31.3.05

"Vidas" (6)


SEM IRS

A rotina de mais um dia a pesquisar no lixo iniciou-se com a calma religiosidade de um rito. Abriu o pequeno portão de ferro carcomido pelo tempo e transpôs em três passos bem medidos o pátio ao sol exposto. Junto à porta introduziu nesta a chave que rodou três vezes.

CLACK! CLACK! Click! Penetrou na penumbra que iluminou rapidamente, e trepou o lanço de escadas que o separava do primeiro andar. Uma vez no gabinete, sentou-se à secretária contemplando as pessoas que na rua formigavam.

Tanta gente normal, com empregos normais, com vidas normais e ele ali, pronto para mais um dia de "trabalho" se assim o entendesse o patrão. Havia já cinco dias que não era chamado. Cinco dias a ler jornais, ouvir música e sim, admitia, a jogar cartas no computador, que longe vai o tempo de baralhar os rectângulos plastificados para a seguir os estender sobre a mesa.

Porém, hoje não lhe apetecia fazer nada disso. Quase como punição, não comprara os quilos de linhas recém-impressas que diariamente lia ao arrepio e depois lançava no lixo. A pantalha virtual mantinha-se sem energia, os jogos perdidos numa memória inoperante. O silêncio do gabinete permitia ouvir a gente normal que lá fora vivia.

Olhou a secretária. Desejou que nela estivesse um documento, um processo, um desenho, uma factura... Naquele escritório o papel não era trabalho. Aliás, naquele escritório não se trabalhava. Esperava-se.

Concentrou-se nas sombras que se deslocavam, lentamente, ao ritmo da rotação terrestre, pelas paredes amareladas. Muito tempo depois levantou-se e pontapeou o caixote do lixo.

Depois, nele pegou indo colocá-lo, na extremidade da sala, em cima do armário onde pessoas viam livros mas que mais não era que um bar camuflado. Despiu o casaco, desapertou o colarinho, afrouxou a gravata sóbria e tirou um bloco de papel de uma das inúmeras gavetas fechadas. Da outra ponta da sala foi fazendo bolas de papel que lançou para o cesto. Imitou Magic, Kareem, Jordan, Shaquille...

Foi então que o telefone vibrou. Cortou-lhe o lançamento, "que belo contra ao gancho de Larry Bird". Atendeu.

- Sim?

- Vem. Há cá dois.

- O. K.

Apertou o colarinho. Ajustou a gravata. Vestiu o casaco. Saiu até ao armazém onde mais lixo lhe viria parar às mãos. Mais dois imbecis que deviam ser devidamente apertados até cantarem o que quer que fosse preciso.

Por saber esperar, por saber torturar, por saber estar calado e por não ter consciência, ganhava mil contos certos todos os meses. Sem IRS.

30.3.05

"Vidas" (5)


CASTIGO

Lá fora chovia. O dia, negro como a minha alma, arrastava os trovões que de longe ecoavam. Lentamente, respondi à chamada e caminhei para o cadafalso envolto num manto de dor que me oprimia a existência terminal.

Vi a corda a balançar lá fora, através de uma janela gradeada. Crime e Castigo.

O corredor era largo. Velhos candeeiros em forma de prato da sopa iluminavam a espaços os meus passos inseguros. O silêncio era apenas violado pelo patear de um condenado e de dois guardas maiores do que ele, bem como pela água da chuva a cair e a correr pelas telhas negras do edifício urbanóide. De tempos a tempos, um trovão.

Recordei o meu último desejo: o Requiem de Mozart.

Agora não havia mais palavras. Cada um sabia o que fazer, gestos treinados por milhares de execuções pretéritas. Todos nós sabíamos exactamente o que ia acontecer. Subi para o cadafalso, a corda foi ajustada ao pescoço, o nó junto à orelha esquerda. Recusei a venda.

Sem delongas, o carrasco puxou a alavanca. Num momento, o alçapão abriu um vazio sob os meus pés. Senti a injecção e simultaneamente ouvi o tiro. A descarga eléctrica penetrou o corpo incendiando a fogueira inquisitória. O gás de cianeto subiu às narinas enquanto a lâmina desceu célere sobre o meu pescoço. O apedrejamento continuou enquanto asfixiava pregado à cruz. Submerso, esquartejado, gritei.

O Requiem terminou.

Lá fora chovia. O dia, negro como a minha alma, arrastava os trovões que de longe ecoavam. Lentamente, respondi à chamada e caminhei para o cadafalso envolto num manto de dor que me oprimia a existência terminal.

Vi a corda a balançar lá fora, através de uma janela gradeada. Crime e Castigo.

29.3.05

Cinema

Na ressaca Pascal venho pôr a escrita em dia, começando pela área cinematográfica.
Dei um importante passo nesta semana que findou que foi aderir ao KingKard, uma inovação da Medeia e que importa o pagamento mensal de € 13,00, durante um ano, mas que permite ver nas salas Medeia todos os filmes que queira, sem pagar qualquer bilhete. Bom, desde que veja apenas dois por dia (!).
A ideia é boa. Aos preços actuais, basta-me ver três filmes por mês para assegurar o retorno do investimento. Não só me obriga a ir ao cinema, se não quiser perder dinheiro, como incentiva a ver mais filmes, pois já não tenho que pensar se determinada película justifica o gasto do preço do bilhete.

Feita a introdução, foram quatro os filmes que vi durante a época pascal. Ora vejamos.

Comecei pelo desejado Mar Adentro, de Alejandro Amenábar.
Não há palavras para descrever o filme. Mais uma obra a abordar um tema fracturante, desta feita a eutanásia, que segue o seu caminho com tranquilidade, expondo argumentos de parte a parte com uma subtileza admirável e nos faz pensar em tudo o que rodeia o tema.


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Interpretação soberba de Javier Bardem (veja-se na fotografia em tronco nu, ao lado do realizador, interpretando o personagem antes do acidente e depois, na cama, já tetraplégico e vinte e seis anos mais tarde).
Sinta-se a sensibilidade do realizador na fotografia, na música, no ritmo. Depois de “Tesis”, “Abre los Ojos” e “The Others”, não restam dúvidas que o cinema espanhol tem um dos melhores realizadores da actualidade.
Este filme é obrigatório.

Depois, dei um saltinho ao Quarteto para ver um filme que só aí resta em exibição. Regresso a uma sala após ausência prolongada para a encontrar horrível. O som parecia acompanhado de uma fritadeira, com grandes desequilíbrios e flutuações, a tela está riscada e marcada, o que se vê durante a projecção, e todo o cinema evidencia uma decadência que arrepia. Uma localização óptima, e um ambiente cinéfilo que já só encontra rival no King, estão a ser desperdiçados. O Quarteto afasta os clientes, e por isso dificilmente sobreviverá. Lá para o Verão vêm mais oito salas para o Campo Pequeno, e começa a fechar-se o ciclo deste cinema. A menos que alguma distribuidora lhe deite a mão. Porém, após o desaparecimento do Mundial, tenho dúvidas que tal aconteça.

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Quanto ao filme, falo de “Garden State”, escrito, realizado e interpretado por Zach Braff, um jovem de 26 anos que descobri numa série cómica que passava na Sic Radical, de nome “Médicos e Estagiários”, “Scrubs”, no original.

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Zach interpreta um actor que regressa a casa 9 anos depois, para o funeral da mãe. A relação familiar está envolta num nebuloso passado, acentuado pelo consumo de medicamentos do personagem. Perdido na entrada para a vida adulta, encontrará Natalie Portman, igualmente saída da adolescência, e juntos dispõem-nos bem durante o filme.
Não sendo obra de culto, é uma obra promissora para um realizador/autor tão jovem. Fiquem de olho nele.


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Humor alternativo interpretado por Bill Murray, “The Life Aquatic with Steve Zissou”, de Wes Anderson atinge um patamar superior àquilo que o Humor americano nos costuma habituar.

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Paródia que recorda a época de ouro da investigação submarina, divulgada por Custeau caminha na raia do fantástico enquanto aborda as sempre sumarentas relações humanas. Realizado com muita criatividade, traz-nos a acompanha Murray nomes como Cate Blanchett, Angelica Huston, Willem Dafoe ou Jeff Goldblum. E ainda Seu Jorge, actor brasileiro que interpretava o Mané Galinha da “Cidade de Deus”. Aqui, delicia-nos com as suas versões brasileiras das músicas de David Bowie.
A ver, seguramente. E é daqueles filmes que pode perder impacto se for relegado lá para casa, para o espaço fechado de um televisor.

Finalmente, fui ver o aclamado “Sideways” de Alexander Payne.

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Realçando a interpretação de Paul Giamatti, actor com quem simpatizo pelos trabalhos que já vi interpretar, senti-me defraudado com o filme. Talvez por causa de tudo o que ouvi antes. Seria uma surpresa agradável, não estivesse eu à espera de algo muito bom, como foi anunciado aos quatro ventos.

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Tudo espremido temos um filme com momentos brilhantes, outros muito bons, mas ligados por cenas enciclopédicas e rasas, numa história que é uma não-história.
Sem dúvida acima da média para o cinema alternativo americano, mas insuficiente para me encher as medidas. Gostos.

25.3.05

Quem semeia ventos

A notícia vem no Público, aqui.

Se atentarem no seu tom, reparem como o tom de desculpa pretende justificar que três tipos, ainda que menores, possam assaltar uma farmácia e se ponham em fuga em carro roubado, conduzindo perigosamente e desrespeitando ordens de paragem da polícia.

Eu não tolero, e admito perfeitamente que o polícia dispare para parar o automóvel. Tanto mais que os fugitivos, ao assumir tal conduta, têm que se presumir perigosos.

Nos EUA a highway patrol, tipo a nossa BT, não corre riscos. Se um condutor mandado parar não o fizer, ou se ao parar fizer gestos suspeitos ocultando as suas mãos, corre o risco de ser alvejado. Porquê?. Porque se presume perigoso.

