31.1.13

Escravidão

Com um enorme peso nos ombros caminhava pelas ruas que pisava todos os dias. À sua volta tudo era negro, cinzento, baço. 
Punha um pé à frente do outro como um condenado que é levado para o cadafalso. Mas avançava, apesar de não ser empurrado por qualquer verdugo. Era ele próprio quem se obrigava a caminhar.
Quando viu a porta da oficina suspirou fundo e sentiu na garganta um nó que lhe empurrou uma tremura pelo corpo. Suspirou.
A vida não podia ser isto. Não podia ser só isto. Dez horas diárias disto. Mais o resto, sozinho naquele apartamento escuro. 
A vida não podia ser só isto. Escravo de si mesmo.

30.1.13

Talvez amanhã

Havia dois anos que apanhava, religiosamente, o mesmo comboio, o mesmo barco, o mesmo autocarro até ao trabalho. Todos os dias. 
E todos os dias, salvo algumas excepções, nomeadamente nas férias, via-a no mesmo comboio, no mesmo barco, sempre no mesmo lugar. Como um relógio, as suas vidas cruzavam-se.
Apesar de já ter sonhado mil e uma maneiras de começar a conversar com ela, nunca o fizera. Nunca conseguira. Nunca se alinharam as circunstâncias para que ultrapassasse todas as inseguranças que durante uma vida o impediram de, realmente, viver.
Quem sabe... talvez amanhã.

Havia dois anos que reparara nele. Adorara o facto de não ter sido apenas uma viagem. De todos os dias se reencontrarem naquele comboio, de prosseguirem naquele barco... Já lhe dera nome. Já lhe dera emprego, educação, futuro. Já imaginara tudo aquilo que desconhecia por não ser capaz de quebrar a barreira que os separava.
Talvez amanhã.

29.1.13

Rápido

À porta de casa viu a carreira a dobrar a esquina a três quarteirões. Correu apressado até à paragem, agitando os braços para o motorista. Este, habitual àquela hora, esperou uns segundos para que ele entrasse, ofegante. Trocaram cumprimentos matinais e ele foi colocar-se estrategicamente junto da porta de saída. 
à chegada à estação, olhou insistentemente, a cada dez segundos, para o relógio de pulso. Assim que as portas se abriram largou a correr. Tinha menos de um minuto para apanhar o comboio, e já o ouvia a chegar, abanando os carris e a estação. Entrou em cima da hora, já o sistema hidráulico fechava as portas. 
Em todas as paragens do percurso preocupou-se com o tempo perdido, olhando para o relógio e contabilizando se demoravam aquilo que o horário previa. À chegada, voltou a ser primeiro a sair, na primeira porta da primeira carruagem. Correu então pela gare, pelas escadas rolantes que desciam à nova gare, conseguindo apanhar o metro que se preparava para largar, três minutos antes do próximo.
Quando chegou ao emprego, faltavam quarenta minutos para as nove, hora a que começaria trabalhar. Ficou esse tempo em pé, ao frio e vento, à espera que o patrão chegasse para abrir a porta.

28.1.13

Um dia de cada vez

"Como cheguei eu aqui? Por onde vim hoje? Com quem me cruzei?", pensou Rodrigo ao desligar o carro. "Que horas são? 08.30.", respondeu a si mesmo olhando o relógio com trinta anos que usava no pulso. "Para onde foi a última meia-hora da minha vida?"
Todos os dias partia de casa para o trabalho ao volante do seu pequeno Fiat Punto. Todos os dias tinha que decidir, enquanto progredia, qual o melhor caminho a seguir. "Hoje, por aqui não, há fila. Oi, estão a dizer na rádio que ali à frente houve um acidente, é melhor sair por este lado". A rede de estradas interligadas que separavam o lar do escritório permitiam variadas combinações que Rodrigo tinha já explorado durante anos. Muitos anos.
Hoje, porém, ao desligar o carro, foi assolado pela dúvida. "Como cheguei eu aqui? Por onde vim hoje? Com quem me cruzei?"
O caminho ficou perdido dos pensamentos que o absorveram durante a viagem. Nem o rádio ligado penetrou no seu consciente. Hoje não rira de piadas algumas que a equipa da manhã costumava lançar, ajudando-o a acordar e a ganhar boa disposição. Hoje não. Não recordava nada da emissão.
Hoje encontrou-se perdido nos automatismos do dia-a-dia.

26.1.13

À espera do fim

Com energia bateu os pés no passeio para afastar o frio que o invadia. Estava em pé havia quatro horas, e a temperatura atingira o ponto mais baixo, agora que o sol já rompia o negro do céu por detrás dos altos edifícios que os rodeavam.
Gente mais experiente trouxera bancos portáteis, cobertores, termos com bebidas quentes. Ele, estreante a estas horas, viera mesmo mal preparado. Tinha frio, fome, sede. Sentia as pernas inchadas por estar de pé tanto tempo seguido, sem sair do mesmo sítio. O desconforto era tanto que já nem sabia em que posição ficar. 
Conversas sussurradas eram mantidas, o vapor quente saindo para o ar gélido. A luz da rua era ténue, pelo que ninguém se ocupava a ler. Havia, pois, muito tempo para pensar na vida.
Os dias difíceis eram agora a regra. Desde o início da guerra tudo mudara. Primeiro o recrutamento, os dois rapazes a serem chamados, a mãe inconsolável, sem energia, sem iniciativa. Fechada em casa, sentada à janela, ao lado do telefone, olhava para o fundo da rua, à espera de ver chegar o carteiro com o telegrama ou ouvir o toque fatídico.
Depois o blackout. Com ele o racionamento. As filas. Contudo, agora já nem era razoável.
Acordar às três da manhã para ver se às oito agarrava um naco de carne. Já não se lembrava da última vez que comera carne.
E, entretanto, a espera. A mente a divagar. 
Sentia a loucura chegar. Sentia-o quando sonhava que seria tão bom se agora caísse ali um daqueles novos mísseis que se aproximavam em silêncio surpreendendo toda a gente. Seria tão bom, pôr fim a tudo.

