30.6.05

"Vidas" (19)


ELAS

Elas eram duas. Não posso dizer que fossem bonitas. Não!, até poderiam ser caracterizadas de “feias”. Mas os seus corpos, não sendo muito vistosos, eram jeitosos. A loira, diga-se, até tinha umas pernas bem torneadas e um rabo firme, redondo, equilibrado. Por isso, quando caminhavam juntas, ouviam piropos, assobios, e muitos homens torciam o pescoço para as ver.
Eu também olhava, mas não era pelos seus atributos físicos. Havia muitas coisas que me atraíam a atenção, a começar pelo mistério que emanavam. E as semelhanças no estar, e no equipamento. Quando olhava para o lado via sair da tenda delas um fogão igual, uma frigideira igual, as mesmas sopas instantâneas e ementas, os guias do “Expresso”.
No campismo estas coisas notam-se. Somos vizinhos à força, por vezes muito próximos, e habituamo-nos às caras que nos rodeiam.
Encontrava-me naquele parque havia cinco dias, junto com a minha mulher, num pequeno igloo à beira do Rio Sabor instalado. Elas já lá estavam quando plantei as estacas no solo macio. Mas só as via ao pequeno-almoço e ao jantar. Nem as via chegar à noite para dormir.
Uma morena de nariz generoso. Uma loira-arruivada com sardas. Duas mulheres às quais, apesar da proximidade, apenas ouvi umas breves palavras. Mas reparei nas rotinas, na organização, na cumplicidade.
Nunca pensei que a cumplicidade viesse...
Ultimamente não consigo dormir muito. Nem nas férias. Desde há um ano para cá que acordo cedo e a cama me incomoda. Especialmente se a cama é um saco sobre o chão, deste separado por um centímetro de espuma.
Mas custava-me incomodar a mulher, por isso, às vezes com esforço, deixava-me ficar na tenda. Em casa é diferente. Sai-se da cama sem acordar o outro. Naquela tenda pequena era muito mais complicado.
No entanto, naquele dia, sentia que as águas exigiam seguir o seu livre curso e a fria humidade dificultava a sua manutenção no meu interior. Eram sete menos dez da manhã quando corri os fechos do igloo e saí para o nevoeiro que emergia das águas paradas da curva de rio.
Já era dia claro, uma vez que o mês era Agosto. Uma calma sentia-se no silêncio que nem a natureza perturbava. Não havia vento, não havia barulhos de pássaros, ou rãs, ou qualquer outra coisa.
Luz, nevoeiro, silêncio, frio.
Calcei as sandálias húmidas que, se ficassem ali mais uns dias teriam dado origem a uma “sandaleira” para florescer todas as Primaveras, e encaminhei-me para as instalações sanitárias.
Eram longe, e sabia que cheiravam mal. Passei pelo meio de várias tendas, subindo os socalcos por entre roncos e suspiros de quem dormia protegido por paredes de nylon e cordas esticadas.
Cheguei, aliviei-me e saí.
O sol das sete da manhã violara a neblina que em bancos se refugiara na superfície das águas de verde manchadas. Atrás de mim, a estrada silenciosa. À frente, o verde das copas, do rio. Por todo o lado os postes.
Já repararam que, para o interior, os postes são em forma de cruz? Pelo menos ali eram todos. Electricidade ou telefone: a mesma configuração. Dez metros em altura cruzados por um barrote onde os fios se acoitam.
Acreditem ou não, em todos os postes que a minha vista alcançava estava um homem pendurado, crucificado.
Vinte e três mortos, disseram os jornais. Vinte e três homens nus, crucificados, amordaçados e com os órgãos genitais escondidos no meio das pernas que se fechavam não deixando que para a frente viesse o que à frente pertencia.
Fiquei abismado, boquiaberto e chamei por ajuda, por alguém que avisasse alguém que avisasse a polícia.
O que custou mais foi voltar para a tenda, para contar à minha mulher e, enquanto corria os fechos, olhar para o lado e ver, à porta da tenda delas, um martelo e uma caixa de pregos de grandes dimensões, junto com um rolo usado de fita adesiva igual à que amordaçava os pendurados.
A polícia veio. Elas já não estavam na tenda. Tudo ficou para trás, excepto os guias do “Expresso”.
Ainda não as apanharam, já lá vão quatro meses.
E há tanto Portugal para conhecer, segundo os guias...
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Aqui acabam os contos que ao longo dos meses tendo vindo a publicar.
Agora, ficção, só lá para as férias deixarei aqui uma surpresa.