Porque não poderá a polícia portuguesa presumir perigosos os assaltantates de uma farmácia que se põem em fuga, na qual persistem?

Mas vejam a notícia:



Monte da Caparica
Jovem morto a tiro pela GNR por suspeita de roubar farmácia

Francisco Neves

Jovens de 17 e 14 anos perseguidos pela GNR. Conhecidos da vítima estranham alegado envolvimento em assalto
Causou espanto a moradores da Rua do Raposo de Cima, no Monte da Caparica, concelho de Almada, ver três "miúdos impecáveis", entre os 14 e os 17 anos, ser perseguidos a tiro até que um caiu morto, baleado pela GNR.Foi quarta-feira à noite, entre as 20h e as 21h, depois de várias voltas pela zona do Bairro do Pica-Pau Amarelo, já debaixo de fogo, que o Fiat Uno dos três rapazes embateu contra um carro estacionado e um candeeiro daquela artéria.Quando o estrondo trouxe os moradores das modestas casas do IGAPHE para a rua, alguns depararam com um grande aparato policial e, no chão, do lado do condutor, um rapaz de 17 anos agonizante, virado para cima, e, do outro lado da rua, outros dois jovens mandados deitar no chão pelas autoridades. Pelo menos dois deles tinham família na zona, como se se dirigissem para casa, buscando refúgio. Nenhum deles estava armado."São miúdos impecáveis, nunca foram malcriados. Conheço dois deles, o Paulinho e o Sérgio, sempre pareceram sossegados", disse ontem ao PÚBLICO uma moradora.A GNR também os conhecia. "Estavam referenciados por furtos, mas não foram encontradas armas com eles", disse fonte das relações públicas do comando geral daquela força.Segundo a mesma fonte, o grupo de rapazes tornou-se suspeito de um assalto ocorrido minutos antes a exactamente 3,9 quilómetros dali, na Farmácia Pepo, na Praceta Frederico Pinheiro, em Vila Nova da Caparica. Armados com pedras da calçadaO roubo deu-se pelas 19h45, ainda estavam cinco pessoas na farmácia, "a única nas redondezas que faltava ser assaltada", segundo Zélia Pepo, a proprietária. E foi feito sem violência: as armas exibidas pelo trio eram pedras da calçada."Eram três com as caras tapadas com capuzes de lã e cachecóis. Um ficou à porta, outro veio para o meio da casa e o terceiro veio logo atrás do balcão e só disse: "Passe para cá o dinheiro"", descreveu a proprietária. Levaram cerca de 450 euros. Uma sua empregada, de serviço na noite do roubo, comentou: "Ainda pensámos que era uma brincadeira, porque eles entraram aos saltinhos. Só que levantaram os braços e tinham nas mãos pedras da calçada." Nenhum dos três exibiu qualquer arma, embora a funcionária se recorde de, quando alguém chamou por socorro, um dos intrusos ter dito a outro: "Dá-lhe um tiro."Mas não houve tiros e, assim que os três saíram, os comerciantes alertaram a GNR. Não puderam informá-la que carro os assaltantes usavam, pois não o viram. Pouco depois, uma perseguição começava.Segundo fonte policial que não da guarda, a GNR teria indicações de que um grupo de "marginais perigosos" estaria a preparar uma série de assaltos na zona e o grupo perseguido a tiro poderia ter sido confundido com eles. As autoridades usaram na operação um carro não identificado. Durante a corrida, que acabou no Raposo de Cima, os primeiros tiros feitos pelos agentes da GNR terão sido "para baixo", tentando atingir os pneus do Fiat de matrícula 95-48-BD, mas uma travagem terá feito subir o braço que empunhava a arma, atingindo o condutor fugitivo no abdómen. Levado ao Hospital Garcia de Orta, em Almada, chegou lá morto. Dos dois restantes, o mais velho, também de 17 anos, foi detido depois de breve passagem pelo hospital, enquanto o de 14 foi entregue aos pais. Ambos foram ontem ouvidos pelo Tribunal de Almada, tendo o mais velho ficado sujeito a termo de identidade e residência. Respondera recentemente pela acusação de furto de carro e condução sem carta.Na noite de anteontem, a Rua do Raposo de Cima "parecia o Texas", com polícias, ambulâncias e um cordão de segurança que não deixava passar ninguém, mas ontem à tarde só cacos de faróis e guarda-lamas restavam do sucedido. Descontada a tristeza dos mais velhos e a raiva à polícia dos mais novos."É pena ter morrido uma criança", dizia ontem Zélia Cruz, trabalhadora do Clube Recreativo União Raposense.Um grupo de conhecidos do jovem baleado, residentes no Pica-Pau Amarelo, não suspendeu o jogo de matraquilhos para comentar o caso, mas vários deles insistiram em que os rapazes do Fiat não eram pessoas de armas nem de assaltos e que a polícia sabia disso porque os conhecia. Conhecia como? "Eram putos com a mania da Playstation, arranjavam uns Unos p"ra fazer umas corridas e a polícia não gostava porque gozavam dela", disse um deles.
Com Cláudia Veloso

22.3.05

À prova de bala


Algo suspreendente foi o episódio ocorrido na Amadora e que levou a vida dois agentes da PSP. Algo vai mal na abordagem policial das zonas de risco.
Ao intervir em áreas de risco, os agentes da autoridade têm que estar preparados para que as "coisas corram para o torto". Devem ter e usar coletes à prova de bala, por mais desconfortáveis que sejam. E devem estar com a atenção a 110% como se costuma dizer, antecipando os perigos e evitando colocar-se em situações de risco injustificadas. Tal como a GNR esteve no Iraque, sempre à espera do pior.

Veja-se o caso deste fim de semana. Três polícias não conseguiram abordar correctamente o tipo que sobre eles disparou. Porque, uma aproximação em segurança, com a devida cobertura recíproca de três agentes, teria permitido revistar o sujeito e tirar-lhe as armas que detinha.
Depois de matar um dos agentes, fugiu para o carro. Os outros dois, por muito preocupados que estivessem com o colega, tinham que ver o que o assassino fazia. Mas não, viraram-lhe as costas, e foram os dois olhar pelo colega caído e permitiram o regresso do criminoso para sobre eles disparar.
Segundo a infografia que vi na televisão, é igualmente impressionante como ele consegue matar o segundo agente, e o terceiro polícia, à distância a que estava, não o atinge com os disparos que fez.
Um agente da PSP faz tiro uma (!!!) vez por ano. Como poderá ser eficaz quando precisa de usar a sua arma? De que adianta ter uma Glock 9mm, pistola topo de gama, se não a usa correcta e intuitivamente?

Desta vez, porém, os polícias reagiram de forma adequada. Ao invés de tolas manifestações de entrega de armas, puseram-se em campo e em pouco tempo capturaram o suspeito. Agora, espero que repensem a forma de agir. E não facilitem o risco.
Mas não se tornem o risco. Para os outros, para os cidadãos que com eles contam.

Demagogia barata


No domínio da justiça, em Portugal, há muito que fazer de forma a melhorar a resposta do aparelho judiciário, seja na qualidade do conteúdo seja na redução do tempo de decisão dos conflitos.
É inconcebível que um cidadão que precise de recorrer aos Tribunais tenha que aguardar meia dúzia de anos até ter uma resposta definitiva sobre questões como arrendamento, defeitos de construção, ou então quanto a uma dívida que primeiro tem que ver reconhecida e depois executada, quantas vezes sem sucesso pois o devedor, "coitado", não tem quaisquer bens que possam pagar aquilo que deve.
Por outro lado, é igualmente inconcebível que as sociedade anónimas como os bancos, as seguradoras, as que concedem crédito, as empresas de telecomunicações, e outras usem o aparelho judiciário como o seu cobrador de dívidas, quantas vezes de montantes ridículos para aquelas sociedades e que nem justificam o esforço do processo.
É inconcebível que alguém que se sente injuriado por outrem espere um tratamento da máquina judicial criminal, do Ministério Público, semelhante àquela que tem uma vítima de roubo por esticão, por exemplo. Porém, a lei pouco diferencia a gravidade dos crimes em termos de procedimento criminal, e por causa de bagatelas jurídicas, a máquina está emperrada, sem tempo para dedicar ao que é complexo.

Serve este intróito para quê?
O programa de Governo do PS, para a área da Justiça, ocupa 7 páginas, da 137 à 143. Por entre vagas considerações há lá a frase "reavaliação do período de funcionamento dos tribunais".
Ontem, ao discutir o programa na AR, o Governo lança aquela que considerou ser a melhor, a mais eficaz, a mais adequada e urgente medida para começar a resolver os problemas da justiça: reduzir as férias judiciais de Verão.
Verão quão demagógica é a medida se conseguirem ler aquilo que tenho para escrever. Talvez seja longo, mas garanto que é relevante.

Actualmente há três períodos de férias judiciais: do dia 22 de Dezembro a 3 de Janeiro; de Domingo de Ramos à segunda-feira seguinte ao Domingo de Páscoa; de 16 de Julho a 14 de Setembro.
Tantas férias?, dirão os menos esclarecidos, a população em geral. Pois é. É por causa dessa reacção que o Governo se prepara para demagogicamente as reduzir.
Acontece que, por razões constitucionais, os Tribunais têm que estar abertos durante todo o ano. Então e as férias, dizem-me, servem para quê? Actualmente, servem para pôr a casa em ordem.
Durante o período de férias, apenas correm termos os processos legalmente julgados urgentes. Mas os outros não param, pura e simplesmente. Andam para se por em dia. Eu explico.