24.1.13

Ao correr do tempo

O átrio acolhia dezenas de pessoas que esperavam, impacientes, a sua vez. As paredes de pedra amplificavam os ecos de múltiplas conversas simultâneas. Sob o sol directo que fervia na varanda, os incansáveis fumadores queimavam cigarros e tempo. A ritmos incertos, funcionários assomavam à porta das três salas de audiência e chamavam mais uma testemunha para os julgamentos em curso.
Com o correr do tempo reduziram-se os presentes, calaram-se as conversas, quebrou-se a luz e o calor. O ar, pesado, sufocava as horas lentas.
Pelas seis da tarde fecharam-se as portas da sala mais pequena, recolhendo o Juiz ao silêncio da ponderação. Meia hora mais depois ouviu-se o estrondo descuidado do fecho de outra sala.
Foi precisa mais uma hora para ver os guardas prisionais levar os dois arguidos, e para acompanhar os passos dos três advogados enquanto suspiravam escada abaixo abraçados às suas togas, códigos e pastas.
A Procuradora saiu por uma porta desaparecendo nas entranhas do Tribunal. Por uma outra porta, do lado oposto, retirou-se o Colectivo disposto a mais uns minutos de discussão.
O funcionário trancou a sala.
As luzes apagaram-se. 
O pó assentou.
No silêncio da noite esperou o Tribunal pela chegada das suas mais madrugadoras frequentadoras. As senhoras da limpeza que ainda noite, viriam repor a ordem e limpeza ao átrio onde esperavam as ânsias de quem quer ver a Justiça em andamento.

23.1.13

Silvos arrepiantes


Cada vez que o silvo da broca se fazia ouvir encolhia-se todo, ficando ainda mais pequeno. A cabeça colava-se aos ombros, os joelhos aproximavam-se do peito, os pés encarquilavam-se dentro das botas, punhos e dentes cerrados.
Por vezes, a compor o ramalhete, ouviam-se uns gemidos. “Hum, Hum, Huuuuummm”.
Serenamente, a sua mãe lia uma revista. Mais duas pessoas aguardavam a vez, sem mostrar o mínimo indício de preocupação. Ainda não sabia bem o que era isso de ir ao dentista, mas os colegas da escola tinham traçado o cenário mais negro que conseguia imaginar. E a cada silvo da broca imaginava trepanações dolorosas.
Ouvia-se um rádio, baixinho, a fazer ambiente. Não conseguia perceber o que diziam e não conhecia as músicas que passavam. Permitia-se pensar que eram músicas de gente nova, mais modernas que aquelas que os seus pais ouviam lá em casa.
Tocou a campainha e entrou mais um carneiro para o altar. Vinha pela mão do pai e trazia uma consola portátil nas mãos. Anestesiado pelo jogo virtual, nem tremia na antecipação.
Olhou lá para fora, pela janela, e sonhou uma fuga. Qual herói de BD saltaria partindo os vidros e aterrando na rua por onde correria fugindo aos malvados bandos que sem sucesso o perseguiriam. Focou-se então no candeeiro de pé, com o seu quebra-luz amarelado. A luz quente que difundia atraía uma mosca. Pediu-lhe ajuda em silêncio, imaginando-se a voar em cima do peludo insecto. 
Foi então que, com um tremelique de aviso, a luz se apagou. A do candeeiro de pé, a das lâmpadas do tecto, a que vinha da rua. A sala de espera ficou às escuras, com excepção da luzinha branca indicando a saída, com um homem verde a correr em fundo branco. A broca parou. A música parou. Tudo restou em silêncio.
Depois de dez minutos, confirmaram que a electricidade demoraria a voltar. Caíra um poste na sequência de um acidente de viação. A rapariga de branco, com máscara facial desviada para o pescoço ofereceu-lhe a ordem de soltura. As consultas estavam canceladas. Por hoje, desviara a bala, escapara ao pelotão de fuzilamento, saltara da cadeira eléctrica.
Ainda não seria hoje que se sujeitaria ao malvado Dr. Dentista, pérfido vilão da broca que silvava.

22.1.13

Opinião


A sala estava cheia, mas quase em silêncio. 
Várias dezenas de pessoas reunidas à espera. À espera da sua vez, de ouvir o seu nome no fanhoso aparelho de som indicando o gabinete para o qual se deveria encaminhar. Ao contrário do que era habitual, as duas televisões estavam desligadas, sentindo-se a ausência das notícias que precediam o programa da manhã.
Lá fora chovia e estava frio. Mais frio que na última semana. A queda foi tão abrupta que justificou uns “alertas amarelos”. Talvez por isso, o pouco que se ouvia era traduzido em fungadelas, tosses e espirros. Vai-se ao hospital para ser tratado pelo médico e traz-se de lá uma gripe oferecida pelo doente sentado ao nosso lado.

Quando entrou, poucas foram as cabeças que se dignaram notar nele. Porém, minutos volvidos, não havia um único paciente que não estivesse à procura de um ângulo de visão para o olhar.
Ele sentou-se num dos lugares lá do fundo e abriu o jornal do dia. E ao fim de um minuto começou a falar. Não se dirigia a ninguém em particular, antes aproveitando a audiência silenciosa.
“Claro que o tempo está mau. