor e vai tudo para as filas de trânsito a caminho das praias sobre-lotadas.
Acaba-se a semana e já Janeiro chega ao fim. O tempo voa e a vida estagna.
Mexam-se. Sacudam o pó, façam ondas e deixem o sofá vazio. Apanhem sol e até para a semana.

"Um Imenso Caldeirão" (2)

Não sei de onde veio. Só reparei nela quando se sentou ao meu lado. Tinha nas mãos o bilhete e o troco que se afadigava a guardar. Porém, e apesar do pouco movimento àquela hora, não a vira passar. Creio que era esse o seu problema. Ninguém a via passar.
Atentei nela com cuidado. Não era uma rapariga feia. Longe de ser deslumbrante, ou mesmo de ter uma qualquer característica chamativa, a verdade é que a suavidade do seu rosto e a luz do seu olhar transpiravam uma beleza diferente. Cuidada. Inteligente.
O guarda-roupa apagava-a. A normalidade descuidada tornava-a igual a toda a gente. A mochila devia ser um espelho do seu ser. Nada estava fora do lugar. Tudo simetricamente bem acondicionado, sem um desequilíbrio.
Assim que se sentou, depois de cuidadosamente recolher o bilhete e o dinheiro, fez aparecer um pequeno livro de bolso, preto, cartonado, onde começou a escrever. Mais uma pessoa tímida que se refugia num pedaço de papel onde congela o seu sofrimento. Para que não o esqueça. Para não perder a dor.
Passou a mão pelos compridos cabelos castanhos, rebeldes, dolorosos de pentear, e ergueu o queixo. Depositou o olhar em mim. Eu, que para aquele ser olhava fixamente, sentindo-me tão reflectido, não consegui esquivar-me. E durante segundos que pareceram horas estivemos olhos nos olhos.
Creio que ponderámos a hipótese de iniciar uma conversa. Mas como o outro não o fez, deixámos a oportunidade fugir.
Olhos nos olhos. Os dela não eram frios. Nem apaixonados. Eram olhos sofridos. Era o olhar de uma poetisa. Só podia ser. Uma mulher emotiva que sofre constantemente com os fracassos que não ousa conseguir. Alguém que desiste de começar, pois que o sonho, a expectativa, é sempre melhor que a realidade. Olhos nos olhos.
Aquele momento só findou quando duas raparigas entraram no átrio. O seu riso ouviu-se lá de longe. Nunca passariam despercebidas como aquela que se sentara à minha direita.
Pularam estridentemente até à minha companheira de banco que desviou a atenção para as recém-chegadas. Esboçou um sorriso que, sendo tão mentiroso, era tão natural. Um sorriso que ostentava de forma ligeira. O seu refúgio social.
Cumprimentaram-se. Gritaram. Guincharam. E saíram dali em direcção às bilheteiras. Três mochilas. Duas caóticas, outra uma perfeita obra de engenharia. Quando abandonaram o átrio em direcção à gare, ela olhou para trás. Mais uma hora que não demorou dois segundos. Olhos nos olhos.
Por detrás daquele sorriso havia dor.
Por detrás daquele sorriso ela chorava.
E mais ninguém o percebia.

Mas o que é que é isto?

Hoje pela manhã tinha no meu blog dois posts com o título "dropojump" e o texto de "teste, a ver se isto funciona". Estavam datados de ontem, 27.01.2005, pelas 7.50 pm.
Não fui eu quem os escreveu (entretanto apaguei-os) e não sei como foi que alguém acedeu ao meu blog.
Se o "penetra" está a ler estas linhas, agradecia que não repetisse a brincadeira. Levo o Blog muito a sério e não achei a mínima piada à intrusão.
Espero, sinceramente, que a integridade virtual deste blog se mantenha inviolada.

27.1.05

"Um Imenso Caldeirão" - (1)


Não sei como cheguei ali. Só sei que quando dei por mim, estava em Santa Apolónia a olhar maravilhado para os quadros dos comboios.
Na esquerda, as partidas; à direita, as chegadas. O fundo negro, as letras amarelas e rubras.
Hora; destino; comboio; observações.
Hora; procedência; comboio; observações.
Olhei... Olhei... vi as chegadas. E soube que tinha de esperar. Esperar por alguma coisa. Alguém. Alguém viria. Alguém viria.
Senti as paredes de pedra, o tecto feio daquele átrio. Senti o cheiro. O som. As pessoas. Senti a estação. Senti os autocarros lá fora. E sentei-me à espera.
Sentei-me a ver aquelas pessoas todas. Aquelas histórias que se cruzam num átrio pouco acolhedor. As pessoas. Feias, bonitas, lindas, horríveis. Mulheres atraentes, mulheres enjoadas, enjoativas. Machos latinos, "fatos", miseráveis.
Sentei-me e senti.
Um imenso caldeirão.

Edição de contos

Durante vários anos julguei-me escrevinhador. Coincidiu com a adolescência e com a vida universitária. Nesses anos de vida académica produzi muito, e ainda aí encontro do melhor que já escrevi. Depois, com o início da vida laboral, a criatividade foi abafada pelas exigências das funções que desempenho, e só agora ameaça ressurgir.
Porém, ao ler aquilo que julgo ser "do melhor que já escrevi" sinto que a escrita é mesmo um passatempo, um veículo, um escape. A menos que venha a melhorar grandemente, apenas poderei ser um "escrevinhador". Sim, porque ao contrário daqueles que são editados em Portugal e se apelam de escritores, eu entendo que não basta escrever um "livro" que alguém edita, ou dois, ou três ou dez, para se poder arrogar ao título de escritor. E muita porcaria se edita por aí.
Por isso, agora que tenho este veículo, este blog, há já mais de um ano, e que comecei com a brincadeira de ir editando uns contos mais recentes, decidi abrir o baú e partilhar com aqueles que regularmente me lêem nestas páginas alguns dos contos que escrevi no passado. Espero que não me julguem pretensioso. Se julgarem, não se dêem ao trabalho de ler.
Vou começar por "editar" algo que escrevi em 1995. Dei-lhe o título de "Um imenso caldeirão" e é estruturado em pequenos contos interligados pelo espaço e pelo narrador. Por isso, vou "editar" um conto de cada vez. Aos poucos poderão ler na íntegra algo que está a fazer 10 anos. Quem diria.
São essas as linhas que se seguem.

26.1.05

SABIA-SE



Ouviu o dia nascer filtrado pela dor. O som dos primeiros automóveis na avenida lá em baixo rompeu o torpor que cedo se instalara e lhe tolhera os sentidos durante toda a noite. A manhã, típica de nevoeiro lisboeta, revelava um cenário caótico ao longo da encosta degradada. Em ambiente pós-holocáustico, tendas semi-erguidas, barracas improvisadas, corpos, imundíce, cães a vaguear de focinho colado ao chão. Entre todos, entre tudo o denominador comum que não se via, não se ouvia ou cheirava. Sentia-se. Pressentia-se. Sabia-se.
Assim que concebeu uma ideia esta revelou-se incontornável. Onde arranjar o próximo chuto.
Apalpou os bolsos do impermeável e encontrou uma mão-cheia de nada. Olhou à volta e nada viu. Mais uma noite dormida ao relento ao sabor do veneno. Com esforço, afastou o frio, ergueu-se e caminhou.
Não sabia bem para onde ia. Sabia apenas que precisava de dinheiro para sentir novamente o esquecimento.
Coçou-se e desejou um banho, uma cama, uma refeição quente e com direito a sobremesa. Tudo isto implicava um mundo pretérito, exigente, ao qual renunciou responsabilizando pela sua actual situação. Desejou nova dose, quanto mais não fosse para afastar da cabeça o passado, o qual não queria recordar. Agora prefere viver o dia, o presente, a dor, o desejo de alienação, a viagem.
O esforço de subir a encosta até à estrada foi demais para o corpo fragilizado. Ofegante, sentou-se contando as batidas aceleradas do coração que ecoavam na cabeça. A seu lado passou, rebolando com o vento, um jornal. Datava de uma semana atrás. Agarrou-o e leu os títulos. Para si, aquelas eram notícias tão frescas com as que tinham sido impressas pela madrugada.

24.1.05

TEAM AMERICA – The World Police


Trey Parker e Matt Stone, os criadores de Southpark, os desenhos animados para adultos com um humor ordinário, violento, corrosivo e sem preconceitos, fizeram mais uma longa metragem. Mas, desta feita, deixaram de lado o desenho e abraçaram a arte das marionetas.
Como os próprios dizem, numa altura em que a nimação gráfica elaborada por computador permite resultados visuais espectaculares, pretenderam regrassar ao mais básico. Filmar em "stop and go motion" (em que cada fotograma corresponde a um minúsculo movimento dos bonecos, sendo que cada 24 movimentos dão apenas um segundo de imagem) era demorado. Mas com bonecos movimentados por fios em tempo real, à escala tudo se torna mais fácil.

Imaginem-se a ver um teatro de marionetas. Tem a sua graça. Agora, dêem às marionetas cabeças electrónicas que permitem um melhor controlo do movimento, bem como da boca e olhos. E ponham-nas em cenários gigantescos, com equipamento à medida.
E interpretem um argumento delirante, repleto de violência, sexo, linguagem obscena, cheio de lugares-comuns, referências à cultura actual e à insanidade que assola os governantes e os que imaginam os Estados Unidos como a polícia do mundo.
Com este Team America ficaríamos muito mais seguros, ... desde que "os maus" não viessem para perto de nós.

O filme é delirante. Tem momentos brilhantes e corrosivos que despertam aquele nosso lado negro e mauzinho, acompanhado pelo riso, pela gargalhada. Tem coisas tão grotescas que têm mesmo que ser boas.
Mas convém avisar: não é por ter bonecos que é para crianças (está classificado para maiores de 16 anos). E não é para pessoas sensíveis. Uma pista: se não acham piada ao Southpark, é melhor não gastarem dinheiro no bilhete. Outra pista: está em exibição em poucas salas. Se querem vê-lo, não se atrasem.

21.1.05

Imagens


(fotografia de Urso Polar)




(fotografia de Urso Polar)

20.1.05

Casino e Direitos de Autor

Os arquitectos Paula Santos, Miguel Guedes e Rui Ramos, que conceberam o Pavilhão do Futuro da Expo 98, hoje integrado no Parque das Nações, lograram obter decisão cautelar do Tribunal que obriga a Estoril-Sol a parar as obras de alterações em curso naquele edifício.
Como é sabido, a Estoril-Sol está a instalar naquele local o futuro Casino de Lisboa. Porém, iniciou obras profundas no edifício sem autorização dos arquitectos que o conceberam.
A questão é bastante interessante, quer socialmente, quer do ponto de vista do Direito. Está em causa a circunstância do fruto de um trabalho intelectual de natureza criativa, como seja um projecto de arquitectura, ser passível de conter direitos de autor, protegidos por lei. E, não é por estarem as obras autorizadas por licença camarária que tal questão fica prejudicada, pois que as Câmaras não têm qualquer poder de apreciação da matéria.
Mais interessante se torna a questão quando o projecto inicial, instalado na Expo 98 tinha carácter efémero e estaria sujeito a demolição no final da exposição. Porém, o edifício manteve-se ao longo dos anos, e hoje a Estoril-Sol, ao invés do demolir e construir de raiz um edifício para o Casino, decidiu "reconverter" o projecto. As obras em curso para a instalação do novo Casino de Lisboa vão alterar fachadas, que terão um revestimento e interior diferentes, embora mantenham a estrutura inicial do edifício.