29.6.05

A cidade Luz

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BRASSAÏ - "Place de la Concorde" - 1933 - do "Paris by Night"
(c) Mme. G. Brassai

5 000

De ontem para hoje atingi as 5000 visitas.
Uma consulta ao Sitemeter permitiu-me concluir que, nem de propósito, o "cliente" 5000 foi a mais fiel leitora e comentadora, a Noite.
Quando em Outubro de 2003 me iniciei nestas lides de "blogueiro", nunca pensei que, quase dois anos depois, ainda por cá andasse. E nunca pensei que tivesse tanta gente a procurar as minhas palavras. Curiosamente, ou não, pois essa é uma característica da bloguesfera, são ilustres desconhecidos os que me lêem. Alguns já por cá deixaram o nome, mas a maioria é silenciosa, e nada sei sobre eles. Como chegaram ao "Urso Polar", porque ficaram por cá, porque passam por aqui. Com a ajuda do Sitemeter deparo-me com uma legião de leitores no Brasil, com alguns perdidos pelo fuso horário das Américas, outros para Oriente, para o Pacífico. Também sou lido em África, e às vezes na Europa central.
Nunca pensei no poder da internet desta forma. Nunca pensei chegar tão longe. Geografica e temporalmente.
Por isso, a todos muito obrigado. Obrigado por me fazerem crer que mereço ser ouvido.
E à maioria silenciosa um apelo: mostrem-se e comentem. Para sabermos um pouquinho mais de quem partilha este espaço.

28.6.05

Adivinhe, se puder

Lá para as bandas da minha casa podemos encontrar este perfeito exemplo de sinalização rodoviária. Adivinhe, se puder. Intuitivamente, talvez lá possa chegar.

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(foto por Urso Polar)

24.6.05

Chez Suzy

É uma imagem para o fim-de-semana. Não é nenhuma sugestão, obviamente. Até porque há muito os tempos mudaram...

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BRASSAÏ - "Chez Suzy" - 1932-33 - do "Paris by Night"
(c) Mme. G. Brassai

"Vidas" (18)

NATAL

Perdeu algum tempo a ajeitar os enfeites na árvore de Natal. Após a confusão da véspera, alguns tinham sido deslocados, outros mergulhado até às lages de tijoleira, outros ainda pendurados em figuras de equilíbrio precário e audacioso. Depois, estendeu na mesa uma toalha com motivos natalícios, alisando os vincos que o ferro de engomar aprimorara.
Da cozinha trouxe a loiça que milimetricamente dispôs: um prato, três copos, um talher de peixe, outro de carne, outro ainda para as sobremesas. Passou às iguarias. Do forno libertou um naco de carne perfumada que inundou ainda mais a casa ávida de agitação. O aroma manter-se-ia por muito tempo. Da grelha no fogão saiu uma divinal posta de bacalhau assado que se reuniu a umas deliciosas batatas na travessa reservada para o efeito. Com eficácia regou-os com o azeite quente e alho.
Levou tudo para a mesa. E regressou à cozinha de onde levou ainda uma mousse de chocolate, um bolo-rei, uma terrina de sonhos, outra de fatias douradas. Não faltaram as broas, nem as filhós. Não faltou igualmente o vinho, e o espumante que manteve no balde de gelo que lhe oferecera a mãe, quinze anos antes, durante os preparativos para o casamento que nunca se realizou.
Atiçou o lume na lareira que aquecia a sala. Contemplou o silêncio do negro exterior, numa altura em que quase toda a gente dava início à Consoada. Mudou o CD que rodava na aparelhagem, elegendo Louis Armstrong para a acompanhar na refeição. Sentou-se.
Enquanto olhava a comida à sua frente, a solidão atropelou-a, e um soluço encontrou na garganta o nó que a impedia de engolir. Encheu o copo e levou-o aos lábios. Decerto repetiria o gesto muitas vezes, durante aquela noite.
Por cima da poderosa voz que a alta fidelidade reproduzia, ouviu gritos. Gritos de dor, de raiva, de ódio, de incompreensão... Mais uma vez os seus vizinhos bulhavam, tornando a noite de Natal igual a tantas outras.
Por momentos, preferiu ser a sua vizinha, estar a ser espancada, só para ter a certeza que alguém sabia que existia, e que não era um mero avatar.