Num Tribunal trabalham funcionários e Magistrados (Juízes e Ministério Público). Os primeiros não têm as férias todas que acima enunciei. Têm apenas os legais 22 dias ou mais de férias, consoante a sua antiguidade. Que, obrigatoriamente, têm que gozar naqueles períodos, em clara violação do direito de gozar as férias quando o trabalhador entender melhor.
Assim, durante as férias judiciais, os funcionários que vêm trabalhar ficam a cumprir processos com despacho que ainda não foram cumpridos (sim, por excesso de serviço), e vêm arrumar as secções, escolhendo os processos que podem e devem ser mexidos e aqueles que podem e devem ir para o arquivo. Entre outras actividades como operações de arquivo de processos e objectos, incompatíveis com o atendimento público no Tribunal e o sistemático andamento de processos para dentro do gabinete do magistrado e deste para a secção.

Quanto aos Magistrados, são poucos os que gozam os dois meses de férias de Verão. Por exemplo. Há que assegurar o serviço de turno, pois durante as férias judiciais tem que haver um Juiz e um Procurador que assegurem o serviço urgente. Se em Lisboa, isso pode ocupar um ou dois dias... no Círculo de Beja, ocupará duas semanas (!). Duas semanas das férias em que o Juiz e o Procurador têm que assegurar o serviço em todas as comarcas do Círculo, o que obriga a deslocações diárias que podem ultrapassar os duzentos (!!) quilómetros.
Para além do serviço de turno, é durante as férias que os Juízes conseguem estar com calma no seu gabinete a proferir as decisões mais complicadas. Porquê? Porque durante o ano, diariamente, um juiz recebe entre trinta a cem processos que demandam a sua atenção para lhe apôr um despacho. E se nalguns um minuto é suficiente, noutros nem uma hora, ou um dia de trabalho chegam para decidir. Como tal, ficam de lado, à espera daquele dia em que não haverá processos para despachar (como nas férias) para receberem a merecida atenção.
Também sei de juízes que gozam as férias na íntegra, sem pensar num processo que seja durante aqueles dois meses. Normalmente, são os que trabalham doze a catorze horas por dia durante o resto do ano. São aqueles que não têm fins-de-semana, pois só ao sábado e ao domingo conseguem a tal calma para as decisões de fundo.
E, diga-se, um Juiz não pode ir de férias em Fevereiro, por exemplo, quando as tarifas das viagens são as mais apetecíveis e os destinos estão mais aprazíveis. Não pode conhecer Marrakech sem gente em barda, porque só lá pode ir durante a Páscoa, quando todos invadem aquelas paragens. Porque muito complicado será permitir que um Magistrado se ausente quando se espera que tudo funcione bem.

Já agora, os advogados também não querem que os Tribunais "andem" nesse período. E porquê? porque precisam de ter algum período do ano em que possam trabalhar sem que os prazos estejam a correr e a pressionar. E ainda ter tempo para ir de férias.

É por isso que eu acho que a medida anunciada é um disparate demagógico para iludir o cidadão comum e pouco esclarecido. Porque, se reduzirem para um mês o período de férias judiciais, vamos ter muitos problemas.
Não me parece que possam obrigar um Juiz a ir de férias em Agosto. E se ele quiser fazer férias repartidas, uma vez que só tem um mês para gozar? E quando terá férias o Juíz que estiver de turno?
A única hipótese será mesmo acabar com as férias judiciais. Todas. Como os hospitais que também não têm férias. E cada um marca as suas para quando quiser. O que será muito prático em cidades como Lisboa e Porto, onde há muitos Tribunais e Juízes, mas não em Estremoz, ou Sabugal, onde apenas um Juiz existe. E se se ausenta, outro terá que assegurar o seu trabalho urgente. O da comarca ao lado, ali a vinte, trinta, ou mais quilómetros, que tem os seus processos para despachar e julgamentos marcados, pois naquele dia, para si, não há férias.
E preparem-se para que, então, o Juiz e o Procurador trabalhe apenas das 09h00 às 17h00, almoçando durante uma hora. Sem trabalhar aos fins-de-semana, como qualquer outro trabalhador tem direito... Porque se é certo que com a magistratura se abraçam grandes responsabilidades, o certo é que um Magistrado, antes de tudo o mais, é uma pessoa... não um escravo da função que exerce.
Tenho a nítida sensação que a medida só tem uma finalidade. Atacar a Magistratura. Judicial e do Ministério Público. Porquê? Porque são incómodos...

Já agora, porque razão os senhores deputados, que não têm obrigação de exclusividade e enquanto estão na AR são simultaneamente advogados, engenheiros, sei lá, têm três meses de férias no Verão? Não é preciso legislar a toda a força nesse período?

18.3.05

"Vidas" (4)


BOLA

O estádio encontrava-se cheio que nem um ovo. Não havia memória de tanta gente alguma vez ter assistido a uma partida assim. Provavelmente o clube anfitrião viria a ser sancionado posto que, era uma certeza, entrara mais gente do que a permitida para estes jogos internacionais.

Sob o olhar daqueles milhares de pessoas os artistas empregavam o seu suor, uns mais serenamente que outros, tentando fazer aquilo para que eram pagos. O futebol que se jogava dava espectáculo, e nem um ou outro lance mais polémico chegava para manchar a festa.

Quase no fim da partida, sentindo uma inspiração pouco natural, o jogador de futebol recolheu a bola à saída da grande área, logo após um pontapé de canto mal marcado pelos adversários, e iniciou o contra-ataque. Disparou que nem uma flecha sentindo-se empurrado pelo coro eufórico da multidão. Junto ao relvado distinguiu a voz rouca do Mister, já cansado de tanto gritar, incitando-o para a baliza contrária.

Com um magnífico golpe de rins ultrapassou o primeiro que se lhe atravessou no caminho. Com um salto espantoso evitou o "carrinho" que o quis derrubar. E continuou a perseguir o esférico. Levantando a cabeça viu aproximar-se com um ar determinadíssimo o defesa central mais conceituado de sempre. Tinha fogo no olhos. Os longos cabelos que saltavam enquanto corria tornavam-no ainda mais ameaçador.

Apesar de seguir muito depressa, ainda conseguiu mais uma mudança de velocidade e, lançando a bola pela esquerda, correu pela direita do adversário e chegou lá primeiro. Nesta altura só enorme o guarda-redes se encontrava entre ele e o golo. Por entre a respiração pesada que o esforço lhe impunha, ouviu os gritos de glória daquela multidão. Sentiu o rumor que, jurava, fizera tremer até o relvado. Apesar das queixas dos músculos foi clarividente, e num passe de magia deixou o gigante enluvado estendido no verde tapete, prosseguindo, imparável, a corrida para as redes.

A cinco metros da baliza, vindo ligeiramente da direita, chutou violentamente, com a alegria de quem seria eleito o homem do jogo. Já se via nos jornais. Imaginava as vezes que as imagens daquele sprint iriam passar na televisão.

A bola partiu, célere, e atingiu com um estrondo a base do poste, sendo rechaçada exactamente para o sítio de onde partira, embatendo nos pés do jogador que a chutara. Lançado que vinha na corrida, o jogador tropeçou, caiu para a frente e bateu com a cabeça no poste. Sangue encontrou o caminho do ar, vindo assistir ao resto da partida.

O jogador de futebol morreu quase de imediato, com um forte traumatismo craniano.

A sua equipa perdeu 1 - 0.

O empate bastava para passar a eliminatória.

Os fans nunca lhe perdoaram.

17.3.05

Tiros


Há algum tempo uma senhora faleceu quando estava entregue nos braços da medicina. O marido julgou o médico encarregue de a tratar responsável pelo óbito. E por isso nasceu um processo judicial de apuramento da eventual responsabilidade criminal do médico, o qual ainda corre termos.
Porém, o desgostoso viúvo não se contentou com a marcha da justiça e, há coisa de dois dias, em pleno Tribunal de Portimão, disparou sobre o médico quando este aguardava uma diligência no dito processo. Agentes da GNR presentes para outra diligência intervieram, e dentro do Tribunal ocorreu um tiroteio (!!) no qual foram disparados mais de uma vintena (!!!) de tiros. O atirador foi finalmente detido. O médico hospitalizado estando em recuperação.

É preocupante aquilo que o episódio revela.
Em primeiro lugar, e fruto de uma campanha de descredibilização que questiona as decisões judiciais sem qualquer rigor ou critério, permite-se duvidar da eficácia do aparelho judicial. Em notícias e comentários superficiais, violando regras essenciais como o contraditório ou o direito de defesa, e sem conhecimento das regras e procedimentos legalmente exigidos, contradiz-se aquilo que um Tribunal decidiu, com a segurança de um arauto da Verdade.
Assim, já há quem prefira fazer justiça pelas próprias mãos. A "sua" justiça, aquela que é parcial, e à qual falta esclarecimento ou segurança. A justiça ilegal e perigosa.
Situações como esta têm que ser severamente cerceadas, sob pena de regressarmos à anarquia, de vivermos num faroeste onde prevalece a lei do mais forte.

Mas mais se revela. Para quem corre no meio, percebe o desespero, a impotência que existe em casos de "negligência médica". Se, por um lado, hoje em dia há quem pressuponha a medicina como infalível e não aceite a incapacidade desta para sanar certos males, a verdade é que, nos casos menos evidentes, e que chegam às mãos do Juiz, este não pode decidir sózinho a questão. A matéria exige conhecimentos técnicos dos quais não dispõe, pelo que o Juiz tem que recorrer ao perito médico, ficando "preso" ao juízo deste. E, ensina-nos a experiência, que tais juízos periciais são muitas vezes inconclusivos, difusos, incertos.
A única forma de convencer os que se julgam vitimados é demonstrando a seriedade do processo, as exigências do mesmo e assegurando-lhes a dedicação dos meios disponíveis e imparcialidade do decisor. Para isso, é necessário respeito pelo sistema judicial, e não permitir que o minem com técnicas terroristas.
Um acto médico mal executado não tem necessariamente que ser crime. Um crime é algo de extraordinário. Algo como dar um tiro noutrem. Aí sim, dificilmente estamos perante outra coisa que não um crime.

Finalmente, o episódio revela a insegurança nos Tribunais portugueses. Salvo raras excepções, não há qualquer controlo de entradas e de segurança. Se alguém descontente com a condenação ou absolvição proferida, quiser tirar desforço ao decisor, poderá entrar Tribunal adentro, e chegar ao seu gabinete tendo por obstáculo apenas uns avisos escritos de "passagem proibida" ou "acesso reservado".
Felizmente ainda vivemos tempos de brandos costumes. Mas quando a polícia é emboscada, como ocorreu há alguns dias na Cova da Moura, parece-me existirem razões para começar a pensar em pôr termo ao laxismo em que se vive. E, sem excessos securitários, passar a olhar de outra forma para esta questão.
Senão, como em tantas outras situações, só depois de casa roubada se põem trancas na porta. E passamos a remendar o fundo ao barco quando já entrou tanta água que o mesmo ameaça ir ao fundo.

"Vidas" (3)


ESTUQUE

Sentiu um tremor no íntimo das suas entranhas, um sinal que percorreu todo o corpo, ascendeu ao cérebro e fez vibrar os olhos. Estes humedeceram-se, ganharam brilho. Contraiu os seus cantos, onde rugas nasceram e se aprofundaram.

O tremor repetiu-se, mais intenso, forçando o eco na caixa torácica. Conhecia bem demais os sinais. Contraiu-se. A língua contra o palato.

A visão fugiu-lhe, a sala desfocou-se, o mundo ficou turvo, enquanto os músculos abdominais tinham um espasmo. O diafragma oscilou e empurrou o ar para o esófago. A massa aeriforme subiu. Fez vibrar as cordas vocais e toda a garganta, toda a boca entretanto escancarada, todo o corpo, participaram na produção, realização e apresentação de um monumental arroto. O som, prolongado, ressoou na sala vazia, ampliado.

Grotesco!

As finas paredes internas do imóvel estremeceram e transmitiram à estrutura do prédio o som da agressão social.

No andar de cima, Felisberto, calmo funcionário público das Finanças, caçador aos fins-de-semana, pegou na caçadeira, carregou-a e bateu à porta do vizinho.

Quando este, a arrotar, a abriu, disparou sem hesitar, desfazendo o peito da besta.

*
Em Tribunal foi absolvido.

Ninguém recorreu.

Dias depois, o presidente do Colectivo de Juizes, que morava do outro lado da rua, assobiava enquanto tapava de vez, finalmente!, as rachas no estuque.

16.3.05

"Vidas" (2)


NAVEGAR

Cada vez que entrava num barco, que navegava, sentia o mesmo tremor nas entranhas. Não!, não era enjoo. Era como se quinhentos mil marinheiros que o mar já tragou voltassem ao mundo pulsando no seu sangue.

A vibração dos motores na planta dos pés, o silêncio do vento na vela enfunada, o chapinhar do remo na água parada. Como todos estes sons catalisam o regresso de um passado ao mar devoto, e recordam uma nação feita à medida de um oceano, de dois oceanos, mares, rios, toda a água do planeta.

Se o Espaço fosse água, seria ele e os seus quinhentos mil marinheiros mortos quem o explorariam. Não o sendo, por cá fica, pelos cacilheiros, pelos fora-de-bordo. Pode sonhar com um veleiro. Pode sonhar com o que quiser.

Poder..., pode!

Quinhentos mil e um marinheiros...

Anos '80 - 80 Memórias (31)

Matrículas
Foi há poucos dias publicada a legislação que define o futuro modelo de matrículas. Passam a ser dois números - duas letras - dois números, no figurino actual do fundo branco, e do azul Portugal com as estrelas da União.
Porém, quem não se recorda das matrículas nos anos 80?
Para começar, as letras estavam onde deviam: no início, onde garantiam o equilíbrio estético de uma identificação sequencial. Depois... depois tínhamos as matrículas de plástico, duro, preto, com os números em alto relevo, brancos.
Certamente não reflectiam a luz como as actuais, mas eram tão nossas, tão portuguesas.
Não falo das matrículas com saudosismo, pois não é, certamente, de uma matrícula que vou sentir a falta. Mas cresci a ir para a praia jogando o jogo das matículas, aquele em que um malfadado algarismo no fim da chapa fazia alguém carregar todas as toalhas, sendo negras e brancas as matrículas que definiam o perdedor.
Por isso, o seu visual retro é uma memória daquela década, perdida com a adesão à CEE, hoje União Europeia, e a sua matrícula mais evoluída.

15.3.05

Porquê, PSL?

Qual era a dificuldade de, logo pela manhã de ontem, PSL ter assumido o regresso à Câmara de Lisboa?
Qual era a necessidade de criar mais um "caso"?
Não saberia ele ainda o que fazer? Bom, nesse caso a sua indecisão revela a gravidade de escolhê-lo para qualquer cargo, seja ele qual for.
Nas próximas autárquicas votarei em Lisboa. Sempre é mais um voto contra PSL. Sim, porque tenho a certeza que vai haver recandidatura.

"Vidas" - (1)

A compilação que se segue tem o título "Vidas". Vão suceder-se vidas, surreais. Não se espantem, pois, pela falta de verosimilhança. No inexistente mundo da ficção podemos ir onde a realidade não nos deixa.Acho que foi por aí que andei.
Por vezes fazem-se segundas leituras, à procura de mensagens subliminares. Não o aconselho. Porque posso dizer que apenas escrevi imagens, que por alguma razão me despertaram a mente.



Vivia debaixo da terra. Não era uma toupeira mas, no fundo, podia sê-lo. Debaixo da terra é escuro, mais escuro que a noite. Mais escuro que o negro. Mais escuro que a cegueira.

No entanto, não era cego. Sabia-o. Sabia que tinha olhos. E que estas preciosas obras da engenharia óptica funcionavam. Apesar de tudo.

Os olhos operam com a luz que absorvem, cativam, analisam, filtram... e só assim, segundo consta. Porém, debaixo da terra não havia luz. Nenhuma. Nem um reflexo, nem um cintilar, nem um pirilampo. E ainda assim os seus olhos funcionavam. Sentiam o relevo da terra húmida. Terra húmida que exalava um odor sem o qual decerto seria incapaz de viver. Terra húmida, minhocas, vermes raízes...

Também ouvia as raízes a crescer, a sorver os nutrientes que escorriam pelos túneis. Raízes que chegavam a vedar túneis.

Não sabia como fora ali parar. Não se lembrava de qualquer outra experiência anterior a este estar debaixo da terra. Não sabia quem, ou como, fizera os túneis. Não sabia como passava o tempo do qual apenas tinha a noção que o estômago lhe dava. Sabia apenas que vivia só, debaixo da terra... E que lá em cima havia gente.

Gente.

Que bom era estar ali em baixo, onde gente não há.

14.3.05

Traição?... não, apenas tradução


Seguindo as indicações da Noite, aprendi a ver, no SiteMeter, como certas pessoas descobrem este blog, recorrendo aos motores de busca.
Já encontrei pesquisas curiosas, como "pavilhões metálicos" "Zita Seabra PCP" "Guerra Fria", e outras que de cor não me lembro. Mas hoje descobri uma novidade. Caso não saibam, o Yahoo tem uma ferramenta que permite "traduzir" um site. Automaticamente. E alguém traduziu o Urso-Polar para inglês. Fui ver o resultado e arrepiei-me com o que li. Horrível.
Então, experimentei fazer ao contrário. O único site inglês de que me lembrei foi o da Lycos, o portal de acesso de um servidor, pelo que pedi a sua tradução para português. Para verem o rigor da "máquina de tradução", o resultado levou a pérolas como:
sinal dentro (sign in)
povos em linha agora (people online now)
e coisas como
Faça exame de uma pista da memória do desengate para baixo com os email engraçados carta e verificação para fora da seleção de brinquedos de Retro (esta nem sei o que é pois quando acedi à página no original já lá não estava)
e
Verifique para fora das ofertas as mais atrasadas de Dell. Tudo das tevês e dos computadores às chaves de dados (Check out the latest Dell offers. Everything from TVs and computers to data keys)
e ainda
Em linha datando Encontre-se com me em (sem palavras).

Definitivamente, estamos ainda muito longe do tradutor automático universal que permitirá a todos, terrestres e extra-terrestres, falar inglês como nas séries e filmes.
Finalmente, deixo uma palavra para o Blogger e o Haloscan que creio estão a passar por um mau dia. Por não ter acesso ao segundo e só agora ter conseguido entrar, com dificuldade, no primeiro, fico-me por aqui, e guardo a leitura dos comentários, se os houver, para amanhã.

11.3.05

"Um Dia Acordei" (10 - epílogo)


SANTUÁRIO
Uma das coisas que sempre me impressionou nas igrejas foi o silêncio. Em especial nas antigas, construídas noutros séculos a mando de reis a Deus tementes. Mais, se foram bem construídas, a maioria dessas tem um jogo de luzes que aquece o coração, desperta a alma e alimenta a fé.

Até mesmo os ateus ou agnósticos não podem ficar imunes ao calor que a luz transporta uma vez atravessados os vitrais. Com uma nave alta, em pedra erguida, não fica gélida desde que o astro-rei faça um dos seus raios cruzar um vitral.

E o silêncio.

Podemos não ligar ao Deus dos católicos... Mas se queremos um momento connosco, uns instantes de sossego introspectivo, encontrá-lo-emos num banco de igreja. Aí podemos contemplar a grandeza do nosso espírito, a entrega dos outros que aquelas paredes ergueram, o poder que um deus tem. E podemos pensar. Pensar enquanto vemos imagens de santos, gente que sofreu pelos outros ou que aos outros trouxe bem. Imagens de Cristo no Seu calvário, a bem da raça humana. Que desperdício, Jesus, que o Homem não merece que nada nem ninguém por ele se sacrifique. O que dizem ser Teu Pai disso tinha obrigação de saber, Ele que tudo sabe. Foi cruel deixar-te pendurado em duas travessas cruzadas. Mas também foi cruel para os outros milhares que o mesmo destino tiveram e dos quais não reza a História. E os que anterior e posteriormente sofreram as consequências da prepotência dos outros.