É aqui que assenta a reclamação dos arquitectos e creio que com toda a razão. Como disseram em declarações ao Público, as obras vão corromper uma obra intelectual protegida, sem que os seus criadores tenham autorizado. Quando se contrata um arquitecto para conceber a nossa casa, e se lhe paga ao receber o projecto final, estamos a comprar o projecto, mas o arquitecto não abre mão dos seus direitos enquanto autor. E pode vir a reclamá-los se se aperceber da corrupção ou subtracção da sua criação.
Vir a Estoril-Sol alegar que a Parque Expo lhes garantiu que nenhuns direitos impendiam sobre tal terreno e edifício é inútil, pois falamos de direitos legalmente consagrados, para além das relações entre as partes do negócio da compra e venda.
A Estoril-Sol podia ter demolido o edifício e não o fez. Quis aproveitar a "obra". Então, das duas uma: ou envolvia os seus criadores na reconversão; ou deles obtia o consentimento para as alterações.

Esta é uma questão que vai correr os seus termos no Tribunal. A providência cautelar foi inicialmente decidida apenas ouvida a posição dos requerentes. Agora vai ser sujeita a contraditório e, depois, pode o Tribunal manter a primeira decisão, alterá-la ou mesmo revogá-la. Seguir-se-ão os termos da acção principal na qual ficarão definitivamente resolvidas as questões substanciais do litígio, concedendo-se, ou não, razão a uma das partes.
Tenho que dizer que tenho muita curiosidade em saber como vai ser decidida. Porém, o mais natural é que, antes de pronúncia final pelo Tribunal, as partes cheguem a acordo e ponham fim ao processo por transacção.
A ver vamos.

CHUVA



Chovia copiosamente no calor de Julho.
Acordara durante a noite com o barulho da água a correr pelas telhas, a escoar nos algerozes, a cair no empedrado do passeio. E agora, já pela manhã, continuavam os céus a chorar, certa e constantemente, ensopando os recantos mais secos da cidade.
Os automóveis passavam levantando cortinas de água que as sarjetas, entupidas, não engoliam, inundando os peões mais desprevenidos que de punho erguido rogavam pragas aos condutores.
Por causa da chuva, as artérias citadinas estavam entupidas por coágulos motorizados que, impacientemente, buzinavam e lutavam para progredir sem colisões.
Teresa, de guarda-chuva aberto, caminhava para o metro. Levava debaixo do braço o jornal já molhado que comprara no quiosque do Sr. João. Nos lábios o sabor do café tragado no snack do Tó. Ninguém reparava que eram lágrimas que lhe molhavam a cara, e não apenas gotas de chuva.

19.1.05

Anos ’80 – 80 memórias (24)

GUERRAS

Na década de 80 qualquer conflito fazia temer uma guerra global. Como já abordei, numa das memórias anteriores, a Guerra Fria estava no auge, e o poder do arsenal nuclear constituia uma omnipresente ameaça, como rastilho de pólvora à espera da faísca.
Assim, os conflitos regionais eram palco para velados combates entre superpotências, e temia-se que pudessem degenerar ao ponto de levar alguma das superpotências a assumir uma contenda. O Médio Oriente era foco de constantes eventos bélicos mas, tal como hoje, a opinião pública estava anestesiada pelo já antigo hábito guerreiro daqueles povos. Os Soviéticos estavam no Afeganistão, afundando-se na incapacidade militar para resolver os problemas naquele país fronteiriço. Iraque e Irão guerreavam entre si, e o terrorismo dava passos aqui e além, desrespeitando quaisquer fronteiras.
Porém, guardo na memória, dois eventos bélicos que me fizeram pensar se não estaria a terceira guerra mundial à espreita.


Era ainda muito novo quando, em 02.04.1982 a Argentina, então governada por uma Junta Militar presidida pelo General Leopoldo Galtieri invadiu as Ilhas Malvinas, ou Falkland Islands para os Britânicos. Ainda assim, recordo alguma tensão no acompanhamento das notícias sobre eventos que ocorriam no Atlântico Sul, a 480 km da costa da Argentina e penso que muita gente sustou a respiração para ver o que iriam os britânicos fazer. Um envolvimento numa guerra por parte de um país tão próximo trazia à consciência riscos de uma generalização do conflito.
Até porque, algo que então não conseguia perceber, os EUA estavam entre os dois contendores, comprometidos por acordos com ambos. Por um lado a NATO ligava os EUA ao Reino Unido; por outro, um acordo com a Argentina, resultado de anos de intervenção, colaboração e manipulação na América do Sul, vinculava os EUA que, assim, se viam na incómoda posição de, falhando a diplomacia, terem que escolher um lado ou faltar ao compromisso com ambos.
A tensão foi crescendo até que, em 01.05.1982 as forças armadas britânicas iniciaram as operações de resgate das Ilhas. Envolvendo a marinha, com forças anfíbias e submarinos nucleares a guerra estalou e prolongou-se até à rendição incondicional da Argentina em 14 de Junho. Pelo caminho perderam a vida 655 argentinos e 236 britânicos. Margaret Tatcher recuperou as ilhas e ficou conhecida pela sua determinação e rapidez de decisão, mesmo contra os seus principais conselheiros.
Por causa de 12 km2 temeu-se uma guerra generalizada. Mas, quando os EUA assumiram o apoio aos britânicos, e nenhuma facção apoiou a Argentina era óbvio que esta viria a claudicar. Fê-lo, e pouco tempo depois o seu governo passou a ser civil, logrando afastar os militares do poder.