Chegou a casa já alegre. O lanche de Natal na Companhia tinha sido melhor que o habitual, e depois ainda fora celebrar com os colegas mais íntimos, aqueles com quem, na marisqueira, discutia o futebol e as gajas. Mas a desgraçada da mulher só lhe infernizava o juízo.
- Bonito estado, o teu. - foram as primeiras palavras que ouviu assim que pôs pé em casa.
- ‘Qu’é, que queres? Um homem já não pode ir celebrar o Natal com os amigos?
- Vai tomar um banho e vestir-te em condições. Os teus pais devem estar a chegar e os meus saíram agora de casa.
Resmungou qualquer coisa e encaminhou-se para o quarto. A mulher recolheu ao “seu lugar natural” como costumava dizer, a fim de verificar o andamento da ceia. Ele inverteu a marcha e rumou à sala. Abandonou-se no sofá, começando a passar pelos canais todos da TV Cabo. Quarenta e tal canais, incluindo os pagos e quase todos a dar imagens de Natal. Já não podia ver neve, estrelas, bolas, vermelho, verde... por falar em vermelho e verde, estava a dar uma retrospectiva da carreira dos clubes portugueses nas competições Europeias. Ficou a ver.
- Então não foste tomar banho?
- Deixa-me!, chata.
- Chata?!, eu? Oh meu grande lanzão!, tu não comeces a armar-te em parvo!
O tom de voz passou de imediato aos gritos com que acostumaram a vizinhança.
- Vai p’rá cozinha, galinha.
- Levanta-te imediatamente e não faças fitas hoje.
- Deixa-me, estou a ver a bola.
Ela agarrou-lhe um braço e tentou erguê-lo. Com a outra mão ele esbofeteou-a. Um grito agudo e a mulher caiu no chão.
Enquanto ele a erguia para lhe bater mais, ela pensou na vizinha que nunca se casara e que decerto viveria feliz por não ter quem a maltratasse assim.

23.6.05

Cinema Erótico

Foi no final do ano passado, em Barcelona, o 12º Festival do Cinema Erótico daquela cidade. Este era o ousado cartaz.


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Não se deixaram enganar pela brilhante ilusão, pois não? É que o cartaz teria exposição pública, e a decência obriga a não ser óbvio.
Agradecimentos são devidos a quem me mandou isto por e-mail. Claro que não digo o nome para não o expôr, certo?

Era digital

Na Era digital, é chegada a hora de avisar:
"Oh, Luis, não metas o dedo no nariz".

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(imagem retirada d'O P'ublico)

22.6.05

Delírio

Lá fora escalda, abafa. O Sol impiedoso agride a cidade e os cidadãos.
As bocas abertas respiram com dificuldade, lembrando peixes indefesos fora de água. As roupas colam-se aos corpos, empapando suores desconfortáveis. A espaços cheira a cominhos, daqueles que não sabem, certamente, para que serve um banho e um desodorizante. As pessoas tremem de cansaço, e vacilam a cada passo que são obrigadas a dar.
Ao longe vejo as deformações da onda de calor abanar os edifícios, tremoer o horizonte. Por perto uma suave brisa impede o inferno e agina o arvoredo. Aqui onde estou fico incólume aos automóveis apenas ao longe circulam. Contudo, os aviões baixos abafam o som dos pássaros, da rega da relva, das cigarras. O seu rugido faz tremer o chão, o prédio, a minha cadeira.
Tanta tremura abana os miolos. A mente voa para longe e evita a concentração que o trabalho exige. O esforço desmoraliza.
O Blog é o descanso necessário para o resto da etapa.

21.6.05

Matar o tempo e o calor

A fim de matar o tempo e o calor, enfiei-me por duas vezes no cinema aproveitando o ar condicionado e o King Kard.
Foi mesmo para matar o tempo.
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Ambos são filmes sem história, sem relevo. Puro entretenimento. Clichés.
Como a aspirina. Aliviam a cabeça enquanto actuam, mas pouco mais.

17.6.05

Paris... Paris

Fiquem com esta, para o fim de semana.

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BRASSAÏ - "Prostitute" - 1933 - do "Paris by Night"
(c) Mme. G. Brassai

Bandidos

Ontem vi imagens de roubos nos comboios da linha de Sintra. Em plena luz do dia. Gente que anda de comboio para fugir ao IC 19, não contribuindo para o seu congestionamento. Gente que precisa do transporte público. Miúdos que vão para as aulas, gente que vai trabalhar.
Como se podem fazer campanhas a pedir mais passageiros se se deixa que os tratem assim? Se um grupo de bandidos entra na carruagem e, televisionado, assalta os passageiros com lentidão, acabando por os expulsar do comboio enquanto lá continuam a rapinar, e nenhum mecanismo policial é desencadeado, como se asseguram os utentes? Como podem os passageiros ser indiferentes ao que acontece aos que a seu lado viajam, na esperança de passar incólume? Certamente os mesmos passageiros que, se forem vítimas, vociferarão contra a falta de assistência que tiveram.
Se amanhã um desses bandidos levasse um enxerto de pancada de um grupo de passageiros que se defendiam de um roubo se calhar serviria de exemplo. Ou se um polícia estivesse por ali, à civil (porque os fardados impedem logo a iniciativa do crime) e caçasse um desses palhaços em flagrante delito...
O certo é que, se porventura fosse habitante da linha de Sintra, preferia correr os meus riscos no trânsito do IC 19 à gaiola de ferro que são os comboios da do Código Penal.

Luto Nacional

Porque é que Cunhal teve direito a um dia de luto nacional, e Irmã Lúcia três? Cunhal ainda era Conselheiro de Estado e foi ministro...

16.6.05

Mais uma fotografia

Mais uma de Brassaï. Porque me apetece celebrar a sua arte.
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BRASSAÏ - "Palais Royale Train Station" - 1933 - do "Paris by Night"
(c) Mme. Brassai.

Anos ’80 – 80 Memórias (36)


Apartheid

É, sem dúvida, uma memória da década de 80. Para mim, claro, posto que para quem viveu na pele os efeitos da segregação racial sul-africana, tal regime vem de décadas anteriores.
Aqui em Portugal, nos meus anos de adolescente, descobri que havia um país africano em que os negros, a esmagadora maioria da população, vivia sob a pressão de uma minoria branca, dirigente e sem escrúpulos. Findo o auge do período colonialista, estando África pejada de novas nações que se auto-determinaram, existia um país que, sem estar dominado por outro, nomeadamente europeu, cultivava os instintos mais básicos e violentos para espezinhar uma raça.
Descobri o apartheid através da informação passada por filmes como “Cry Freedom”, ou mesmo “Arma Mortífera 2” (!), pela música de Paul Simon e Santana, e pela palavra que se fazia correr:Mandela.
Era, então, politicamente correcto mostrar oposição à Africa do Sul e, aos poucos, documentários, reportagens, histórias chegavam aos meus ouvidos. Foi uma luta breve, para quem tarde se apercebeu daquele alfinete espetado na humanidade. Felizmente, o apartheid caíu, com a dignidade possível e necessária para a transição não ser um banho de sangue.
Hoje é uma memória.

15.6.05

Encanto

Quando descobri as fotografias de Brassaï fiquei estarrecido com a qualidade do seu trabalho. O livro que mo revelou foi "Paris by Night", que reúne fotografias de 1933(!). São excelentes, e Brassaï exibe aí a sua sensibilidade e apuro técnico invulgares.
Tenho esse livro numa edição da Taschen. Mas vi-o primeiro numa luxuosa edição, em papel incrivelmente bom, o qual dava às fotografias o relevo que estas merecem.
Desde então procuro tal edição.

Deixo-vos aqui uma imagem. De 1933.
Singela beleza.


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BRASSAÏ - "Open Gutter" - 1933 - do "Paris by Night"
(c) Mme. G. Brassai

14.6.05

Anos '80 - 80 Memórias (35)

Quem, como eu, nasceu na década de 70, e viveu ainda criança nos anos 80, na zona da Parede, Cascais, certamente não terá esquecido a carrinha do Toni. Toni's Gelados, e a sua música que se ouvia ao longe, anunciando gratos momentos de prazer guloso.
Toni, já há muito falecido (ainda fui colega de escola do seu filho mais novo ), era naquela altura uma luz no calor do Verão. Estávamos na rua a brincar, a jogar à bola, a correr sob o impiedoso sol, quando ouvíamos o tinir da música de realejo. Era altura de correr para casa e pedir dinheiro. Vinham lá os gelados.
Infelizmente, eram mais as vezes aquelas em que o gelado prazer me era negado do queaquelas em que era concedido. Por vezes a minha mãe pegava numa caixa de plástico e ia enchê-la ao Toni, comprando gelado que a família comia ao fim do almoço. O gelado, cremoso, saía da ruidosa máquina de três torneiras: dois sabores e a mistura de ambos. Pouco havia para escolher. Mas pouco interessava. Porque eram tão bons aqueles prazeres em baunilha.