Aqui onde estou vejo com clareza os vitrais que rodeiam a nave. Em todos eles está uma das etapas desse calvário, passos que todos os anos o Papa repete numa cerimónia, conforme a saúde lho permite. São imagens estilizadas à luz dos conceitos de outros séculos. São figuras de várias cores construídas, que evoluem até à ressurreição. Não me dizem muito, mas dizem-me muito mais do que há alguns anos atrás.

Criei este hábito de fugir para as igrejas. Fugir e contemplar. Pensar. Aos poucos construí a minha filosofia, a minha religião. Retirei deste ambiente um modo de ser. Não consegui, porém, suportar aqueles que aqui exercem o seu mister, aqueles que velam pelo templo e o usam para transmitir a dita Palavra.

Que refúgio poderia eu encontrar aqui? Desde que me abandonaste que fugi à sociedade. Deixei de ter amigos, deixei de sair com alguém. Felizmente a profissão permitia a solidão. Os restantes momentos vivia-os comigo.

Sonhava que voltarias...

Sonhava que verias o erro e tentarias emendar o passo em falso.

Sabia-te infeliz...

Sabia-me infeliz.

Mas depois ouvi dizer, contaram-me, do acidente. Doeu. Doeu saber que, ainda que o quisesses, não poderias regressar. Não poderíamos ser um outra vez.

Foi então que comecei a procurar o silêncio das igrejas. Porque é diferente. Poderoso. O silêncio lá em casa tende a ser deprimente. Aqui não, é sinónimo de respeito, de poder, de crença. Fé.

Tive que descobrir a Fé. Não me interessava a das religiões instituídas. São tantas que nada me garantia que alguma estivesse certa. A minha Fé. Foi essa que procurei. Procurei acreditar que estarias, algures, à minha espera. Que quando estivesse tudo preparado iria ter contigo e juntos continuaríamos o que ficou por acabar cá na terra.

Hoje, vinte anos depois, estou aqui. Já nem tenho o consolo profissional para ocupar algumas das horas diárias, pois é regra que quem tem mais de 65 anos já não deve fazer nada que não seja ser mantido, sustentado, à custa daqueles que ainda laboram. Hoje, sinto que as coisas estão quase preparadas. Sinto que falta pouco para te reencontrar.

Como sonhei com esse momento. Como sonho. Como acredito. É esta fé que vai tornar o sonho realidade.

Até já, meu amor.

Anos '80 - 80 Memórias (31)

Neste elenco de memórias já aqui falei da Guerra Fria e da rivalidade EUA -URSS. Porém, também nesses anos se viveram encontros titânicos de rivalidade extraordinária entre representantes, apenas, da União Soviética.
Quem não se lembra dos duelos Karpov - Kasparov? Eram vividos de forma intensa, deixando transparecer igualmente uma rivalidade entre o regime vigente (Karpov) e os ventos de abertura defendidos por Kasparov. Davam direito a notícias diárias, e por vezes comentários na televisão. Aliás, recordo anos antes aparecer no telejornal, ou nalgum programa desportivo, um mestre português em xadrez, com um quadro representativo do tabuleiro em velcro, comentando as jogadas feitas entre os campeões enquanto movimentava brancas e negras para cima e para baixo.
Graças a esta dinâmica, hoje desaparecida, quis aprender a jogar xadrez, e ainda hoje gosto de fazê-lo. Por falta de parceiro, recorro à dinâmica informática, apesar de apenas ter um programa básico a correr no computador e que, ainda assim, sempre me consegue bater.

Li hoje no Público que o campeão Kasparov se vai retirar. Ao fim de 20 anos de domínio. Pena é que o faça para se dedicar à política. Parece uma despromoção.

Governo

Amanhã teremos Governo novo.
Esperamos para ver.

Triste aniversário

Faz hoje um ano que Madrid estoirou, ceifando a vida a 192 pessoas que cumpriam o diário ritual de, em pacato e sonolento rebanho, se dirigirem para o trabalho. Muitas mais ficaram feridas, No corpo, e no espírito.

O trauma é doloroso. Reviver os momentos sofridos que se seguiram às explosões não deve ser fácil. Merece ser recordado e deve evitar-se a repetição de tais eventos. Eventos como o 11 de Setembro, já afastados por mais de três anos e que começa a resumir-se, apenas, à memória das idas efemérides.

Mas pensem nisto.
Como será viver no Iraque, onde todos os dias, repito, todos os dias, algo rebenta e leva consigo mais algumas vidas?


"Um Dia Acordei" (9)


FUGIDIA
Ela fugia.

Ela estava só.

Tantos anos de solidão. De companhias imperfeitas, dolorosas. De solidão.

Estava cansada. Cansada daquele dia. Ainda sentia a pele das faces presa por lágrimas secas. Sentia uma dor no peito, junto com aquele arfar que a afligia. Mas não parava.

Caminhava. Caminhava rápido pelas ruas cheias de gente. Gente que saía dos empregos, gente que recuperava os filhos que abandonara de madrugada, ramela no olho ensonado. Gente que a estorvava e ignorava. E arfava, que um maço de tabaco por dia deixa as suas marcas. Mesmo sem correr, ter atravessado toda a cidade a andar, rápido, a cansara. A vida cansa. A fuga cansava-a.

Fugia.

Hoje mais alguém ficara para trás. Chamara-o de amigo, primeiro. Ao fim de tantos anos acabou por chamá-lo de querido, de amante. No fim fora igual a todos os outros. E para além de perder um amante, sentia o vazio pelo amigo de outrora. Fora igual a todos os outros.

Todos menos um. Sim, um. Como ele fora diferente. Como eles foram diferentes. Como em breves momentos foram felizes. Momentos intensos, espaçados como as cidades que os retiam. Como fora cruel o fim.

O Fim.

Mas o fim foi selectivo. Escolheu-o a ele, deixou-a a ela. Deixou-a com um sentimento absurdo de responsabilidade, de castigo. De que o bom só acontece uma vez e se nos é retirado é porque dele não somos merecedores.

Tudo o que agora surja mais não será que um fraco sucedâneo. Não conseguirá nunca superar o modelo anterior, o modelo negado.

Nem mesmo sendo um amigo. Ele fora um amigo e um amante. Peça insubstituível, que não se conseguem transformar amigos em amantes nem amantes em amigos. Cada qual é o que deve ser. Nunca o que outro foi.

Sim, ele é insubstituível. Não quer isso dizer que o vazio que a apoquenta não possa ser preenchido.

Desde que não fuja.

Desde que rompa com o passado.

Como podemos romper com o passado se ele foi tudo o que sonhámos? Para quê o futuro incerto? Para quê o fugaz presente?

Ela vive no passado.

Eu, se calhar, também o faria.

8.3.05

Quota-parte

Preenchi e entreguei ontem a minha declaração de IRS, pela internet como já é hábito há vários anos. Cumpri assim a minha parte no inexorável mecanismo do fisco, que todos os meses me cobra uma fatia considerável do ordenado e me obriga a declarar uma série de coisas para beneficiar dos "descontos" da época e vir a receber, lá para o Verão, por sinal, uma agradável quantia.
Com efeito, só o trabalhador por conta de outrem é que não tem direito de se queixar do facto de, à partida, pagar os seus impostos e ser obrigado a um esforço suplementar para recuperar uma fatia dos mesmos a que tem direito. Creio mesmo que, se não fosse por isso, muita gente não entregaria a declaração anual de IRS.
É sempre com um lamento que se vê o total que o Estado arrecadou do nosso vencimento. Porém, sabendo eu que também sou "o Estado", não é total o desgosto. Sinto-me, isso sim, é legitimado para exigir que o poder executivo que gere a receita fiscal, o Governo, a aplique bem, com sabedoria, e não a desperdice. Infelizmente, nos últimos anos, tenho um imundo desperdício.
Pior ainda é saber que, se todos, mesmo todos, pessoas singulares e colectivas, cumprissem as suas obrigações fiscais, esta fatia que mensalmente me é subtraída poderia ser reduzida. Só que há um elevado número de párias, de fugitivos do fisco, de mercadores paralelos, de anónimos fiscais que não contribuem com a sua quota-parte, em prejuízo dos demais. De mim.
Agora resta esperar pelo reembolso. Em Junho, se tudo correr normalmente. Junta-se ao subsídio de férias e gera uma doce maquia.

"Um Dia Acordei" (8)


VELHA

Era uma velha com ar de quem pode contar muitas histórias.

Sim, era uma velha.

"Velhos são os trapos", dizem. As pessoas são idosas. Essa será uma idosa com ar de quem pode contar muitas histórias.

Estou em completo desacordo. Era uma velha.

"Idosa" é um termo terrível. "Idosa" soa a fardo, a antecâmara da morte, a lares e a maus tratos, a decrepitude e visitas constantes ao médico. "Idosa" é uma qualificação social, um pretenso escudo para as agruras da sociedade, uma desculpa patética da sociedade com a consciência pesada.

"Velha" não. Velhas são as árvores que aguentam as intempéries e estendem os seus ramos, as suas raízes, a sua sombra. Velhas são as casas que, mesmo em ruínas, mantêm as suas fundações firmes, sólidas. Velhas são as pedras que cá estavam antes de nós e depois de nós cá estarão. Velhas são as ondas do mar que sempre embalaram a vida.

Qual é a vergonha em ser velha? Aquela mulher era velha. Só de para ela olhar sentia a vida, uma vida extensa, antiga, cheia de experiências, de sol, de vento e chuva, cheia de vontade para ter resistido até agora. Agora que é velha.

Cada uma das suas rugas poderia ser a história de um dos seus filhos, ou dos filhos deles, ou mesmo daqueles que seus bisnetos são... já lhes perdeu a conta. São tantos. Estão por todo o mundo. Quantos deles já não chegarão a velhos? Quantos são já idosos?

Lembra-se da morte do Rei. Era pequena, mas não esquecerá o rebuliço, as almas perdidas nas ruas da cidade a temer pelo futuro, e o riso satisfeito do seu pai que nem sabia ler mas defendia fervorosamente a República.

República que viu nascer. E o Estado Novo. E o Estado Novíssimo. A primeira e a segunda guerra. A guerra colonial. Tudo viu. Em tudo isto estava o seu sangue. A sua família. E tudo acompanhou atentamente com a vivacidade que sempre lhe foi reconhecida.

Aquele brilho nos olhos pode ser o reviver de uma história em que poucos acreditarão. Ou se lembrarão de um dia ter existido.

Não a tratem, pois, por idosa.

Aquela mulher é velha.

Velha!

E ainda bem.

7.3.05

Expectativa

Sócrates já nos ofereceu um Governo. À primeira vista, não está mal. Tem gente de créditos reconhecidos em quase todos os Ministérios. Vamos a ver se se entendem entre eles, se as políticas são coerentes e eficazes, e se nos tiram deste marasmo sócio-político-económico em que nos passeamos.
Congratulemo-nos pela sobriedade com que o processo foi liderado. Se for essa a postura do Governo acaba-se com a governação pelos jornais. Sabem como é: diz-se que se vai fazer; se a malta gosta, fica com a ideia de que ficou feito; se não gosta, diz-se que já não se faz; e ao fim e ao cabo nada se decide ou executa. Sócrates tem quatro anos para governar. E o ideal seria que se dedicasse a isso e apenas com isso se preocupasse. Foi um bom começo.
Claro que Freitas do Amaral é uma surpresa. Mas, se Durão Barroso viaja do MRPP para a liderança do PSD, se Zita Seabra salta do PCP para o PSD, Porque não alguém do CDS para o PS? Espermos que ele seja eficiente e não apenas uma figura de senador.
Só mais umas palavras, desta feita para gente totalmente distintas: desportistas.
Naide Gomes superou as expectativas. Parabéns Campeã Europeia.
Tiago Monteiro cumpriu. Ficou à frente do único Minardi que acabou a corrida.

"Um Dia Acordei" (7)


NEVE
Sentia-me pessimamente!
Mais uma vez o destino passara-me a perna, fazendo ruir todos os meus planos, todas as expectantes antecipações que povoam o meu espírito. O desejo de te reencontrar, de voltar a tocar-te, via a sua satisfação adiada. Mais uma vez, um obstáculo impedia-me de estar contigo como previra. Mais uma vez a tua ausência prolongar-se-ia para meu desconsolo. Queria-te. Mais do que nunca.

Ainda faltava tanto para que ficássemos de novo juntos.

Entretanto, aqueles dois ali eram os únicos seres racionais que via. Estavam, no entanto, uns degraus abaixo na escala evolutiva em comparação com aquele gordo e ágil gato que repousava enroscado junto à lareira.

Maldito nevão!

Viera sem avisar.

"Possibilidade de queda de neve", disseram quando saí do hotel. Podiam ter dito que ia nevar desalmadamente, que Deus se fartara do algodão doce que fizera e o enviara todo para nós, cá em baixo.

Era tudo tão simples. Saía cedo, subia à Torre, recolhia daqueles irmãos as suas assinaturas que faltavam, descia, entregava tudo no notário, punha-me na estrada e chegava até ti num instante. Num instante. Era tudo tão simples.

Só que tudo se complicou.

Sim, acordei cedo. Sim, subi à Torre. Sim, os dois irmãos assinaram. Não, não desci logo.

O desgraçado do carro gripou com o frio. Nevava desde as dez da manhã, e foi debaixo de neve que abri o capot do carro. Com o meu olhar "especializado" inspeccionei o desolador conjunto de fios e tubagens, de peças metálicas que se expunham aos flocos cada vez mais constantes. O vento já assobiava.

O líquido refrigerante ainda refrigerava.

O depósito tinha gasolina.

O óleo estava na quantidade certa.

Os fusíveis estavam intactos.

Não via nada obviamente fora do lugar.

Chamei os irmãos.

Pareciam dois garrafões com pernas. Apesar do matinal da hora, o cheiro a álcool era o bastante para desinfectar uma enfermaria. O bafo rebentaria qualquer balão da GNR.

Mas o certo é que percebiam de motores.

Bastou meia-hora para descobrir a porcaria que entrara na tubagem bloqueando a bomba de gasolina, e limpá-la do sistema.

Ainda o ponteiro pequeno não começara a sua viagem descendente e já o motor trabalhava.
E já a neve bloqueara a merda da estrada. E continuava a cair. A cair. Nada levemente. Olhei para o carro uma hora mais tarde e já não o vi. Foi desesperante.

Fiquei com os dois irmãos. Depressa perceberam que não tinha a mesma disposição deles, que não encarava a vida da mesma maneira. Abandonaram-me junto a uma televisão que apenas captava a RTP 1, e foram testar os seus fígados em contínuos bagaços durante discutidos jogos de dominó.

O gato... já sabes como me dou com gatos, arranhou-me as costas da mão quando insisti em fazer-lhe uma festa. De vez em quando, desconfiado, abria um olho e mirava-me lá do fundo, daquela almofada castanha junto à lareira alta.

O resto já sabes... foram dois dias até poder estar aqui contigo. Até poder acariciar a tua cara, a tua pele, a tua carne. Até poder beijar-te. A face. Os olhos. A boca. Toda, por todo o lado.

Até te tomar nos braços e esquecer o tempo.

4.3.05

"Um Dia Acordei" (6)


EMPEDRADO

A janela antiga está tão maltratada quanto o prédio. Numa das zonas antigas da capital, um prédio de três andares, cinzento, sujo. Como todas as outras, tem portadas e muitos vidros pequenos, rectangulares. A tinta branca, estalada, acumula sujidade que o zelo da limpeza não consegue eliminar. Precisa de uma pintura. Tal como o prédio. Tal como tudo o que nele está.
Tal como a velha senhora que se debruça sobre a grade ferrugenta da pequena varanda. Fátima, nome santo o seu, cuja vida mais perto do Inferno esteve, contempla com os olhos húmidos o empedrado do passeio, doze metros para baixo.

As rugas são bonitas. Sim, Fátima tem uma daquelas caras velhas e enrugadas que mantêm a beleza de outros anos. Cabelos brancos, muito brancos, mas pouco cuidados apesar dos ganchos que o tentam compor. Não usa óculos, ao contrário das vizinhas, também elas nos setenta.

Veste uma bata axadrezada, azul, por cima de uma camisola, rubra como as lágrimas que vertera durante toda a noite. Lágrimas amargas, dolorosas, doentes. Lágrimas vindas directamente do coração que já não aguenta mais martírios. A vida foi cruel. A vida é cruel. Fátima não sabe porque pecado paga... mas só pode estar a ser castigada.

Foi pura coincidência ter nascido a treze de Maio e terem-na nomeado como a Santa que estava para vir. Mas desde pequena começou a encontrar o calvário de uma existência amaldiçoada. Aos cinco anos perdeu o pai, aos oito a mãe. Aos nove já a tia a pusera a trabalhar sendo alojada lá em casa como nos piores contos de fadas. Dez horas de trabalho a lavar a roupa dos outros e voltar a casa para mais umas horas de lides domésticas. Qual Cinderela, era menosprezada pela prima que se julgava a mais bela mulher do mundo apesar dos seu treze anos mal acabados.

Quando chegou aos dezasseis, conheceu um homem que por si se interessou. É esse o momento que revê agora que olha para o empedrado lá em baixo. É por esse momento, por esse homem, que os seus olhos agora choram, hoje, tantos anos volvidos. Era terno, carinhoso, e quis amá-la. Quem não quis foi a sua tia, que tudo fez para o afastar. Como podia aquela sirigaita arranjar um homem quando a sua filha, tão mais prendada, ainda estava solteira e já corria a fama de que ficaria para tia pois que nenhum homem das redondezas era capaz de domar aquele espírito mimado ou aturar a sogra que o mimara.

Sem coragem para se rebelar, deixou aquele anjo fugir, deixou que aquele ser abandonasse a sua vida. Perante a encruzilhada que se lhe deparou escolheu a pior alternativa, porque não teve coragem de caminhar na árdua batalha da emancipação.

Ainda hoje é assim. Ali, do alto da janela, vendo por baixo de si aquele candeeiro de ferro trabalhado, é incapaz de agir. Tudo na sua vida aconteceu por inacção.

Fátima só se livrou da tia quando ela morreu. Tinha vinte e oito anos, já estava envelhecida, já as ancas acumulavam celulite e trabalho, já a pele estava gasta e as mãos ásperas e grosseiras. Para não ficar com a prima, aceitou casar com Norberto, aquele viúvo que a cortejara em pouco mais de um mês. Incapaz de dizer não, casou com as lágrimas nos olhos, revendo o jovem de anos atrás, vendo o sonho que perdera, a vida que perdera, o calvário que ganhava.

Norberto era uma besta. Bebia a todo o tempo. Chegava tarde a casa e, se não lhe batia, montava-a com violência. Com um bafo a vinho e um terrível odor corporal, despia-se, despia-a e violava-a.

Começou por resistir. Mas era pior, pois ele batia-lhe e vergava-lhe a vontade de dizer não. Depois passou a fazer tudo para tornar mais rápida a tortura. Com os olhos fixos no tecto mexia-se o mínimo indispensável para que ele não conseguisse retardar o inevitável, para que rapidamente se viesse e caísse no sono. Depois ficava ali, acordada, tentando olvidar, sonhando com aquele jovem que a teria tratado bem, que com ela faria amor e não a violaria como a besta que a seu lado dormiu durante vinte e cinco anos.

Felizmente Deus concedeu-lhe a benção da esterilidade.

Apesar de desejar ter filhos, só os queria com um pai, e esse nunca o teve.

Lá em baixo passa um casal. Ela lembra-lhe como era, nos seus idos dezasseis. Ingénua, sonhadora, com o futuro nas mãos. Apetece-lhe gritar "Não largues o teu futuro! Decide tu!", mas não grita. Não precisa. Os tempos são outros, e hoje já não há tias como a sua. Hoje resiste-se, luta-se e enfrenta-se a vida pelos cornos nesta tourada em sociedade. Os olhos choram. As lágrimas quentes que vêm lá do fundo, lá do passado, precipitam-se nos doze metros que a separam do empedrado.

Uma vez viúva, uma vez só, passou os melhores anos de sempre. Não fazia nada de extraordinário. Não conhecia ninguém. Não tinha vida. Tinha rotina. Mas estava finalmente só. Foi o que teve de mais parecido com a felicidade.

Depois... aquelas dores. Não havia de ser nada. Resistiu.

As dores voltaram. Tornaram-se insuportáveis. De médico para médico, o diagnóstico foi dos piores. Era o bicho mau, o papão, o cancro. "Foi pena não ter vindo antes... agora...". Os rodeios do médico eram óbvios. Não teve coragem para perguntar quanto tempo lhe sobrava. Limitou-se a sair do consultório a chorar. E há já dois dias que chora.

É o segundo dia que está à janela. Aquela janela antiga, com muitos vidros e a tinta estalada. Debruçada sobre a grade ferrugenta da pequena varanda onde só cabem vasos contempla o empedrado e sonha em ir ter com ele em queda livre. Um impulso. Um segundo. E já está. Acaba-se a dor. Acaba-se o cancro. Acaba-se a mágoa.

Fátima não o fará. Não tem coragem. Coragem para agir. Ficará ali, à janela, até não conseguir sair da cama, onde terá uma morte agonizante.

Até então não deixará de recordar tudo. A vida de trabalho. A tia feroz. A prima solteira que acabou no Júlio de Matos. O marido que a violou e espancou. A doença que a come por dentro.

O empedrado que se recusa a subir.

3.3.05

"Um Dia Acordei" (5)


RAIOS

Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi...


Em fundo negro os riscos eléctricos, verdes, tomam uma forma bicuda, regular, quebrando a monotonia da linha horizontal. O constante apitar ajuda a perceber que o paciente ainda está vivo.


O diagnóstico é reservado. Cinquenta e seis anos em estado de coma há dois dias. O fole do ventilador, bfff... bfff... bfff... bfff..., também constante, agarra aquele homem à vida, insufla-lhe o ar, o oxigénio, alimentando-o do que nos é mais essencial.


O quarto, asséptico, é bem iluminado pelo sol que penetra por entre as cortinas. Sol de Inverno, que não chegaria para manter a temperatura que o ar condicionado assegura naquele espaço. Mas na cama, rodeado por aquelas máquinas do Inferno, ou dos Céus, ou do Purgatório, só está o paciente. Aquele homem de cinquenta e seis anos, em estado de coma.


Ele não ouve os piis..., nem os bffs..., ele não ouve. Não ouve os médicos, as enfermeiras que volta e meia por lá passam para se assegurarem de que os caríssimos aparelhos funcionam e que, em caso de urgência, fariam disparar o alarme na central.


Ele não ouve. Não transmite. Mas vive. Se a isso se chama vida. Se vida for um conjunto de acções musculares induzidas e reacções químicas celulares. Se vida forem aqueles pensamentos que tem mas ninguém conhece. Nem ele deles se recordará se um dia voltar ao mundo dos que sobrevivem sem máquinas. Ao nosso mundo.


Armando, sim, é esse o seu nome, pensa agora, ainda que vagarosamente, ainda que demore uma hora para realizar um silogismo que nos levaria um minuto. Armando pensa como tudo aconteceu. Toda a vida defendeu a tese de que ninguém estava no sítio certo com as pessoas certas. Se alguém encontrava o seu outro eu, o seu complemento, aquele alguém a quem chamamos de amor, estava a exercer uma profissão, um ofício, um emprego que não lhe agradava por inteiro, que não era o que realmente ambicionava. Se porventura assumia a actividade desejada, por certo tinha o homem ou a mulher errada a seu lado. Aquele outro que o completava teria ficado algures no passado, ou então inalcançável num futuro que não seria vivido.


Esta era a tese de Armando. Com ele foi assim. O mundo das finanças era o seu. Sempre adorara lá se movimentar. Sempre quisera tê-lo. E acabou por o conseguir. Nele fez fortuna. Nele se tornou invejavelmente capitalista bem sucedido.


Nunca teve a mulher certa. O seu casamento não teria sido menos emocionante se escolhesse um frigorífico para mulher e decidisse adoptar o seu único filho. A viuvez trouxe-lhe a calma e satisfação de outros tempos. Até que ela surgiu.


Vinda do outro lado do Atlântico, aquela mulher. Aquele amor. Aquele sentimento que havia desistido de procurar. Que determinantemente julgara fora do seu alcance.


E pôs tudo em causa. A sua teoria.


Ahhhh! Que raiva!


Deus existe. Armando, que nele nunca acreditara, reconhecia agora a Sua existência. Deus existe, pensava. É um bicho mau e sádico que se diverte com a nossa dor. Com o desfazer das nossas alegrias. E ri imenso quando sonhamos com a felicidade. Mas, pudera!, Deus está só. E como todas as pessoas sós, feitas à Sua imagem, tornou-se amargo. Uma eternidade a amargar.


Logo, omnipotente mas incapaz de criar um seu igual, Deus não é feliz. É amargo. E se um homem, criação Sua para se divertir, qual TV, aspira a ser feliz, ele trata de desfazer tudo e mostrar que um insignificante não pode ousar ter aquilo que lhe está vedado.


Só isto justifica aquilo que lhe aconteceu. Armando não tinha problemas. Vivia como queria porque já não era economicamente dependente de nada nem de ninguém. Tinha profissão, sem qualquer horário, uma actividade que lhe dava mesmo gozo em exercer. E acordava todas as manhãs ao lado da mulher que amava, que o amava.


Naquele dia as coisas não tinham corrido bem. Primeiro a avaria no carro. Depois a chuva, a intempérie. O taxista que recusou levá-lo à casa de campo porque era longe. O taxista que aceitou levá-lo mas cujo o hálito era alcoolicamente preocupante. O pequeno despiste que o assustou. Que o fez dizer: "...deixe estar. Mesmo com a chuva eu faço o resto a pé. São só dois quilómetros e faz-me bem andar". A caminhada. A chuva a aumentar. O vento que destruiu o guarda-chuva e o expôs aos elementos. A trovoada. O raio.


O raio que Te parta!


Deus, Demónio, Bicho Mau... Ser Intragável que, invejoso, mal motivado, usaste os poderes de Zeus e fulminaste Arnaldo com um raio.


Com um raio?!


E porquê? Porque quis ser feliz.


"Mas eu vou recuperar, estás a ouvir, oh filho da puta? Vou sair daqui e ser feliz..."


Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...

2.3.05

Animação

Espreitem aqui, e vejam verdadeiras pérolas da animação. Grandes filmes em 30 segundos reencenados por coelhos. Não acreditam? Vale a pena ver. :o)

"Um Dia Acordei" (4)


SAL


A mesa quadrada é igual às de tantas tabernas por esse Portugal fora. Os dois que lá bebem também passariam despercebidos em qualquer um desses templos do homem lusitano do princípio do século vinte.


Em cima, um jarro de barro que já foi cheio três vezes por aquele barrigudo com pêlos a sair das orelhas e das narinas, e que limpa a bancada de mármore com um pano, outrora branco, encharcado do vinho que vai sendo derramado por homens de rude instrução.


Dois copos completam o conteúdo da mesa escura, suja. Frente a frente, dois indivíduos vão consumindo o carrascão tinto que sai daquele barril com trinta anos. O barril, que o vinho nem doze meses tem. Aqui é assim, não se deixa envelhecer. Desde que venha da uva, seja tinto e tenha álcool os fregueses mais não exigem.


Dizia eu que eram dois homens. Apesar de sentados, percebe-se que são baixos. Molde antigo aquele que fazia os homens com metro e meio. Não é como hoje, que qualquer puto passa do metro e oitenta e facilmente se confunde com um jogador de basquetebol.


O mais gordinho é deveras curioso. O cabelo já é escasso, rara anedota do outrora, mas, ainda assim, comprido e zelosamente penteado pela manhã com um pente molhado que cola as finas repas à cabeça pequena. O problema é que, com o correr do dia e do vinho, vai ficando solto e despenteado, tornando-se exemplo acabado de como um quase careca pode ter de sacudir o cabelo dos olhos.


O nariz é vermelho, mas nada abatatado. A sua leveza de linhas deixa-nos na dúvida se tem alguma nobreza ou se descende de Pinóquio. As faces igualmente rosadas não escondem a pele branca do sujeito. Muito branca, quase como a folha em que escrevo.


Não tem pescoço. De gravata deveria parecer um saco do lixo mal amarrado. Mas gravata é vestuário que já não se lembra de usar... desde que lhe morreu a mãe, há tantos anos.


Ventura é o nome por que é conhecido. Para mim, se lhe tirassem o copo, via a figura de um heroinómano dos anos cinquenta... Mas não. É verdade que se injecta, mas é na barriga, com insulina... Também é verdade que o faz com aquelas seringas antigas, de vidro, que todos os dias ferve ao mesmo tempo que aquece a sopa que lhe conforta o estômago antes de se deitar. Sim, que apesar de beber muito todos os dias na taberna do Jaime, chega sempre à casa fria em condições de aquecer o caldo que a mulher-a-dias, vizinha de baixo, lá deixa.


