22.12.13

A realidade é mais estranha que a ficção

Na modorra do sol de Inverno que aquecia o autocarro, progredíamos lentamente pelo trânsito de Lisboa, já congestionado pela azáfama das compras natalícias. Na parte de trás, onde os bancos se viram uns para os outros para promover o convívio, quatro mulheres na casa dos sessenta deixavam-se levar em silêncio. Aparentemente nem se conheciam. Porém, é certo e sabido que, às vezes, basta a centelha certa para desencadear uma conversa infindável que todas desejavam para fazer ouvir a sua voz.
No pára-arranca do Marquês, uma delas colou-se o vidro e exclamou:
- Olha um anão vestido de anão!
- Como vestido de anão? - respondeu a mulher à sua frente satisfeita por poder interagir rasgando a monotonia da viagem.
- Ali! Está ali um anão vestido de anão.
- Mas os anões vestem-se sempre à anão, pois são pequeninos.
- Não, este está como os anões das histórias.
- Como os da Branca de Neve?
- Não. De outras histórias. Olha ali! Até tem o chapéuzinho.
A vizinha do lado ajudou:
- Como os anões de Natal?
- É isso, um anão de Natal.
A progressão do autocarro, emperrado entre inúmeros veículos que pareciam conduzidos por quem não sabia para onde ia retirou-lhes ângulo de visão para o curioso personagem pequeno, mas a conversa arrancara e nada a faria parar.
- Há cada vez menos. Mesmo assim, há com cada homem pequenino...
- Eles não são só homens pequeninos. São assim porque têm uma doença.
- Mas não se pega. Nem para os filhos. Um anão pode ter filhos normais.
- São assim porque sofrem de "ananismo".
- Isso dos filhos é se tiverem uma mulher normal.
- Mas eles também se casam. Entre eles. Não viu nos casamentos de St.º António deste ano? Casaram um anão com uma "anoa".
- Eu vi, na televisão mostraram a casa dela. Parecia que vivia numa casa de bonecas, com tudo pequenino e baixinho.
- Há um muito conhecido, que até entra nas novelas... 
- Não é esse que é advogado?
- Não, fez de advogado... havia de ser giro....
Há medida que o autocarro conseguia livrar-se dos últimos obstáculos e entrar na faixa bus da Av. da Liberdade, a conversa suspendeu-se por um instante, construindo a ponte para a tirada fatal. Foi a quarta mulher, que até aí apenas tinha introduzido uns monossílabos de assentimento, juntamente com lentos movimentos de cabeça.
- Não sei se queria um anão. Na cama pareceria uma criança.*

*(As frases aqui reproduzidas não foram criadas por mim. Acho que não teria génio para tanto. A conversa é verídica. Felizmente fui suficientemente rápido para pegar no meu caderninho e começar a transcrevê-las).

31.10.13

«Conta-me histórias, daquilo que eu não vi »*

Como era a vida antes dos "smartphones"?
De onde veio esta obsessão pela imagem a todo o momento impingida aos outros numa insistente ânsia pela partilha daquilo que cada um deveria viver em pleno em vez de se preocupar a mostrar que "esteve lá", "fez isto", "comeu ou bebeu aquilo"?
Vejam este vídeo. Larguem os telemóveis e preocupem-se em viver intensamente cada momento, com quem vos rodeia. Porque depois, sabem, em vez de mostrar fotos ou vídeos à distância, podem sempre contar as vossas experiências com..., ai como é que se diz?..., ah, sim, com palavras!

* Clã

19.10.13

Filme francês

Manhã de sábado, sem qualquer pressão. Não preciso de ir trabalhar, não tenho planos que me obriguem a olhar para o relógio, consegui dormir nove horas seguidas e estou descansado.
Na cozinha, ao preparar o pequeno almoço, deu-me para escolher Bach, Cello Suites para me fazerem companhia. Com tais harmonias como pano de fundo, sentei-me à mesa. Torradas, brioche, sumo, capuccino, a leitura das notícias, a espreitadela às capas dos jornais, tudo através da longa mão virtual da internet.
Lá fora, depois da borrasca da noite, o sol brilha com intensidade, reflectindo o seu brilho na água que ainda se agarra às árvores, aos telhados, ao chão. A passarada está contente e faz questão de anunciá-lo com trinados que conseguem sobrepor-se à música que escolhi.
A calma é tão reconfortante, como preocupante. Parece que, a qualquer momento, o realizador vai mostrar algo de errado que não se vê no enquadramento. Que o autor escreveu umas linhas que surpreenderão o espectador colocando o personagem em dificuldades que alimentarão a trama.
Para começar, fora de cena, uma enorme nuvem negra esconde agora o sol. A imagem radiosa foi substituída por uma tenebrosa paisagem cinzenta, escura, desagradável. Os pássaros calam-se. A tensão sobe. Bach já não soa tão repousante, antes contribuindo para o desconforto crescente.
Assim de repente, tive a sensação de que a minha vida dava um filme francês.

10.10.13

O peixe está bem dentro do aquário?