Junto à escola preparatória, onde hoje impera um posto de combustível, havia a "casinha branca", uma estrutura minúscula explorada pela mulher do Toni. E lá havia os mesmos gelados.
Quando andava no Ciclo preparatório, o mais barato custava 12$50. Depois havia o de 25$00, e o duplo, de 37$50.
O fantástico Toni (reparem que não faço ideia do seu nome, e apenas recordo o nome que se lia na carrinha) por vezes tinha momentos de prodigalidade e quando entregava o gelado este era da categoria acima daquela que tínhamos pago. Esses sabiam melhor. Sabiam a prémio.

Hoje não há carrinhas como a do Toni. Com a sua morte, ficou na memória a presença daquele veículo doce e musical.

"Vidas" (17)

DESEJOS

Por detrás dos óculos escuros, sem mexer a cabeça, mirou de esguelha a mulher que se sentara à sua frente. Com cuidado, prazer e lentidão, absorveu o olhar esverdeado, o cabelo negro, a tez escura. Reteve aquele movimento da língua a humedecer os lábios, atiçando-lhes o fogo.
Julgando não ser notado, passeou pelo relevo exposto do seio redondo, circulou pelo umbigo e demorou-se nas coxas de ébano que a mini-mini-saia era incapaz de conter.
Ergueu os olhos enquanto, num gesto largo, rodou a cabeça cruzando o seu olhar com o dela. Aí se fixou. Durante segundos que demoraram horas, olhou no fundo daqueles discos de esmeralda e tentou sondar a mente de tão bela mulher.
Em vão.
*
Havia dois dias que a sua colega lhe falava muito afectuosamente. As palavras vinham sempre acompanhadas de gestos, de carícias, afagos. O olhar era quente. As palavras dúbias. “Ah!, como saber o que ela quer? Como seria bom tê-la. Mas como posso arriscar? Se ela me negar nem este calorzinho aproveito.”
*
No regresso a casa, aquela loira que quase todos os dias viaja na mesma carruagem. Já se olharam tantas vezes. Ele sabe, quase de certeza, que ela tem presente a sua existência. A forma como se olham deveria ser proibida. Porém, a angústia de não saber o que ela pensava deprimia-o e aconselhava-o ao silêncio.
*
À noite, ao deitar-se, revendo as mulheres que consigo se cruzavam, desejou: “Oh!, como gostava de ouvir aquilo que os outros pensam”.
*
Rotina. O despertador liga o rádio. Ouve as primeiras notícias do dia. Levanta-se, arranja-se, come. À janela da cozinha vê passar, lá fora, a caminho da escola, duas raparigas, quase mulheres: as saias curtas, as camisolas apertadas, os seios vibrantes... Sorriu por ter um início de dia tão prometedor.
No elevador viu a vizinha. Uma tipa magríssima, só ossos, cor pálida, pêlos por todo o lado. Enquanto desciam bufou e evitou olhá-la.
“Paneleiro! Se quisesses deixava que me comesses toda.”
A porta abriu-se e, enquanto saía, perguntava se seria verdade aquilo que ouvira. Como poderia a sua vizinha dizer aquilo? Até se sentia envergonhado.
Na rua, as pessoas estavam mais barulhentas que de costume. Um rumor cavo, oco, ouvia-se por todo o lado. Viu duas mulheres giras e mirou-as. Quando por si passaram ouviu distintamente: “Olha para este palhaço! A babar-se assim ainda escorrega.”
Só na estação se apercebeu. Ouvia os pensamentos de quem o rodeava. Com uma alegria ímpar sentou-se no comboio e mirou aquelas caras sombrias de quem vai para o matadouro. Mirou e ouviu:
“Hoje vou sair mais cedo... O chefe que se lixe.”
Outro:
“Se apanho o sacana que me riscou o carro...”
Aquela:
“Estou farta daquele gajo... hoje vou por tudo em pratos limpos...”
“...uma vez que não há marcadores seguros, deverão ser determinadas diferentes normas de acordo com os protocolos...”
“... alface, tomates..., e batatas, é isso, batatas para cozer.”
“...santificado seja o Vosso nome...”
“... Já me estreei, já me estreei, já não sou virgem... Eh, eh, eh!, tenho que contar isto a alguém”
“Espero que o picas não apareça antes de Oeiras, senão estou feito.”
“Cento e sessenta contos, menos trinta dá cento e trinta. Ora a prestação é de...”
*
Quanto menos queria, mais pensamentos ouvia. Já não necessitava de fixar-se nas pessoas para escutar. Os pensamentos delas é que se fixavam no seu consciente. O silêncio passou a ser uma miragem. A vida passou a ser vivida como se estivesse constantemente dentro de um estádio de futebol. Gritos, berros, gargalhadas, choro, dor.
* * *
Após dois dias de buscas, um barco de pesca da Trafaria recolheu o corpo que a Marinha procurava. Enquanto caía, vindo do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, ouviu trabalhadores a pensar na vida, agora que as obras estavam a acabar.