Outro conflito fez disparar a adrenalina de um puto, já de 14 anos, que já sonhava com guerra à medida que as via nos filmes. Séries de televisão como a "3ª Guerra Mundial", ou filmes como o "War Games" e "The Day After" aumentavam a ideia que, a qualquer momento, poderíamos ser vaporizados. Bastava que alguém perdesse a calma e entrasse em escalada.
Em 1986, uma bomba explode numa discoteca de Berlim e mata seis militares americanos. O atentado é ligado à Líbia, país com o qual os EUA vinham assumindo uma longa picardia pois já em 1981 caças norte-americanos tinham abatido dois caças líbios.
Desta feita Ronald Reagan assume como necessária a retaliação. Recordo-me perfeitamente. Foi no dia 15.04.1986. Estava na escola, junto ao campo de voleibol, quando chegou uma colega. É impressionante que recordo que estava sol, calor, e ela trazia uma t-shirt com a capa do "The pros and cons of hitch hicking", o disco de Roger Waters. Foi ela quem nos trouxe a novidade. Os americanos bombardearam a Líbia.
A chamada "Operation Eldorado Canyon" levou a morte a 101 líbios, entre eles a filha adoptiva de Khadafi. Aviões partiram de bases em Inglaterra e fizeram toda a viagem pelo mar, sem cruzar o espaço aéreo dos países de permeio, nomeadamente a França.
Mais uma vez ficámos suspensos. Então e agora? Os americanos não atacaram mais. E foi preciso esperar por 1988 e pela queda do vôo PAN AM 103 em Lockerbie para conhecer a reacção da Líbia.
Mais uma vez se via que, desde que URSS e EUA não se confrontassem directamente, tudo podia acontecer.

Apesar das guerras que corriam pelo mundo, em Angola e Moçambique, por exemplo, estas duas foram as que me fizeram vibrar, e sentir risco. Por isso são mais memórias de uma década cada vez mais longe.

URGÊNCIA


Estou bêbado.
Sentado no muro de uma casa que desconheço, rodeado por gente que desconheço. A noite está quente. Desconfortável mesmo, de tão abafada. Nem uma brisa se sente. O céu estrelado é um deslumbramento.
A garrafa de litro de cerveja que tenho na mão já há muito perdeu a frescura, mas insisto em consumi-la, como se a minha vida dependesse dos tragos que a espaços vou dando. Olho em busca do Eduardo que me arrastou para a festa e não o vejo. Procuro o meu irmão Beto, que ficou de aparecer, e constato a sua ausência. Sinto-me perdido.
No espaço que medeia entre a casa e este muro estão dois tipos a jogar "à bola" com um garrafão plástico de água. Em tempos ali terá sido o jardim, mas agora não passa de um terreiro. Sentados ao meu redor, personagens que hoje me apresentaram mas que por completo desconheço, falam com fervor sobre a relação do dono da casa com a Patrícia, mais uma ilustre desconhecida.
Meu Deus!, como vim parar a esta situação? Bebo mais um gole de cerveja quente.
Oiço gritos, e do outro lado da estrada vejo alguém aos pontapés a uma árvore. Rejeição de amores... sussurram aqueles que me rodeiam. Por ele passa outro indivíduo cambaleante, numa postura curvada que diz "- Caga nisso!", e prossegue em direcção ao terreiro onde a partida de futegarrafão continua. Senta-se mesmo no meio do campo e não tarda a levar com o garrafão na cabeça, após um chuto violento. Cai para o lado, imóvel, e o jogo nem chega a ser interrompido.
Um automóvel estaciona e do seu interior emergem dois casais embriagados e pouco faladores. Elas juntam-se ao grupo que me rodeia, eles caminham estrada abaixo resmungando e aspirando furiosamente os cigarros acesos.
"- Alguém tem tabaco?", pergunta uma das recém-chegadas. Respondem dois cigarros que lhes chegam às mãos. Oiço uma pergunta "– Que foi?".
"- As merdas do costume." Desconheço as "merdas do costume", pelo que fico na mesma. O grupo, porém, exsuda compreensão.
Vindos da casa iluminada, dois tipos surgem correndo, afogueados.
"- Pá, a Cláudia está perdida de bêbeda na cama, toda nua! ... Quem quer vir ver?"
Todos os rapazes que ali se encontravam, incluindo os desportistas do garrafão e exceptuando o caído no terreiro, disparam atrás daqueles dois na esperança de, amanhã, poderem dizer "- Eu vi a Cláudia nua". As raparigas aceleram no seu encalço procurando salvaguardar a integridade da amiga que, escusado será dizer, desconheço.
Num ápice, fico sozinho.
É então que toca o telemóvel guardado no bolso. Atendo e troco breves palavras com Carolina, alguém que no momento se apresenta. Vinha com o Beto quando o acidente ocorreu. Aparentemente o meu irmão mais novo fumou e bebeu demasiado. Acabou de encontro a um poste de iluminação quando, apesar da curva na estrada, decidiu conduzir o carro a direito.
De um momento para o outro tenho que ficar sóbrio. Lanço por cima do ombro a garrafa que ainda segurava e caminho para o automóvel. Com a chave do carro na mão penso duas vezes e chamo um táxi. Beto está no hospital e precisa de mim.