Curiosa relação, a deles...


Ventura nunca casou. Conheceu mulheres, mas pouco. Nunca foi um amante, muito menos um marido. A vizinha é viúva. Aceitou o emprego porque a pensão é míngua e o Ventura tem uma boa reforma lá da empresa. E depois, porque lhe custa ver aquele farrapo sem ninguém que por ele olhe.


Então, todos os dias lhe deixa um tacho com a mesma sopa que para si preparou, e arruma, muito superficialmente, a casa. Uma vez por semana finge que limpa o pó e lava-lhe a roupa. Até mesmo a da cama, que ela própria muda. Custa pouco. Mantem-a ocupada, e rende-lhe vinte contitos por mês que sempre vão chegando para a conta da farmácia.


Pois o Ventura está sentado na mesa quadrada, frente àquele outro homem, fitando-o no olho.
Sim, no olho.


"Meia-Vista", como o conhecem lá pelo Jaime, só tem o olho esquerdo. O outro, a julgar pela cicatriz que cruza a órbita, nascendo na fronte e terminando no maxilar inferior, ficou-se algures na ponta de uma navalha manejada por um rápido canhoto.


"Meia-Vista", parece um marinheiro. De azul vestido, tem na cabeça um boné que nunca navegou mas se confunde com aqueles das imagens de marinheiros passados. É a grande dor da sua vida, nunca ter embarcado. Mas primeiro foi a mãe. Depois a mulher. Depois a filha. Nunca quis deixar nenhuma delas e todas o deixaram. Desculpa só tem a primeira, que foi chamada à Eternidade cumprida que estava a sua missão na terra. A outra trocou-o por um caixeiro-viajante. E a filha, por si criada com sacrifício desde os cinco anos de idade, esqueceu-se dele quando emigrou para a Suíça com um recém-conhecido.


Só, naquela casa minúscula, não tem a sorte de Ventura. Ele mesmo cuida de si. E o resultado está à vista, que as duas divisões já são pasto para pequenos roedores e alguns insectos rastejantes. Porém, isso não lhe interessa, que o vinho de má qualidade que o Jaime lhe vende tudo apaga.


O cabelo é totalmente branco, talvez um pouco amarelado por força da higiene que é parca, e ainda farto para quem já aparenta uns setenta anos. A sua pele é vermelha, forte, como se andasse pelo mar como o marinheiro que sonhara ser. Enquanto mira o Ventura, que ao contrário dele fuma (e sem filtro, ainda por cima) palita os dentes com as unhas. Não é bonito de se ver, mas hábitos assim nascem com os pais e jamais se perdem.


"Meia-Vista", fala pouco. Ouve mais. Muito atentamente ouve pela milionésima vez as histórias do Ventura. Todos os dias as ouve. Por entre jarros de vinho que com orgulho faz questão de pagar a meias, o velho de um olho só mantém o seu sonho. Não há ratos nem baratas, nem caspa ou seborreia, piolhos, pulgas ou qualquer outra merda que lho roube.


"Meia-Vista" sonha ser marinheiro.


Algures naquela alma está o mar e um barco.


Quando morrer não vai para o Céu, não. Vai vogar por cima das águas num daqueles veleiros de outrora, correr mares, ilhas, sol e vento, e sentir nos lábios o sabor do sal.

1.3.05

Novidades a (médio) Oriente


O primeiro-ministro libanês, Omar Karamé, anunciou esta noite a demissão em bloco do seu Governo, não resistindo às manifestações populares e à oposição dos restantes partidos. A decisão foi já aceite pelo Presidente Emile Lahoud
Quer a foto quer o texto, a servir de introdução, foram "roubados" do Público on-line.
A ideia de que um governo do Médio-Oriente, assente numa maioria parlamentar que derrotaria a moção de censura apresentada, se demitiu porque o povo veio para a rua é surpreendente.
Ventos de mudança? Será cedo para o afirmar. Mas que é algo de diferente e inesperado, é. Até parece uma democracia ocidental europeia.
Resta-nos esperar por mais novidades do Líbano e ver se não terão outras surpresas para nós. De preferência agradáveis.

TAP

A publicidade anda pelas ruas. A TAP modernizou a sua imagem. Aquilo que vi nos anúncios não me agradou, porque acho que o novo logotipo tem pouco de institucional.
Ontem vi o primeiro avião já com as novas cores. Enquanto ele sobrevoava Lisboa em rota de aproximação à pista da Portela fiquei mesmo triste com a nova imagem. Agora associo a TAP àquelas companhias de baixo custo (e qualidade).
No site da TAP apenas consegui sacar esta imagem. É estreita, mas dá uma ideia do que vi.
Certamente haverá quem goste...

"Um Dia Acordei" (3)


PERGUNTAS

Estava realmente desconfortável. A cadeira era dura como é costume nestas instalações do Estado. As pessoas, horrivelmente simpáticas, lançavam-me sorrisos de benção. Como se eu precisasse do seu apoio. Como se me interessasse a opinião daquelas mulheres desconhecidas que se sentavam na mesma sala que eu.

Todas elas tinham crianças sobre as quais depositavam a sua atenção, estivessem a correr, sentadas, a choramingar ou ainda, devido à tenra idade, a dormir como só os néscios e as crianças conseguem.

Eu tinha duas aos meus cuidados. A Filipa, de seis anos, que tentava comunicar com uma miudinha loira mais alta que ela, e a Inês, com a idade de menos dois meses. Faltavam ainda dois meses para que eu aliviasse o meu corpo do peso incómodo que a barriga agora proporcionava. Mais ainda naquela sala de espera onde nos obrigam a levar os nossos filhos para uma periódica injecção matinal.

Chamaram mais um nome. Uma velha ergueu-se com esforço e chamou o neto. Curiosamente, fez-se silêncio. Todos olharam para o rapazinho que naquele momento estacou, ergueu os olhos e deixou transparecer um esgar de horror. Até ali aguentara-se, tentara vencer o medo que a sua mente guardara de pretéritas experiências. Mas aquele apelo tornou presentes as agulhas, as seringas, a dor... O rapazinho gelou e ameaçou fugir, fazer uma birra, qualquer subterfúgio válido. A avó cortou-lhe a dignidade:

- Onde pensas que vais? Queres ser um homem ou um maricas? Comporta-te e vem cá! Olha a vergonha por que estás a passar. Já viste como aquelas meninas estão ali sem medo?

Pronto! Engoliu alguma saliva para humedecer a garganta que ficara subitamente seca, endireitou-se e olhou de soslaio para as duas raparigas. "Que raiva!, porque é que aquelas desgraçadas têm de estar tão calmas? Ahhhhh!!, odeio miúdas!" Ainda em pânico, mas atingido na sua infantil virilidade, deu a mão à avó e passou por mim, pobre anho, como se fosse para o sacrifício. Decerto que hoje à tarde, quando estiver a jogar computador, que hoje já não se joga à bola na rua, não se recordará mais deste momento.

Eu, pelo contrário, lembrava-me constantemente da Inês que fazia questão de demonstrar as suas habilidades para o futebol ou artes marciais. Fechei os olhos por uns segundos recordando com um arrepio as dores e o prazer de ter trazido a minha Filipa ao mundo. Iria passar por tudo outra vez. Compreendia tão bem aquele rapazinho. As dores também me assustam. Sempre tive pavor da dor. Mas... receber nos braços uma coisinha encardida, viva, que dentro de mim saiu é um milagre que compensa quais quer dores.

Senti um beliscão no braço. A minha mais velha fazia questão de me chamar a atenção com uma ferroada.

- Mãe, esta é a minha amiga Catarina. - espantoso, como as crianças fazem e perdem amigos. Há vinte minutos atrás nem se conheciam.

- Olá, Catarina. - respondi. Agora já sabia. Dali a pouco uma destas senhoras diria para ela não me incomodar com perguntas, mas meteria conversa comigo. E em vez de conversar com uma criança, das coisas que mais gosto de fazer, teria de aturar uma mulher com uma conversa igual a milhares de outras de sala de espera.

- Estás grávida? - perguntou a menina loira tratando-me por tu, como fazem todas as crianças desta idade.

- Estou.

- A Filipa diz que estar grávida é ter uma irmã na barriga.

- Desta vez é. A Filipa vai ter uma maninha.

- É um bebé?

- É... uma menina bebé.

- E vai sair da tua barriga?

- Vai, daqui a dois meses.

- Porquê?

- Porque só então é que está pronta.

- Ahhhnnnn... Como é que foi aí para dentro?

Já estava à espera. Só podia vir esta pergunta. Senti-me corar, não sei porquê. Quando olhei à volta vi toda a gente a olhar para mim. Tinha aparecido um daqueles silêncios terríveis, e todas aquelas mulheres ouviam a nossa conversa. Creio que um prazer sórdido aguçava-lhes a curiosidade de saber como descalçaria eu esta bota.

- Bem, foi uma sementinha que o pai da Filipa, pôs cá dentro e que cresceu aqui, no quentinho, até ser um bebé, como tu eras quando nasceste...", ensaiei à laia de resposta.

Fez-se um silêncio enquanto a menina dos cabelos loiros assimilava a minha mensagem. Com um ar de desprezo, virando-se para a minha Filipa, disse:

- A tua mãe está a mentir. Eu, lá na escola já estive a pôr sementinhas e só nasceram flores, não bebés.

Enquanto a minha filha ria e acreditava na opinião de uma recém-conhecida em detrimento da sua mãe, uma voz ouviu-se:

- Catarina, deixa a senhora em paz. Vai brincar com as revistas. Desculpe. - disse para mim, - Sabe como são as crianças. É a sua segunda?, ou tem mais?