Quatro dias com história

O Camarada Barreirinhas, Álvaro Cunhal para muitos, "Lã Branca" para alguns, o Manuel Tiago da literatura finou-se na noite de Santo António. Com 91 anos, cego de uma vista e com pouca visão da outra, dizem os próximos que ultimamente já não conseguia dedicar-se às actividades predilectas da sua reforma: a leitura, a escrita e a pintura.
Fica na história pelo seu papel na 2ª década do século XX. Enaltecido pela sua "coerência" onde só vejo casmurrice e falta de abertura à vertiginosa evolução do mundo actual, Álvaro Cunhal foi capaz do melhor e do pior no PREC. E nos primeiros anos da democracia portuguesa.
Felizmente tivemos um Cunhal. É de equilíbrios que se faz a estabilidade e progressão democrática. Por isso, foi bom tê-lo ao comando do PCP quando o país navegava à vista, sujeito às pressões da extrema esquerda, da extrema direita, do centro, do capital.
No dia anterior ruiu a Muralha de Aço. Vasco Gonçalves, de 83 anos, nadava numa piscina de familiares quando se sentiu mal e se apagou. "Pai" das nacionalizações e mentor de vários governos num só ano, foi o exemplo típico do desnorte que se seguiu ao 25 de Abril. Também para o Camarada Vasco fica o lugar na história do PREC.
No campo das letras, Eugénio de Andrade, também octagenário, após anos de doença, escreveu o seu último poema. Não sou especial apreciador da sua poesia. Mas reconheço-lhe a qualidade reservada aos poucos que a História guarda. A sua obra garante-lhe a perpétua memória.
A todos o tempo apanhou. Todos viveram muitos anos, podendo contribuir para o mundo com a plenitude das suas forças.
No campo dos eventos que merecem uma palavra, falta falar do "arrastão" que envolveu cerca de 500 indivíduos na praia de Carcavelos. É preocupante, sem dúvida, quando grupos de origens tão distintas geograficamente, mas tão iguais sócio-economicamente, têm a mesma iniciativa. Como combater este fenómeno?
Seguramente sem alarmismos, e com a cabeça, não com o coração.
Voltarei ao tema, oportunamente.

9.6.05

Mini-férias?

Pois aqui por Lisboa o calendário oferece destas coisas. Amanhã, Dia de Portugal, é feriado. Segunda-feira Santo António concede-nos nova folga.
Resultado?
Quatro dias seguidos sem trabalho! E lá fora a temperatura anda pelos 35ºC. Sol firme e céu azul. A praia a pedir a estreia.
Por isso, e tirando um aniversário, um casamento e o encerramento do Feira do Livro, o Urso Polar vai a banhos.
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Até terça-feira.
E nada de inveja, que é um sentimento feio, que torna as pessoas verdes. ;)

7.6.05

Vizinhos

Na sexta-feira a Noite colocou um post no Ad-Tempus escrito por este Urso.
É curiosa, esta relação de vizinhança de um lado para o outro do Mundo. Até parece que nos encontramos frequentemente no elevador.