Na rádio passavam recordações dos anos oitenta, quando a vida era simples e todos os problemas se resumiam ao facto de ser adolescente. Quando deu por si, já a protecção do monitor findava o ciclo programado e os discos entravam em modo de repouso. Pela configuração do computador poderia concluir-se que havia mais de quinze minutos que não tocava no teclado ou no rato. Contudo, quem o visse, poderia pensar que estava muito dedicado ao trabalho que se acumulava na secretária.
Mas a verdade é que não estava ali. Não estava naquele gabinete envidraçado, como um aquário no qual o podiam ver nadar durante o dia sem conseguir esconder-se. Ao contrário do que acontece com a maioria dos peixes, nenhuma rocha estava ao seu dispor para nela se esconder. Dia após dia a privacidade era, cada vez mais, um sonho.
Por isso desenvolvera aquela capacidade de se ausentar sem sair do mesmo sítio, sem mostrar que não estava onde o corpo se mantinha firme frente ao posto de trabalho. Bastava um impuso, um estímulo, e partia.
Hoje fora da rádio que nascera a viagem. 
"Don't, don't you want me?
You know I can't believe it when I hear that you won't see me
Don't, don't you want me?
You know I don't believe you when you say that you don't need me"
Ouvir os Human League trouxe de volta toda a angústia da paixão por Ana Rosa, a colega do 8.º e 9.º ano que se sentava à sua frente e tanto iluminava os dias com os seus cabelos loiros, como os escurecia com a indiferença com que lhe falava, ou pior, o ignorava.
Ana Rosa, a miúda que se vestia como se fosse mais velha, que usava uns pequenos saltos e saias curtas enquanto as outras andavam de sabrinas ou ténis, com as omnipresentes calças de ganga ou aquelas horríveis saias axadrezadas abaixo do joelho. Ana Rosa que já pintava as unhas e usava um baton vermelho que conseguia torná-la ainda mais gira, sem a vulgarizar como acontecia com as outras colegas quando arriscavam usar maquilhagem.
Um dia, Ana Rosa começou a namorar com um tipo do décimo ano, que tinha uma banda. Seguia-o com a firmeza de uma admiradora incondicional e ele agarrava-a e beijava-a como se fosse sua propriedade. Quando saíam da escola montados na mota barulhenta, atraíndo a atenção de todos quantos estivessem nos patios, sentia crescer em si um ódio por todos os que tinham alguma fama. E lutava com o conflito interno de desejar aquela rapariga loira que se sentava à sua frente, e o ódio por ela andar com um tipo mais velho que tinha tudo o que queria.
A rádio mudou de música. Algo com menos recordações. O secundário acabou há trinta anos, a Ana Rosa é apenas uma recordação do passado, e a sua vida está aprisionada àquele aquário.
Ao recordar que o apelido dela era Antunes, lançou-se ao Google e ao Facebook. Ajudou a memória de que a banda do outro tipo tinha por nome "Janela Indiscreta".
Ficou surpreendido com a abundância de informação disponível. Descobriu que Ana Rosa casou com o tal tipo, Marco Pimm, com ascendentes em Inglaterra, o qual cedo deixou de tocar música para a passar a produzir. Viu fotografias da Ana Rosa, sempre bela, cada vez mais impressionante com o passar dos anos, dedicada à ilustração infantil.
Viu fotografias dos seus dois filhos, a mais velha já casada e também mãe. Encontrou um vídeo de má qualidade gravado por alguém que, com o seu telemóvel, não guardou a privacidade que lhe era exigida com a presença no evento. Neste, os dois irmãos fizeram o elogio fúnebre da mãe, que no ano passado perdera uma luta de anos contra vários e sucessivos tipos de cancro.
De repente, a viagem pela estrada das memórias tornou-se amarga e sentiu um nó na garganta. Ana Rosa já não estava viva. Apercebeu-se então de que tinha quarenta e cinco anos e para muitos isso é mais do que uma vida inteira. 
Olhou em volta para as pilhas de papel acumuladas na secretária, na cadeira à sua direita, no pequeno armário junto à porta. Na barra de ferramentas contou as quatro janelas excel abertas que o atropelaram com os milhares de números que diariamente preenchiam cada minuto de trabalho.
Levantou-se, passou pelos colegas de piso que o ignoraram, tal como Ana Rosa costumava fazer na escola secundária, e enfiou-se na casa de banho.
Sentado na sanita, chorou a morte de uma colega de escola que não via havia trinta anos.

6.10.13

O caos dos outros

Acabou o sumo de laranja e comeu, mastigando meticulosamente, dois biscoitos de maçã. Abriu a máquina finamente estilizada e introduziu a cápsula. Baixou a alavanca com firmeza e pressionou o botão. A água foi sugada, aquecida, e empurrada sob intensa pressão através do café moído que se continha naquela pequena embalagem. Para a chávena pingou um expresso cremoso que recolheu  e levou aos lábios. 
O cheiro, o sabor, tudo lhe passou despercebido, mesmo quando engoliu a cafeína escaldante. Aquilo que em tempos fora um acto de prazer transformou-se numa rotina, num acto imperativo sem o qual o encadeamento diário ficaria perturbado.
Depositou a chávena no lava loiça,  encheu-a de água, despejou-a e guardou-a na máquina de lavar. Largou então para a casa de banho onde iniciou outro ritual.
Sanita, lavatório, banheira, secador, lavatório, tudo em trinta minutos contados ao segundo.
No quarto, antes de se vestir, fez a cama que deixara a respirar. Cuidadosamente vestiu um dos cinco fatos cinzentos que tinha, a camisa branca, a gravata vermelha.
Antes de sair, verificou todas as janelas, todas as luzes, todos os aparelhos.
Trancou a porta de casa, desceu os três andares a pé, ignorando o elevador ruidoso, e atravessou a porta da rua. Quando assentou os dois pés no passeio endireitou-se e respirou fundo três vezes, de olhos fechados.
Estava pronto para mais um dia. Estava pronto para enfrentar pessoas. Dali a doze horas e meia, sem falta, estaria de volta ao seu mundo organizado. Sabia-o.
Agora, era a vez do  caos dos outros.

3.10.13

Sem dramas

Apesar do vento, apesar da chuva, o mar enrolava baixinho, sem dramas, calmo como um cordeiro. Sobre as águas escuras erguia-se uma curiosa neblina, fosse dos salpicos de cada gota de chuva, fosse da temperatura fria do ar, que igualmente condensava a cada expiração.
Já sentia as pernas  dormentes, não do frio mas da posição. Estava sentado na areia ensopada havia mais de duas horas. Duas horas a contemplar o mar a subir, tentando levar cada vez mais longe a pouca espuma que as suas ondas conseguiam fazer, tão fraquinhas estavam. Duas horas de constante enrolar, marulhar, paulatinamente cumprindo o seu devir.
As gaivotas nunca estiveram longe. Ora se lançavam para apanhar qualquer coisa na água, ora aterravam na areia para a debicar procurando com que encher o papo. As mais afoitas e curiosas avançavam para si, logo recuando de cada vez que as olhava de frente. 
Graças ao poderoso blusão e calças impermeáveis, a água da chuva escorria sem o molhar. Apenas os óculos exigiam constante atenção pois as gotas que neles se juntavam eram um permanente e irritante obstáculo. Já cansado de os limpar, manteve-os entre as mãos e olhou para a frente.
Abanou a cabeça perante o cenário desfocado, borrado, que encontrou. As rochas que o mar tentava cobrir eram agora umas formas difusas nas quais umas manchas brancas apareciam irregularmente, posto que nem a espuma das ondas lhe era perceptível. O navio que tinha contemplado minutos antes, imaginando para onde se dirigia, quem ia a bordo, a carga que transportava, os cheiros e rotinas, estava agora invisível. Até as gaivotas poderiam ser galinhas que não as veria de forma diferente.
Trinta anos antes, ali mesmo, naquela praia, à borda de água antes de mais um mergulho, gabara-se da sua visão. Num dia de Verão, com os seus inseparáveis amigos de então, tinham competido pelo melhor olhar. 
Pedro, que já então usava uns pesados óculos, e que os tinha deixado junto à toalha, riu-se e disse: "Eu vejo o mar. É o mar que está à nossa frente, não é?"
Carlos, que teimava em não usar óculos pois isso estragaria o seu estilo futebolista, cedeu quando não conseguiu ver umas bóias de pesca logo para além das rochas para as quais costumavam nadar todos os dias.
André dera mais luta. Os outros dois já gozavam, insinuando que estavam já a inventar o que eles nem conseguiam imaginar que estivessem a ver. Mas André concedeu-lhe a vitória com um minúsculo bote a motor que navegava para lá da linha dos navios que saíam do porto da capital.
Trinta anos, e tanto mudara. Carlos perdeu todo o estilo com a heroína, com os roubos, com a cadeia. Vira-o no final do Verão passado. Andrajoso, comido pelo veneno, devolvido à sociedade depois de mais cinco anos de reclusão. Ficou do outro lado da rua a olhar para ele, com um aperto na boca do estômago enquanto recordava tudo o que tinham partilhado na adolescência. Fingiu não o ver e ele nem se terá apercebido da sua hesitação.
Pedro tocava numa orquestra, numa banda de jazz, e às vezes até actuava sozinho. Ele e o seu clarinete. Por vezes ia vê-lo, noutras jantavam juntos. Já não usava óculos. Foi operado pelo André, cirurgião oftalmológico, que naquele dia longínquo dissera: "Deixa estar que um dia hei-de ver melhor que tu."