18.1.05

ANDORINHAS

Trabalhava no oitavo andar de um antigo prédio com janelas amplas. O dia, de sol firme, trazia o calor da nova estação. Afastada a invernia, as pessoas reluziam, libertas dos abafos e expondo as peles claras, desde logo buscando a coloração dourada que substituiria o ar doentio e macilento que ostentaram durante o Inverno.
Junto à janela, os olhos de P. apenas viam as andorinhas que, no ar abaixo da janela, voavam alegres, no afã da construção e reconstrução dos ninhos nos beirais, bem como na perseguição aos incautos insectos que zuniam distraidamente.
A cabeça de P. movimentava-se tentando acompanhar o voo de uma ou outra das aves brancas e negras. Havia já largos minutos que ali estava. Ali ficou minutos sem fim.
Até que, sem que nada o fizesse prever, sem hesitações ou demoras, ergueu a folha da janela de guilhotina e, com um pinote, ergueu-se no parapeito. Quando os colegas de trabalho olharam para o lado viram P. abrir os braços e deixar-se tombar, como se voasse no corpo de uma andorinha.
Nesse trágico dia, a infalível gravidade manteve-se inalterável e mais uma vez demonstrou que o Homem não se fez para voar sem auxílio de aparelhos.
Estrondosamente chegou ao passeio, perdendo o resto de uma promissora e inesquecível Primavera.

14.1.05

Anos '80 - 80 memórias (23)

Cassetes e leitores

Algures em finais dos anos 70 recebi o meu primeiro gravador. Era, naturalmente, um simples aparelho que gravava e lia em mono, mas já ia para além daquela mais comum forma de tijolo preto. Era um gravador "espacial", como dizia eu e os meus amigos, arredondado, todo em plástico, castanho claro e escuro, tipo galão.
Com ele muito brinquei, gravando palermices que reproduzia, fingindo programas de rádio, rádio-novelas e misteriosas mensagens crípticas. Foi igualmente no gravador "espacial" que ouvi as primeiras cassetes de música. A primeiríssima que comprei, através do Círculo de Leitores (!!) foi o álbum "Red skies over paradise" dos Fischer-Z.
Conheci outros leitores daquele tipo, mas já todos reconvertidos à função de carregar jogos no Spectrum. O final dos anos 70 anunciava o fim da carreira daqueles modelos que, hoje, podemos ver no RTP Memória em frente aos entrevistados, empunhados por jornalistas que os usavam para registar os depoimentos.

Com os anos 80, outros aparelhos surgiram no nosso universo. O "tijolo" cresceu e assumiu proporções inauditas. As imagens de televisão vindas dos Estados Unidos, em séries como a Fama, os tele-discos (hoje chamados videoclips) e filmes deram a conhecer o mundo dos rádios/leitores de cassetes, stereo, com colunas potentes, por vezes destacáveis, alimentados a pilhas, e com grande capacidade para encher os ouvidos do vizinho. O "Break-Dance" era associado ao novo comportamento, e havia gente que andava com o rádio ao ombro, a bombar som na rua, no autocarro, ou na praia.
Olhando para trás vejo o rídiculo do ano de 1984, ano em que, com quase 13 anos, fiz o Verão na praia integrado num grupo com idades dos 12 aos 18 e que, qual gang, invadia a minúscula praia da Parede, amontoando-se a um canto do areal, com um rádio a passar música.

Por outro lado, os anos 80 foram aqueles em que se generalizaram os "walkman". Toda a gente tinha que ter uns, e andar na rua com as orelhas cobertas por auscultadores que, de preferência alto, enchiam a cabeça de música alienando o meio que nos rodeava. Hábito que se manteve com o passar do tempo, e viu os auscultares desaparecerem para dar lugar a pequenos apêndices que se enfiam na orelha.
Naquela altura andávamos sempre acompanhados de cassetes e deixávamos pendurados no pescoço os "headphones", como fazíamos questão de dizer, quando o aparelho estava desligado.
Aliás, recordo-me de, uma vez, certo indíviduo andar só com os "headphones" para fingir que tinha um "walkman".

A música era diferente. O seus suportes, cassetes e vinyl, estão relegados para a história. O próprio leitor de CD portátil é hoje uma peça em vias de extinção, com o advento dos suportes digitais de alta capacidade como iPod e afins.
Nos anos 80, quem reinava eram as cassetes.

13.1.05

Este berlinde em que vivemos

Diz hoje o "Público" que :

O ano de 2005 começou com excessos climáticos em vários pontos do globo. Enquanto os russos enfrentam um Inverno tão suave que até os ursos já saíram da hibernação, grandes tempestades varrem o norte da Europa e chuvas torrenciais matam nas Américas, do Brasil aos EUA. A Austrália enfrenta os piores incêndios dos últimos 20 anos.

Não é de agora que sinto que nos deveríamos preocupar mais com isto do que com o "mercado global" ou a "liberalização económica". De que vale a riqueza sem a vida? De que vale algo quando não temos existência?

Este berlinde em que vivemos tem limites... e creio que é muito temperamental

Cheira mal. Cheira a podre

Hoje passa nas notícias o "hino" do PSD para as eleições, inspirado e dedicado a PSL. Credo!!!, que coisa horrível e pirosa. Nem na pior das feiras de Verão da terrinha mais pequena, ouvi coisa assim.
Pavoroso.