5.6.05

Ainda sobre Juízes

Porque grassa grande desinformação sobre a judicatura, e os Juízes foram apontados como "classe a abater" por este Governo, sabe-se lá porquê (apesar de se poder especular, não é?), deixo-vos aqui dois links para dois textos que julgo muito importantes.
Um deles saíu no Público. Como o jornal agora é de acesso restrito deixo aqui o caminho para um blog (de gente ligada ao Direito como magistrados e advogados), onde podem ler o
texto do Dr. Gomes de Sousa, Juíz do Círculo de Évora, que esclarece muito sobre as férias judiciais (note-se que o original tinha mais conteúdo, mas limitações de espaço do jornal o reduziram)

O outro é de um Juíz de Círculo também, de Oliveira de Azemeis, e está
aqui, no Site da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, e, apesar de extenso, é muito importante para perceber a deturpação da informação feita, por exemplo, pelo Expresso quando veio apregoar que os Juízes portugueses eram demasiados e tinham muitos meios à sua disposição para tão pouca produtividade.

Vale a pena ler, é o que vos digo.

3.6.05

Massacre civil

Todos os dias acordo com o noticiário da TSF. Todos os dias acordo com a notícia de mais um ataque, de mais um rude golpe à maioria da popullação portuguesa, a classe média, o trabalhador por conta de outrem, o cidadão comum comum que deveria estar na base do Estado como objectivo do Governo, ou seja, como destinatário das conquistas desse mesmo Estado.
Mas, o actual governo faz exactamente o contrário. E sem qualquer moral ou vergonha.
Estamos em crise, anunciam. Aceito e estou disposto a ajudar.
Mas não a ser castigado, punido, que é o que o actual Governo do PS está a fazer.
Acabam mais subsistemas de segurança social; aumentam a idade da reforma; taxam com IRS (!!!) as pensões de reforma como se ordenados fossem, financiando-se com o dinheiro que, enquanto Estado, asseguraram àqueles que trabalharam uma vida e o único pecado foi o de receberem mais que o mísero salário mínimo; acabam com as pré-reformas no sector privado, defraudando aqueles que têm aceite acordos de rescisão para sustentar políticas de redução de pessoal nas empresas privadas...
Simultaneamente, questionam, e recuam, nas medidas de redução dos privilégios dos titulares de cargos políticos (o actual ministro das Finanças, por ter sido vice-governador do Banco de Portugal durante 6 (!?) anos tem direito a uma escandalosa pensão de € 8.000,00). Mantêm os Bancos e os seus escandalosos lucros taxados apenas a 13% (quase igual à taxa mínima de IRS). E, segundo a SIC, ontem, a Caixa Geral de Depósitos, que o ano passado teve lucros de 500 milhões de euros, vai beneficiar de uma isenção (!?) de IRC durante dois anos.
Assim se vê, para quem governa o PS.
Mas os maus, os maus mesmo, são os Juízes e as farmácias... lembram-se

1.6.05

Olhó livro!!!

A Feira do Livro de Lisboa está, este ano, muito melhor.
Estenderam a sua colocação por uma área maior e afastaram os pavilhões criando maiores espaços de circulação. Pintaram os pavilhões de várias cores retirando o ar sensaborão do costume e aumentaram o número de poisos para cafés, gelados, sumos e afins. Em resumo, tornaram mais agradável o passeio pela Feira. Aliás, o pavilhão onde se situa o auditório é, em meu entender, o melhor de sempre. Acolhedor, com uma bela vista sobre o Parque, arejado e distante, muito distante, do buraco a que nos habituaram.
Os livros reinam, e encontram-se a preços muito agradáveis, com descontos substanciais relativamente aos praticados durante o ano nas livrarias. Se temos a sorte de os encontrar como “livro do dia” podemos ganhar descontos de 40%. Mesmo assim, diariamente, a preço de feira, é comum poupar € 5,00 num livro corrente.

Tem a Feira tudo para correr bem. Tudo?
Bom, este ano tenho a possibilidade de ir lá mais do que uma vez, pelo que aproveito tal oportunidade para buscar certas obras como livro do dia, assim poupando mais. Por isso, ontem, fui à Feira do Livro de Lisboa às 16h 30m (a hora de abertura, saliente-se, é às 16h). Então não é que um número considerável de pavilhões estava fechado !!? E outros tantos ainda nem tinham os livros colocados em exposição? E quando perguntava qual era o livro do dia e seu preço, porque nada estava exposto, recebia respostas incomodadas ou pedidos de espera enquanto ainda ia “ver”.
Oh meus amigos, depois queixem-se que venderam pouco durante a feira. Se não respeitam o cliente, que porventura se deslocou de propósito ao Parque Eduardo VII para “feirar” não esperem que ele fique satisfeito. Tinha que ser essa mentalidade incompetente a estragar algo que até tinha condições especiais para o sucesso, não tinha?