2.10.13

Lembras-te da Mónica?

-Lembras-te da Mónica?
-Quem? A gorda?
- Sim. A gorda.
- Se me lembro. Gozavam todos com ela, e eu tinha vergonha de asssumir que gostava da miúda.
- Olhando para trás, devo dizer-te que foste muito parvo.
- Se fui. Ela podia ser gorda, mas era bonita e divertida. E mais esperta que todas as outras naquele grupo de Verão.
- E como não gozavas com ela, garanto-te que tinha um fraquinho por ti.
- Disparate. Tínhamos quinze anos. Como podes saber se tinha um fraquinho por mim? Aquele puto borbulhento e magricela que evitava qualquer confronto para não correr riscos...
- Ora, em conversas. Outro dia encontrei a Xana. Pusemo-nos a falar desses tempos, a recordar a malta do grupo, sabes como é, e um nome associa o outro e logo após saber da Mónica a Xana perguntou por ti. Quando lhe respondi, disse que foi uma pena que não tivesses tido a coragem de te lançares à Mónica, pois ela estava caída por ti, mas muito insegura e sem coragem para te cortejar.
- Cortejar… as palavras que te lembras para um grupo de putos de quinze anos esparramados nas areias de S. Pedro.
- Podia simplesmente ter dito “para te galar”, mas acho que já não fica bem.
- E o que é feito da Mónica?
- Isso é o mais interessante. Por isso te perguntei se te lembravas dela.
- Sim?
- A Mónica, antes dos vinte anos, já tinha perdido metade do peso. Assim como o “Gordo”, o Fernando, que hoje é um careca trinca-espinhas, sabes?, a Mónica perdeu peso e tornou-se uma estampa.
- Estás a gozar.
- Não. Já sou amigo dela no Facebook e andei a ver as fotografias… Amigo, agora que está nos quarenta, a Mónica está melhor que nunca.
- Tens que me mostrar isso.
- Faço melhor do que mostrar…
- Então?
- Quando aceitou o meu pedido de amizade, ela perguntou imediatamente se sabia alguma coisa de ti. Eu respondi que continuavas a ser diferente, e que devias ser a única pessoa que conheço que não tem Facebook. Mas que iria pôr-vos em contacto.
- Não sei… isso não vai acabar bem. Se ela está assim tão bem, porque carga de água quererá sequer falar comigo?
- Porque, meu caro, tu não está tão mal como aquilo que tens a mania de ver ao espelho. E se continuas a encolher-te, vais acabar mal.
- Esquece isso.
- É difícil. Esta conversa é só para te avisar que dei-lhe o teu número. Vai ligar-te em breve.
- O que é que foste fazer, pá? Não sei…
- “Padreco”, cala-te. Já é altura de perderes a alcunha. Ela vai ligar-te e tu vais entrar nessa batalha. Vais fazer-te à vida. Aproveita. A Mónica está divorciada, sem filhos, é professora de biologia na Universidade, está gira como tudo... Tu continuas solteiro. As tuas relações anteriores são meras anedotas. És um veterinário sólido, bem instalado. Estás em forma e não és um monstro horrível. Sabes conversar, sabes rir, lês, vês filmes, cultivas-te, sais à noite… Caramba… hoje em dia isso é mais do que suficiente… não és um bêbado, um burlão, um parasita, sei lá que mais.
- Se tu achas…

- Vais atender o telefone. E depois…, depois diz-me qualquer coisa.

1.10.13

Flecha

A luz amarelada do final da tarde emprestava reflexos mágicos aos cromados e vermelhos vivos. Com carinho, as mãos percorreram as diversas peças, sentiando-as como braile. Longas inspirações inalaram o odor a borracha dos pneus, o óleo da corrente, a frieza do metal.
Aos quarenta anos sentia-se novamente com doze. Era tal e qual a sensação de prazer que recordava daquela manhã de sábado quando o seu pai trouxera a pasteleira vermelha que pedalou durante uma década. Nova em folha, vinda da única loja da terra que vendia bicicletas e na qual várias gerações sonharam com o seu modelo favorito.
Então tivera que encostar a bicicleta ao passeio para nela conseguir montar, tão grande que era aos seus olhos de menino. Hoje, a máquina que cuidadosamente acarinhava estava montada ao rigor do seu tamanho. Mas ainda não conseguira pedalar nela, apesar de todo o seu corpo gritar para o fazer. 
Saiu da loja empurrando-a e sentara-se logo ali, no primeiro banco de jardim que encontrara, contemplando o quadro encarnado, os cromados, as finas rodas, o selim de couro, igual ao dos punhos. 
Dificilmente voltaria a ter uma sensação como aquela, a de ter uma bicicleta nova, tão perfeita que o levasse ao passado, que o fizesse sonhar com o futuro. Por isso deixou-se estar, a saborear com o olhar, com o tacto. A antecipar a curta pedalada para casa, numa ânsia infantil. Os pneus, ainda virgens, chamavam o asfalto. Mas ele resistia.
Resistiu durante uma hora. Depois, com um cuidado religioso, ergueu-se, montou a bicicleta nova e sussurrou: "Flecha. Vais chamar-te Flecha."

27.9.13

Sortido Rico

O assobio da chaleira em cima do fogão apanhou-o de surpresa. Já não se lembrava quão estridente era.
Apagou o lume e ficou a ouvir o silvo esmorecer enquanto os jorros de vapor ficavam mais curtos, espaçados e ténues. Pelos seus olhos passaram imagens de um passado longínquo, vividas como se fossem da véspera.
Rodou a cabeça para a direita, procurando a avó que se sentava à janela, naquela que ao mesmo tempo era a cadeira da cabeceira da mesa. Não estava lá. Havia mais de trinta anos que não estava lá. Quase sem olhar esticou o braço e agarrou a sua caneca azul, aquela pela qual bebia desde que se lembrava. O vidrado estalado desenhava rugas negras cruzando o azul marinho e as letras brancas que anunciavam o conteúdo: C H A. Assim mesmo, sem acento. Durante quarenta anos repetia sempre a mesma pergunta quando pegava na chávena. Ainda hoje não sabia a resposta. Para onde foi o acento?
Pendurada no cabide de madeira de onde pendiam o pano das mãos e o pano da loiça estava a pequena bola de chá, em metal de qualidade, mas envelhecido. Nela guardou uma colher de folhas verdes e acastanhadas, depositando-a então na chávena que encheu com a água fervente.
Nos quatro minutos seguintes contemplou a chama da vela. Ouviu a chuva nas telhas antigas, a água nos algerozes recentes, o vento embalando as paredes da casa centenária onde os avós viveram, onde em criança passou horas e horas. Muito antes dos ATL e das extensões de horário nas escolas. 
Os pais trabalhavam. As aulas começavam às oito da manhã e acabavam logo depois da uma. Saía correndo com os colegas e animadamente caminhava vinte minutos até casa dos avós. Não havia trânsito, gente má na rua ou qualquer perigo para o qual não estivesse alertado. Conhecia quase todas as caras com as quais se cruzava e fora educado a cumprimentá-las. "Boa tarde, Sr. Augusto!", "Olá, D. Flora", "Adeus, Menina Alice", "Olá, vizinho".
Assim que abria o portão da casa a avó aparecia à porta recebendo a mochila, o casaco, beijando-o e dizendo, fiel como um relógio: "Olá, querido. Lava as mãos e vai para a mesa para não arrefecer."
Depois de almoço, os tpc, a brincadeira, a leitura dos antigos livros de banda desenhada do avô, aqueles Condor, Mundo de Aventuras, F.B.I, Guerra e Espionagem, a imaginação sempre a correr. Não havia televisão para ver constantemente, computador para jogar, net para navegar. Apenas tempo para queimar. E fantasia a rodos.
A hora do lanche era anunciada por aquela chaleira. A avó não precisava de chamar. Quando o silvo ecoava pela casa pequena, vinha logo a correr. Encontrava a carcaça com manteiga, ou as torradas feitas naquela torradeira que se punha em cima do bico do fogão, as bolachas Maria com doce ou então bolachas-baunilha que comia separando as camadas e lambendo o creme, e muito de vez em quando, para grande satisfação, bolachas com chocolate de um Sortido Rico.
Sempre com chá. Preto ou de lúcia-lima, consoante a tensão arterial da avó.
Comia com gosto enquanto ouvia a avó a falar com uma ou outra amiga que se lhe juntava à hora do lanche, falando daquelas coisas de adultos enquanto faziam crochet ou malha. E zarpava de novo para as corridas de carrinhos nos desenhos da carpete do corredor e do tapete da sala, para as guerras de berlinde entre bonequinhos de plástico (verde escuro - americanos; verde claro - ingleses; cinzentos - nazis; castanho claro - japoneses), para as mais criteriosas investigações policiais que levava a cabo com o rigor do detective que encarnava. E o mundo era a preto e branco. Como a televisão, que lhe oferecia meia-hora de bonecos quando iniciava a emissão, logo o devolvendo à brincadeira deixada em suspenso.

Hoje, a viver na casa que foi dos seus avós depois de ter vendido a dos pais para pagar as dívidas do empréstimo da casa que comprou mas que ficou com a ex-mulher, foi preciso um apagão para recordar o tempo em que tudo era simples. Foi preciso ficar sem a sua inseparável chaleira eléctrica para ir à procura da velha assobiadeira que ainda se escondia no fundo do armário. 
Sentou-se à mesa, de lado como sempre, naquele que era o "seu" lugar e olhou para a cadeira da avó. Percebeu porque é que, estando ali a viver há mais de dois anos, ainda não renovara a mobília ou os utensílios. Tudo o que ali encontrava recordava-lhe o tempo em que fora verdadeiramente feliz. E isso deixava-o sereno.

A electricidade voltou mas não acendeu a luz. Deixou-se ficar à luz da vela a ler uma bd que conhecia de trás para a frente, dando golinhos no chá e registando mentalmente que, amanhã sem falta, iria comprar uma caixa de Sortido Rico. E a chaleira que assobiava não mais veria a escuridão do fundo do armário.

10:00am

Dez da manhã. 
Olho pela janela do gabinete e a escuridão incomoda-me.
Tive que acender a luz, passando de imediato a sentir uma pressão entre a nuca e o meio da testa. 
Agora não chove. É pena. Preferia que bátegas se esmagassem contra os vidros, empurradas por ventos uivantes, enquanto relâmpagos rasgassem o tecto nublado. Iria aliviar a tensão que se acumula. Abafaria o sopro constante do ar forçado que corre pelas entranhas do edifício e é despejado por cima da minha cabeça. Daria sentido à escuridão.

Em vez disso, não chove. Não sopra vento. Não troveja. Sente-se uma calma de morte, opressiva, como uma jibóia que nos abraça e aperta. Espero a minha vez. 
Que seja rápido. 
Quero ir para casa.

3.9.13

Sem alento

Acabou-se a papa doce.
Era bom mas acabou-se.
Tudo o que é bom chega ao fim.
Querias mais, mas já não há.
É tão bom, não foi?
O fim veio demasiado depressa.

Ainda mal refeito desse mal horrível que são as férias, já estou de volta ao trabalho.
"Mal horrível?", perguntam. Pois. Demoram imenso a aparecer e rapidamente se esgotam deixando-nos com imensa vontade de continuar livres e despreocupados. Ao partirem, tornam o regresso às galés ainda mais doloroso e esmagador.

Não quero trabalhar, porra!

28.8.13

Banda Sonora de Verão (VI)

Santa's Summer Fest é um festival de Verão dos pequeninos, organizado em Santa Cruz, para não ficar atrás da arqui-rival Ericeira que também organiza, há já uns anos, um dos muitos festivais da época.
O cartaz tinha um quê de iniciação. Para além da electrónica, pelas mãos dos DJ e das noites na discoteca Faraó, consagrava um dia ao rock puro e duro, e outro ao reggae e correntes mais descontraídas, tentando abarcar o mais variado público num universo que se sabe, à partida, não ser abundante. Depois, foi misturar nomes novos com relíquias do passado e assegurar que os pais também entravam no recinto acompanhando a criançada pré-adolescente que se misturava e sentia no seu primeiro festival, um assomo de liberdade ainda que em meio controlado e sob o olhar confiante dos pais que bebiam um copo, conversavam e esperavam para ouvir nomes que já tocavam quando eles próprios eram adolescentes.