Entretanto, a história das "férias" de Morais Sarmento demonstra o desnorte de quem ainda nos governa. Pelos vistos, pretende o Ministro que toda a viagem se justifica por causa de negociações estratégicas. Contudo, o tempo a estas "negociações" dedicado foi irrisório.
Mas há mais. Em causa estava uma possível concessão à Galp de direitos de exploração de petróleo, dizem. É surpreendente que seja este Ministro (porquê ele) a avançar para as "negociações" quando o próprio Ministro que tutela a empresa nada sabe.
Então, neste Governo, um Ministro invade assim a competência do outro? Sem coordenação e estratégia?
A explicação segundo a qual o Secretário de Estado estava a par não convence. Especialmente quando o Ministro diz que tudo se passou para aproveitar a viagem do seu colega Sarmento. então, em que ficamos? Este aproveitou a viagem de negócios para fazer umas férias, ou uma viagem de férias para fazer uns contactos de negócios?
Certo é que o Sr. Ministro não podia ir nas carreiras comerciais e teve que fretar um avião... É tudo tão mais fácil quando o dinheiro que se gasta não nos pertence.

Entretanto, Sócrates vai brincando de Primeiro-Ministro, a ver se se habitua ao posto. Porém, falar só não chega. E escusar-se ao debate só demonstra que teme a popularidade e demagogia de PSL.
Se importamos tanta treta dos americanos, porque é que não importamos os modelos de debate que eles têm nas eleições presidenciais?

A PJ quer que se acabem as "prendas" na função pública. O que são as "prendas"? São a corrupção generalizada, instalada e acomodada. A empresa, o particular, o engenheiro ou o arquitecto, o solicitador ou o advogado, o contabilista, o doente, na repartição de finanças, no tribunal, no notário ou na conservatória, na câmara ou na direcção-geral no hospital ou no centro de saúde conhecem os funcionários por lá irem amiúde. Então, deixam as prendas pelo Natal, pelas férias, ou naquela altura especial. Do ofertório simbólico à "gratificação" pelo serviço prestado. Tudo tem o mesmo nome: corrupção. Podridão. Porque nada justifica o tratamento preferencial de uns, aqueles que se movem pelos estreitos corredores alternativos, se todos deveremos ser iguais perante a administração pública

E que dizer da novela dos clubes de futebol que há anos andam a enrolar o pagamento das suas dívidas ao fisco mas, contratam, descaradamente, jogadores novos?
A falta de espinha dos governantes para contrariar os barões da bola e seus adeptos é tão mais grave quando se fala em aumentar os impostos por termos falta de receita.
Por mim, fosse o Benfica, o Sporting, o Porto ou o "Cascalheira de Cima" a dever, avançava para a execução fiscal sem contemplações. E se isso importasse a falência do clube, ou a perda de jogadores e eventual descida de divisão, tanto pior... O empresário que se deixa enrolar no mar de dívidas e falha os pagamentos do IVA que recebe para assegurar o pagamento dos ordenados, é punido por crime fiscal. Com os clubes, para haver moral, tinha que haver o mesmo rigor.
Estou, mesmo, farto dos chulos da bola.

Tristemente, os cães vão ladrando. Porém, desta forma, já nem a caravana passa, e creio que atascámos na mole areia das dunas de onde não conseguimos sair. A este ritmo, resta-nos o "carro vassoura". Como foi que viemos parar aqui?

10.1.05

Justiças e proibições

Aquilo que quem anda pelos corredores da Justiça sabe, mas não consegue transmitir ao cidadão comum é hoje aflorado no editorial do Público, aqui. Pois é, tudo é mais fácil quando basta culpar os Juízes, os Ministério Público, os Advogados, as polícias ou os funcionários.
Mas reformar o que todos os que com a lei trabalham sabem que está mal, ou meter o dinheiro onde ele faz mais falta, só compete ao legislador e ao governante. E esses, meus amigos, não fazem mais que apontar o dedo...


Em Itália foi aplicado o fim do fumo público. Não sou fundamentalista, e até compreendo os fumadores. Mas, para mim, esta é uma decisão que, egoisticamente, me agrada. No sábado jantei num restaurante banal. Ao chegar a casa, quer o meu corpo quer a minha roupa estavam impregnados do cheiro a fumo. Duvido que seja saudável.

Anos ’80 – 80 memórias (22)

Pastilhas Gorila com aviões

Durante os anos ’80 não havia grande escolha de pastilhas elásticas. Certamente não havia a escolha que há hoje. Lembro-me das pastilhas Pirata e das pastilhas Gorila. Estas últimas tinham o sabor normal de tutti-frutti e depois apareceram umas com sabor a banana mas que ficavam rijas muito depressa. Tínhamos ainda as Super-Gorila, grandes e que faziam grande balão, e cujo desafio era pôr um pacote inteiro na boca (sim, cinco grandes pastilhas...). Eu fazia isso, sei lá por que razão.
Havia ainda as Chicletes, mas isso eram pastilhas para adulto e não tinham piada. E havia aquela senhora velhinha que, à porta da escola secundária vendia doces como as peta-zetas e que tinha umas pastilhas diferentes, esquisitas, das quais lembro particularmente de umas que eram pretas e nós brincávamos com elas a tapar dentes para parecer desdentado.

Enfim, toda esta introdução para chegar ao verdadeiro objecto desta memória: a colecção dos aviões das pastilhas Gorila. A embrulhar a pastilha vinham dois papéis. O de fora, comum, e o de dentro, com o desenho de um avião e respectivos dados técnicos. Foi uma feliz colecção que substituiu uma outra anterior e que era de sinais de trânsito, enfadonhos apesar de educativos. Os aviões, sim, eram mesmo excelentes.
Quando se tem doze, treze anos, faz todo o sentido comer compulsivamente pastilhas para coleccionar os 801 (havia 801 aviões diferentes), e trocá-los com os amigos. Devo confessar que cheguei a ter perto de metade da colecção. Quase 400 papéis diferentes guardados numa caixa, onde os organizava pelo número que traziam. Porém, não a acabei, por parecer uma tarefa ciclópica.
Um colega de escola (de outro ano) terá conseguido reunir todos os aviões e, mediante a sua entrega, ter-lhe-ão oferecido um livro onde estavam os mesmos 801 aviões. Não sei se foi verdade, apesar de mais do que uma pessoa repetir que tinha visto o livro. Hoje, passados tantos anos, já não posso ter a certeza, pois muitas eram as "tretas" que se "pregavam", e que depois ganhavam vida e acabavam por se tornar verdades.

Também não sei se hoje as pastilhas Gorila ainda têm alguma colecção a embrulhá-las. Passei a comer as pastilhas dos "adultos". Os Aviões ficaram lá, nos anos ’80.

7.1.05

Ordálios

Nos EUA sinais preocupantes chegam nos ombros dos ventos do Oeste.
Presidência e seus legisladores pensam aprovar uma lei que permite algo inconcebível nos tempos modernos.
De acordo com os desejos destes senhores, basta suspeitar que alguém é terrorista. Essa pessoa é presa e, se depois não conseguirem reunir provas suficientes para fundamentar uma acusação e para a sujeitar a julgamento, podem as autoridades determinar que "o suspeito" fique preso... para sempre.
Muito humanistas, dizem que será criada uma prisão para o efeito, com as condições adequadas (o que será isso?), e que os presos poderão conviver entre si.


Eu tenho uma ideia melhor. Que tal desenterrar os ordálios? Sempre davam uma hipótese de escapar...

O disparate está à solta

(já é a segunda vez que escrevo este texto. Quando estava mesmo a acabar, caíu a ligação e perdi-o no limbo do virtual. Espero que saia tão bem com o primeiro. Normalmente, a segunda versão fica pior)


Morais Sarmento pretendeu ontem defender o indefensável. Com argumentos risíveis desautorizou o Parlamento e apoiou a posição idiota da Ministra da Educação. E o pior, é que acho que eles acreditam naquilo que dizem.
Como perguntava um comentador na TSF, se é assim tão indiferente, por que raio se candidatam eles à AR e amuam com a elaboração das listas?


Nobre Guedes, pouco depois de assumir a pasta do Ambiente, queria mostrar-se dinâmico, determinado e previdente. Com alarmismo anunciou que, se não chovesse até ao final de Dezembro estaríamos perante um preocupante sinal de seca e era preciso accionar planos de conservação da água que poderiam culminar com o seu racionamento, nomeadamente em zonas como o Algarve.
Ontem, após o INMG ter anunciado que há 14 anos não chovia tão pouco, e que há riscos de seca em 2005 se não ocorrerem chuvas consideráveis nos próximos meses, Nobre Guedes muda o discurso. Agora, em campanha, convém ser simpático, afastar cenários de racionamento ou catástrofe e, por isso, diz confiante que não há risco nenhum e não é preciso accionar nenhum plano, pois a água não vai faltar.
Entre o histerismo e a falácia, alguma das suas declarações estava errada. Se for a de ontem, lá penaremos no Verão pelo laxismo governativo em tempo de cacicagem.
Entretanto, uma barragem do Algarve (ou Odelouca ou Odeleite) está a 14% da sua capacidade, quando a média nesta altura do ano costuma ser de 52%.


Para ajudar, o Ministro da Agricultura antecipa o pagamento de subsídios aos agricultores, subsídios esses cujo pagamento era suposto ser feito apenas em Março, ou seja, depois das eleições. E ainda por cima, apresenta tal medida como relacionada com a falta de água.
Pouco depois o Secretário de Estado esclarece que não é bem assim. Tais fundos, de origem comunitária, visam compensar produtores de gado, e reportam-se a perdas por determinadas doenças.
Quanto vale um voto?


Por sua vez o Ministro da Justiça anda a inaugurar os Juízos de Execução. Começou pelo Porto e veio para Lisboa. Estes Tribunais estão instalados desde 15.09.2004, altura em que apareceram com um ano de atraso. Começaram a mexer fisicamente apenas em Outubro, pois só então houve instalações, computadores e funcionários operacionais.
Hoje, três meses depois, estão afundados.
Foram criados assentes num pressuposto de inovação tecnológica que passa pelo processo digital, ou seja, têm os Advogados que remeter os requerimentos iniciais digitalmente. A incapacidade dos meios e a falta gritante de funcionários para com eles lidar leva a que, dizem os que por lá andam, existam em Lisboa cerca de 50.000 (sim, cinquenta mil) e-mails por abrir.
O fiasco da reforma da acção executiva é tão grande que os Solicitadores de execução, figura nova para o efeito criada, estão a abandonar o barco. O seu pagamento depende da conclusão das execuções e, a este ritmo, não há processo que chegue ao fim.
E o Ministro corta a fita.


O PSD gosta tanto de elaborar listas que, à semelhança do concurso dos professores, foi incapaz de elaborar as suas listas eleitorais sem erros. Esquecimentos de figuras importantes, troca de prioridades, erros, concelhias amuadas...
Ao que parece, Santana Lopes deverá cair após as eleições. Mas vai deixar no Parlamento os seus amigos. Sarilhos se avizinham para o próximo presidente do partido que, não bastando (tudo o indica) vir a ser oposição, ainda terá que enfrentar a oposição daqueles que ficam a dever a PSL o seu tacho.


Nesta história das listas gemem os jovens das jotas. JS e JSD acordaram e viram que não basta frequentar a escola política para, automaticamente, chegar ao poleiro. Também não basta ser competente ou dar mostras de especial combatividade. É preciso ter os amigos certos, nos lugares certos na altura das escolhas. Mas, se souberem esperar, dentro de anos farão exactamente o mesmo.


É este o Governo que temos.
São estes os políticos que elegemos?

6.1.05

Assim se vê

As declarações de ontem da Ministra da Educação são o espelho do actual Governo e daquilo que poderemos esperar da incompetência arrogante do actual PSD.
Disse a Srª. Ministra que não precisava de ir à Assembleia da República explicar nada porque isso seria desnecessário, uma vez que na conferência de imprensa que estava a dar os senhores jornalistas certamente fariam as perguntas que importavam.

Brilhante!!!
Depois, limitou a cinco as perguntas a que responderia na conferência de imprensa.

Assim se vê a importância do órgão de soberania que acolhe o poder legislativo da Nação para o actual Governo. É uma mera câmara de ressonância, nada importando a oposição com assento parlamentar. Mais vale dar a palavra aos jornalistas, a qual facilmente pode ser limitada e, aparentemente, controlada, e ignorar os representantes de considerável parte do país.
Cavaco e o seu Governo de maioria absoluta também eram arrogantes. Mas essa arrogância traduzia-se na falta de flexibilidade para aceitar o contributo dos outros partidos, mantendo inalteradas as suas opções políticas. Bom, eram o governo e governavam à sua maneira. As escolhas eram suas.
Contudo, não me lembro dessa arrogância se usada para gozar com os outros órgãos de soberania, com o povo português, com a nação.

Ainda os dias de férias

Na segunda-feira, dia 03 de Janeiro, vim a Lisboa durante o dia. Não se via trânsito. Não houve as habituais filas de hora de ponta nem de manhã nem à tarde. O país estava de férias, certamente. Porém, quando o tema são as férias, os Juízes e os Professores é que são os sortudos, os que estão sempre de férias, nunca fazem nada...
Em férias fui ver "A Costa dos Murmúrios". Talvez o melhor filme português que alguma vez vi, é uma obra que encanta pela qualidade do texto, das interpretações, da fotografia e da realização. Vou tentar fazer um post dedicado apenas ao filme, para uma crítica mais profunda, mas certamente apaixonada.
Vi igualmente o "Bad Santa". Por muito "Bad" que se pretendesse, o filme é uma produção americana de um filme de Natal pelo que o "Good" também lá está. É um trabalho de entretenimento, mas é preciso estômago para o ver, porque tem muita violência inesperada. Vamos a ver se consigo escrever algo mais extenso sobre o filme.

O Carnaval tem que ter palhaços

O Carnaval das listas dos partidos para as eleições legislativas dá-nos uma amostra do nível político do nosso país. O importante é saber se Paulo Pedroso é ou não colocado em lugar elegível. Se Pôncio Monteiro deveria ter sido incluído ou não. Se o presidente da câmara de Ourique deve concorrer no círculo eleitoral da Guarda (!).
Portugal precisa de um governo. Por favor, apresentem ideias, soluções, caminhos de governação. E pensem em alterar esta lei eleitoral, para que a formação das listas não seja a da distribuição de cadeiras, mas sim a de escolha de alguém para, perante determinada circunscrição eleitoral que o eleja, responder perante os votantes.

Palhaços!

Bom senso

No Diário da República de 30.12.2004, I-A, foi publicado o Acórdão 704/2004 do Tribunal Constitucional.
O que diz?
Que a pergunta proposta para o referendo sobre a União Europeia e sua Constituição é um disparate e que terão que arranjar outra para referendar a matéria.

Estamos de novo em Janeiro

Entrámos em 2005.
Com o correr dos anos a sensação de mudança que costumava acompanhar as passagens de ano esbate-se, e nada de novo trás o Ano Novo.
Na festiva noite, enquanto jantava com amigos e com eles brindava ao recém-chegado ano, alguém questionou:
"Pensem num projecto que tenham para este ano. Algo no trabalho que pretendem concluir. Algo que queiram realizar". Como exemplo falou no Mestrado que uma das convivas pretende terminar em 2005.
Quando jovens, adolescentes, há sempre metas, objectivos, desejos. É o ano escolar que se pretende acabar com aproveitamento ou a mudança para aquela escola ou faculdade. Em certas profissões, existem projectos para concluir ou executar. Aquela obra que se pretende de desenhar, ou construir, mas acabar este ano. No meu caso, profissionalmente, inexistem objectivos tão vísiveis.
Muito trabalho acabará este ano. Mas muito mais aparecerá em seu lugar. Mais do que ver obra completa (nunca terei essa sorte), o objectivo é sempre manter-me à tona d’água, manter o barco a navegar em condições, trabalhando para o não deixar afundar. A sensação de dever cumprido, de objectivo alcançado, é de curta duração e reduzida satisfação, pois que apenas surge no dia a dia, à medida que cada pequena parcela do gigante bolo encontra o seu fim, para de imediato se esgotar.
Os objectivos serão outros. Têm que ser outros. Pois que se o trabalho complementa a nossa vida, não é a nossa vida. Não podemos deixar que o seja, que se imponha e nos domine.
Este ano de 2005 há que concluir todo o processo, já retardado, de mudança de toca. Há que lograr instalar um laboratório fotográfico (minúsculo), na nova toca, e dedicar muito tempo a produzir resultados do curso feito em 2004. Há que inventar mais tempo para melhor gozar os dias, procurando mais da vida.
Três objectivos que, a ser alcançados, já justificam um ano novo.