Só fui a um dos dias e apenas para ouvir uma banda.
Linda Martini.
À beira de lançar novo disco (sai a 30 de Setembro e espera-se o concerto de Lisboa no dia 9 seguinte), a banda mostrou ser um sábio animal de palco. As suas músicas prestam-se ao desempenho gutural que nos agita as entranhas. As malhas das guitarras, a sólida linha de baixo ou a fantástica bateria sovam-nos o corpo acompanhando as letras gritadas que nos agitam as ideias.
E louve-se a fidelidade à língua portuguesa que tão bem tratada é por estes quatro.
Os Linda Martini estão bem e recomendam-se. Em concerto são melhores que em disco, pois perdem a limpeza da gravação e sujam as mãos no pó e suor do palco, onde dominam com à-vontade e a boa disposição.

A seguir vieram os cabeças de cartaz, os Peste e Sida. 28 anos depois e tudo está na mesma. São básicos (no pior sentido) mas cumprem o que lhes pedem. Eu saí à segunda música. Não há pachorra.

18.8.13

Aqui tão perto - Verão na cidade

Um dia de Verão, na cidade, faz de nós turistas na própria casa. No estrangeiro, faço por ver tudo o que posso nos curtos períodos de viagem. Por cá, vou adiando e vão ficando por ver os exemplos de oferta turística e cultural desta cidade onde vivo.

Até que, um dia, aproveitamos a temperatura amena, a ausência de trânsito, as facilidades em estacionar à porta dos destinos, e suprimos algumas das falhas imperdoáveis.
Ontem foi a vez do Museu Nacional do Azulejo. Recomenda-se pois neste suporte encontramos tanto da nossa história. Boas explicações, peças memoráveis, e um ambiente acolhedor. 
Extraordinária a igreja e a sala do coro do Convento, magnificamente restaurada e ao nível do melhor que já vi.
Depois, seguiu-se a Estação Elevatória dos Barbadinhos, parte integrante do Museu da Água (site em manutenção)
Pérola da museologia industrial, onde encontramos máquinas a vapor deliciosamente concebidas com pormenores de decoração e leveza dignas das "Cités Obscures" de Schuiten e Peeters. Simplesmente imperdível.
Tempo ainda para uma passagem pelo Museu da Cidade (Lisboa) onde a exposição permanente precisava de uma nova roupagem. O museu está... "antigo" do ponto de vista da sua apresentação. 
Porém, no jardim Bordalo Pinheiro, encontramos peças incríveis que tornam o espaço num mundo onírico capaz de nos devolver à infância. Mais uma vez, pena é que esteja "em trabalhos", pois as fontes estão secas não assegurando o relevo devido a todas as peças concebidas para serem vistas na água.

Depois deste banho de cultura, porque não um dos melhores gelados de iogurte? Paragem no Campo Pequeno onde encontramos a Iogurteria do Bairo. Aposta ganha, à confiança.

17.8.13

A pedal




Ontem, sem grande esforço, dei uma voltinha pelas ciclovias de Lisboa que me fez passar pelos pontos 13, 19, 02, 01, 01, 15, 16, 18, entre outros desvios.
Precisam de melhor sinalização, especialmente nos pontos em que a ciclovia é interrompida (por exigências do terreno ou trânsito) para continuar um pouco mais à frente.
Em todo o caso, as ciclovias estão aí e recomendam-se.

14.8.13

Banda Sonora de Verão (V)



A Gulbenkian anunciava assim o concerto: "Imaginada e concretizada por Rob Mazurek, líder bicéfalo de Chicago Underground e São Paulo Underground, esta recente formação junta os dois trios e o histórico do jazz contemporâneo Pharoah Sanders, companheiro de John Coltrane . Pharoah & the Underground opõe à muralha de som dos dois trios a memória viva e renovada de um nome incontornável da história contemporânea do jazz."
Numa apresentação contínua de mais de uma hora, os seis músicos enfrentaram um anfiteatro totalmente cheio entre solos, harmonias, ambientes, mostrando uma técnica e paixão apreciáveis. Por vezes, porém, ficou a ideia de falta de entrosamento, de cada qual seguir o seu caminho independentemente dos outros. Responderam ao público e tocaram mais temas, mais curtos, mantendo as hostes interessadas no seu telento
Cumpriram com a expectativa criada, e foi muito marcante ver o saxofonista Pharoah Sanders, com 72 anos, já se movendo com dificuldade, revelar um sopro jovem, poderoso e muito criativo. São muitos anos de carreira e onde o corpo começa a falhar vai valendo a experiência.
Bom concerto a fechar esta edição de 2013 do Jazz em Agosto. 
Para o ano, espero, haverá mais.

10.8.13

Banda Sonora de Verão (IV)


Ontem foi a vez de Anthony Braxton Falling River Music Quartet no Jazz em Agosto. Uma apresentação conceptual, com uma hora contínua de interpretação num universo que me surpreendeu pela densidade e dificuldade de escuta.
Sou mais virado para as harmonias, e esta história do free jazz e da composição livre pelas quais o músico agora afina não entram muito bem no meu espírito.
Não é que não tenha gostado, pois a espaços havia detalhes que me surpreendiam e captavam a atenção mas, no geral, o concerto de ontem esteve muito longe das minhas preferências. Pode ser incapacidade pessoal para este tipo de música. Pode ser apenas uma questão de gosto, o certo é que, ontem, a hora de concerto sem qualquer margem para encores, deixou-me insatisfeito.
Além do mais, da sinopse com a qual a Gulbenkian anunciou o concerto, e com aquilo que vi/ouvi na net do artista, estava alinhado por outro diapasão. Ao que parece, com o correr dos anos, Antonhy Braxton passou a achar que o jazz é coisa muito do século XX e ultrapassada, passando a trilhar um caminho que se afasta da minha onda.

5.8.13

Banda Sonora de Verão (III)



O programa deste ano do Jazz em Agosto da Gulbenkian é apetecível. Na primeira ronda fui ver Drumming GP Plays Max Roach M'Boom e o espectáculo foi memorável. Faltam-me adjectivos para uma noite perfeita. Nove músicos em palco batendo em dezenas de instrumentos duma forma incrível, inesquecível.
Seguem-se mais dois "rounds" neste palco. A fasquia está alta.

Weber Smokey Joe 37cm

Testado e comprovado.
É lindo, eficaz, fácil e prático.

4.8.13

Banda sonora de Verão (II)

Ontem, CCB.
Sala à pinha para ouvir Devendra Banhart. Ambiente propício com público ávido e conhecedor.
Uma primeira parte assegurada pelo resto da banda, com o brasileiro Rodrigo Amarante a assumir a liderança. Boas músicas, boa onda. Grande comunicação entre artistas e audiência. 
A sala já estava na onda certa quando a estrela da noite entrou. Devendra falou português enquanto conseguiu, atacou as músicas com garra, mostrou um agrupamento muito competente, hábil, bem disposto, e trouxe uma prestação de alto nível com um som irrepreensível.
Mas foi muito pouco tempo de concerto.
Ao fim de uma hora disse adeus. Voltou para o encore, mas apenas tocou mais uma música.
Soube a pouco. Muito pouco.
E o público que se juntou no CCB merecia mais, disposto que já estava a saltar das cadeiras e dançar. Mais meia hora e este concerto teria sido memorável. Assim... 

26.7.13

Banda sonora de Verão (I)


Ontem, em Oeiras.
Numa noite fresca, mas agradável, Rufus Wainwright deu um concerto fantástico. Alegre, bem disposto, comunicativo, mostrou a sua extraordinária voz, ao melhor nível. É, sem dúvida, um artista impressionante. E, sozinho, com um piano e duas guitarras, mostrou como é capaz de encher um palco.

Não sou apreciador da banda que fez a primeira parte (Ala dos Namorados) e dispensava-a por não a conseguir encaixar. Apesar dos bons músicos presentes - Alexandre Frazão, Zé Nabo, Mário Delgado -o produto é frio e roda à volta de um Nuno Guerreiro que é sobrevalorizado, pois não passa da mediania. Ainda bem que foram interrompidos e não continuaram a tortura à qual me sujeitaram enquanto esperava pela verdadeira estrela. 

Rufus Wainwright. Quem não conhece ainda, está na hora de ir ouvir.

15.7.13

Pernas e bronzeado

Subia cansado as escadas quando reparou nas pernas bronzeadas que pulavam os degraus à sua frente.
Apesar do interesse subitamente desperto não conseguiu acompanhar o ritmo e perdeu-a antes do patamar seguinte. Quando penetrou no terceiro piso desconhecia se ela estaria por ali, se ficara lá em baixo, ou se chega ao nível da administração.
Focou o olhar em todas as distâncias, sem sucesso. A atenção há pouco focada nas pernas dispersara-se quanto aos demais pormenores. Tinha a ideia de que haveria um vestido com flores, mas não conseguia descrevê-lo, recordá-lo. 
Caminhou por entre os biombos do open space até ao seu cubículo sem prestar atenção em algo mais que a sua busca. Sentou-se e olhou para os dois monitores negros. Demorara muito e o computador já se encontrava a economizar energia. Seria bom se dispensasse alguma, pois sentia-se tão cansado.
Viu o seu reflexo distorcido no vidro negro e recordou-se o quanto era feio. Nunca aquelas pernas, ou outras quaisquer seriam suas.
Não enquanto fosse assim, pálido, balofo, meio careca.

Dois dias depois entrou em férias. Numa arriscada decisão cortou o cabelo com máquina "1", vendo brilhar o escalpe branco. Cortou a barba e nunca mais a deixou crescer de um dia para o outro. Inscreveu-se num ginásio que passou a frequentar com afinco e foi à praia durante três semanas seguidas.

Quando regressou ao trabalho parecia outro. Face escanhoada, pele acastanhada, menos seis quilos, alguns músculos mais desenhados.
Sentia-se bem, sentia-se melhor.
Estava pronto para conhecer aquelas pernas que, estava seguro, reencontraria.

7.7.13

Urtigas e calor

Está um calor brutal. A cidade chia por todas as juntas, dilatadas, apertadas, sob tensão. 
Noutros tempos estaria à beira-mar, nalgum sítio mais fresco, sem preocupações para além do sal, da areia, do disfrute casual de um dia de praia. Infelizmente, hoje estou por casa. Trabalho, suo, procuro o conforto que a canícula citadina me rouba. 
Isto tem que parar algum dia. 
Às urtigas com as responsabilidades, apetece-me dizer.
Apetece-me fazer.

6.7.13

É triste ter razão

Incapaz de encontrar alguém a quem confiar a chave de casa para cá entrar e mexer nas minhas coisas quando estivesse ausente, assegurando-me a lide doméstica, optei por, há já alguns anos, entregar tal tarefa a uma empresa que me envia duas mulheres, duas horas por semana. Prefiro assumir o ónus de ter que estar em casa nesse período ou providenciar por alguém disposto a aturar tal frete.
Ao longo dos anos as equipas que entraram cá em casa tem sido muitas e variadas e com alguma pena deixei de ver pessoas às quais me habituei e que reencontrava com prazer naquelas duas horas semanais.
Entre elas conta-se uma maioria de mulheres brasileiras, das mais variadas idades. Uma delas, ultimamente desaparecida mas que, há coisa de um ano, vinha com maior regularidade, deixou conhecer como vivia de um salário que não chegava a € 600,00 por mês. E o mais impressionante é que ainda conseguia garantir o envio mensal de centena e meia a duas centenas de euros para a sua família no Brasil. Como uma das suas companheiras assíduas deixara de vir, procurei por ela para saber que regressara ao país natal. Alvitrei que poderia ser o seu destino, tendo em conta os maus dias que vivemos por aqui e o desenvolvimento anunciado que há do outro lado do Atlântico. Desolada disse que não, que a sua terra era no interior, desligada das grandes cidades pelo que lá só havia desemprego e pobreza. Não tinha como voltar. Ia continuar por aqui. Ia continuar a dizer-me, com um brilho nos olhos, que até conseguia poupar para ir uma vez por mês ao McDonalds.

Esta semana apanhei uma conversa entre as duas mulheres que compõem a mais recente versão da equipa. A mais nova, portuguesa, queixava-se à outra, brasileira, que recebera uma carta da universidade a pedir-lhe para pagar quantias em dívida. Como era possível, dizia, lembrarem-se de coisa tão antiga, quando já acabara a licenciatura havia mais de dois anos?
Não sei qual foi a licenciatura. Pela conversa, julgo que a universidade será privada. O que sei é que aquela rapariga pagou um curso, licenciou-se e anda de casa em casa a limpar e arrumar para outras pessoas. Com um salário pequeno.
Alguns dirão que não é vergonha. Concordo, não é. Dirão ainda que até tem sorte. Nos dias de hoje ter emprego já é muito bom. 
O que é triste é que têm razão.

3.7.13

Alto!, e pára o baile!



Depois de ontem, tendo ouvido o P.M. falar com um tom entre o teimoso eo amuado, tenho poucas dúvidas de que, mais tarde ou mais cedo, iremos ter eleições. 
Tal como estão as coisas, tão baixo que é o nível de confiança em qualquer dos partidos ou políticos da praça, seguramente os votos serão então repartidos entre os cinco partidos do costume (ok, seis se autonomizarem o PEV), sem vencedores ou maiorias. 
Habituados que estão a discursos radicais, nos quais sem qualquer pinga de responsabilidade um consenso é os outros aderirem à ideia que cada qual quer impôr, ficaremos reféns de um sistema político que nos dará um resultado à italiana. 
Mas não temos um presidente à italiana que resolva a crise, nem um povo à italiana. 
Ou à belga, povo que durante quase dois anos sobreviveu sem governo.

Porém, está aí o sol, o calor, e a malta quer é encher as praias, passar uma hora na fila à saída da Fonte da Telha, evitar os arrastões, beber umas cervejas e esperar que a época da bola recomece enquanto se lêem mais umas desgraças alheias na capa do Correio da Manhã e se pensa "Está tudo louco. Ainda bem que não sou eu."

Como diz o Sérgio Godinho... "Cá se vai andando, com a cabeça entre as orelhas". Já Jorge Palma adiantava "Ai, Portugal, Portugal, do que é que estás à espera? Tens um pé numa galera, e outro no fundo do mar".

16.5.13

Atchim!!!

Dois baldes de água fria em menos de uma semana.
Acho que vou ali ficar doente, já volto.

7.5.13

O meu coração

A ponta rebelde do cabelo preto insistia em cair para a frente cobrindo o olhar e forçando-a a afastá-la com um gesto curto e rápido ou com um explosivo agitar da cabeça. 
Os lábios, bem pintados de vermelho vivo, movimentavam-se com uma frequência assustadora, à medida que freneticamente descrevia o que lhe acontecera repetindo-se amíude. Todo o episódio a deixara enervada, as palavras atropelando-se umas às outras, o corpo suado e com arrepios, a mente repetindo vezes sem conta a cena. Gesticulando, pontuou pela segunda vez a frase que era um mistério para todos os que a escutavam: "E quando ele me disse isso, o meu coração já nem parava!"
O polícia que a ouvia acenava ocasionalmente com a cabeça e fingia tirar notas para um pequeno bloco de apontamentos. O certo é que não o fazia, nem se importava. Não iria perseguir o ladrão, posto que ali chegara já muito tarde. Não iria investigar os factos pois isso incumbiria à brigada anti-crime, sobrando-lhe apenas o patrulhamento. Sabia que ali a sua função era mais de ouvir e assegurar à senhora que a Polícia iria reagir. E no seu íntimo acrescentaria a palavra "tarde".
De nada valeria a pena tomar notas, pois dqui a pouco, quando a senhora tudo tivesse desabafado e retornado a um estádio de maior serenidade, acompanhá-la-ia à esquadra e deixá-la-ia para tudo repetir ao Figueiras que preencheria o devido expediente.
Com um olhar vazio continou a escutar, concentrado na madeixa rebelde e no coração que não parara.

4.5.13

Lá vem o Cabrão

Todos os dias, pelas seis e meia da manhã, passava por ali com a máquina de lavar a rua que chiava horrivelmente. 
Era, por isso, a pessoa mais odiada do bairro, a quem chamavam todo o tipo de nomes, desde o acordar mal-disposto entre almofadas e lençóis, até ao deitar, antecipando o horror da madrugada seguinte. Tal sentimento generalizado, deixava-o infeliz.
Desgraçadamente não havia óleo que parasse a chiadeira da máquina e a Câmara não tinha dinheiro para a substituir. Por mais que os mecânicos dos serviços mexessem na sua ferramenta de trabalho, acabavam sempre por alvitrar que a cura para o mal passava pela reforma e abate do equipamento, para o qual já nem sequer se faziam peças.
E assim, secretamente, continuava a rezar para que a máquina "desse o berro", estoirasse, se finasse, "fosse com os porcos", ainda que isso implicasse uma alteração nas suas funções. Desde que deixassem de o chamar de cabrão e filho da puta logo às seis e meia da manhã.

Pois é...

"Quando nada tens, nada tens a perder!"

29.4.13

Antigamente

"O Salazar, a mim, nunca me fez mal nenhum!" , anunciou em tons de autoridade para justificar o seu descontentamento com o actual estado da nação.
Pois não, pensei. A ti não te fez mal algum, mas fê-lo a muitos outros que por cá andavam. Destruiu muitas vidas e reduziu a existência de milhões a um dia-a-dia de trabalho, pobreza, medo, temor reverencial e subserviência. Mas como tu eras dos que estava bem, estás a cagar-te para todos os demais. Apesar de pensar tudo isto, nem uma palavra disse. A viagem continuou e tive que gramar mais uns minutos de ideias feitas, disparates, parvoíces fascistas e fascizóides que  velho continuou a partilhar em voz alta para que o outro velho que o acompanhava no autocarro pudesse ouvir, entender, e acenar com a cabeça dando a sua concordância a tamanhos dislates.
Porém, a dado passo, o autocarro encostou a uma paragem sem que alguém tivesse premido o sinal para tal efeito ou alguém pedisse para entrar. A porta de trás abriu-se com um sonoro suspiro pneumático e o condutor levantou-se avançando pelo corredor. puxando pelo braço do velho exclamou: "Faça favor de sair do veículo!".
"Mas..."- hesitou o velho - "Eu quero continuar até Moscavide."
"Queria, não queria?" - o tom de voz do condutor era severo e inflexível - "Mas vai ficar aqui, que eu não o quero a bordo."
"Mas com que direito...?"
"Com o meu direito. E se quiser, vá queixar-se ao Salazar"

25.4.13

O "Montanha"

Sabe-se agora que nunca foi conhecido pelo seu nome próprio. Num momento de infeliz falta de inspiração, os pais baptizaram-no de Plácido Sebastião Pequeno Casal.
Assim que começou a frequentar a escola, as outras crianças, com a sua cruel frontalidade, encontraram formas de deturpar os seus nomes e apelidos irritando-o com alcunhas depressivas. Nomes que se propagavam como fogo em mato seco e, de um dia para o outro, tinha a escola em uníssono a usar a última e ofensiva moda.
Contudo, teve sorte nos genes. Cresceu rapidamente, sempre à frente dos colegas, sempre maior, sempre mais forte. Vai daí, começou a cobrar o fim dessas alcunhas, oferecendo uns sopapos como garantia. Apesar de não poder combater a escola toda, tinha a inteligência de escolher os confrontos mais frutuosos. Os gozões, aqueles que arrastavam o peso da popularidade, eram as suas vítimas de eleição. Nada melhor que pôr um deles a chorar para transmitir a mensagem no recreio. 
Enfrentava, porém, um problema. Tanto esforço não seria compensado, ou credível, se começassem a tratá-lo por qualquer um dos seus nomes. Foi então que ele próprio escolheu a alcunha pela qual queria ser conhecido. E ainda não chegara à quarta classe já toda a gente sabia quem era o "Montanha". 
"Montanha".
De início estranhou, mas rapidamente viu a lógica e o poder do nome. Plácido estava sempre uns centímetros e uns quilos acima da média. Era grande. Era forte. Assustava. Nada melhor que "Montanha" para ser conhecido. E o único que se lembrou de o tratar por "Montanha de merda" foi ao dentista de urgência para reparar a perda de três dentes, dois deles definitivos.
O "Montanha" teve um percurso difícil. Tanto crescimento físico, tanto empenho no emprego da força, trouxeram-lhe limitações escolares lá pelo oitavo e nono anos durante os quais andou a marcar passo. Tinha dezasseis quando abandonou a escola sem sequer completar o nono ano. Mas o seu pai achou que estava mais do que na altura de por a trabalhar aquele corpo que já passava por vinte. O "Montanha" foi para a empresa de mudanças do tio e começou a dar-se com novos amigos, todos mais velhos e experientes. Amigos que o apresentaram ao haxixe e, mais tarde, à sua companheira cocaína.
Foi por essa altura que num círculo mais restrito o "Montanha" passou a ser conhecido pelo "Dedos". Tinha o irritante hábito de estalar os dedos constantemente. Tinha também o dom de, durante as mudanças, com subtis passes de mágica, fazer desaparecer este ou aquele bem que, depois, era rapidamente convertido em vício. Juntas as duas habilidades, a alcunha surgiu com naturalidade. 
Depois da tropa, onde o tratavam pelo apelido propiciando piadas às quais reagia a quente, ganhando com isso alguns dias de prisão disciplinar, "Montanha" regressou com uma nova paixão: as armas. Recusou voltar a trabalhar com o tio e juntou-se a um grupo com o qual ocupou uma casa desabitada. Os pais passaram a vê-lo apenas uma ou duas vezes por mês e, para seu desgosto, sempre que dele tinham notícias as mesmas estavam longe de ser boas.
A polícia tomou-o debaixo de olho e aos vinte e quatro o Juiz, apesar de ser a primeira condenação, não hesitou em dar-lhe três anos de prisão efectiva, impressionado que ficou com as fotografias da cara amassada da vítima e dos tiros disparados contra três polícias.
Cumpriu dois anos e regressou ao activo, permitindo-se  um novo nome. A montanha fumegava agora a duas mãos, graças ao par de pistolas Smith&Wesson de 9mm que encontrou ao assaltar a casa de um militar. Nunca mais as largou, assim como à nova alcunha. Por todo o lado se passou a ouvir falar do "Pistolas".
O "Pistolas" ganhou fama e a Polícia empenhou-se em fazer-lhe a folha. Acumulavam-se zaragatas, espancamentos, tiroteios... Ele e o seu grupo estavam cada vez mais eficazes a entrar em casas e limpar o recheio mais valioso. Se alguém aparecia pela frente não hesitavam em bater ou disparar.
Contudo, o "Pistolas" aprendera mais em dois anos de prisão que em onze anos de escola e trouxera um "mestrado" em artes de rua, estratégia e técnicas para não deixar provas. Tinha uma linha de escoamento dos bens adquiridos e nunca lidava directamente com os receptadores. O seu tamanho, força, fama e as duas pistolas desencorajavam os delatores.
Ainda assim, sabemos todos muito bem que não há nada que dure para sempre. A sorte do "Pistolas" acabou no dia em que pisou os calos ao Comandante Carriço, oficial da GNR que toda a gente chamava de "Carraça".
Longe de ser um exemplo de integridade, "Carraça" estava uns degraus acima na cadeia alimentar. E jogava tanto pelo lado da lei como pelo campo da clandestinidade. Por isso, no dia em que o "Pistolas" e o seu grupo foram à sua casa, limparam um ror de dinheiro e valores, e abateram o cão de guarda, fiel amigo de sete anos, "Carraça" decidiu acabar de vez com aquela rês. E, jurou-o, não iria dar trabalho aos Tribunais. Não iria ficar à espera que um Juiz aplicasse a lei e permitisse que, em poucos anos, aquele meliante retornasse às ruas.
Vai daí, "Carraça" pôs os seus homens da GNR em campo para investigar, acossar, encurralar o "Pistolas". E encarregou os seus outros homens para, no final, não deixarem o "Pistolas" ser apanhado pela Guarda. Pelo menos em condições de ser julgado.
Aconteceu tudo numa madrugada quente de Verão. "Pistolas" e seu grupo entraram numa vivenda lá para os lados de Azeitão, em plena Serra da Arrábida. À saída, nas estreitas estradas de terra, a GNR esperava o grupo. Houve tiros e perseguições e foram todos capturados. Todos excepto o "Pistolas" que conseguiu acelerar de encontro à barreira que lhe cortava o caminho e passar incólume aos vários tiros que contra si foram disparados. 
Seguindo pelas estradas costeiras, esclareceram as notícias que perdeu o controlo do veículo e caiu por uma falésia. Pelo menos essa foi a versão do Cabo e do Soldado da GNR que primeiro chegaram ao local.
Sem meios nem perícia para acompanhar o ritmo do fugitivo, tinham ficado para trás no velho jipe temendo mesmo perder definitivamente o rasto do "Pistolas". Mas à luz de apenas um farol de um Mitsubishi Pajero estava um homem que lhes fez sinal e se limitou a dizer: "Ia a passar e vi um carro a voar pela falésia abaixo".
Nenhuma das perguntas que o Soldado queria fazer, nomeadamente o porquê daquelas marcas de colisão no Mitsubishi, teve oportunidade de ser respondida pois o Cabo foi rápido a agradecer e dispensar a "testemunha". Nem sequer dela fez constar no relatório.  
Nos últimos momentos, quando as rodas giravam livres pelo ar, as pistolas calaram-se, os dedos partiram-se, a montanha ruiu. E Plácido Sebastião Pequeno Casal encontrou o seu fim no fundo de uma falésia, enquanto fugia da polícia, ganhando a imortalidade nas histórias que ainda hoje se contam sobre si.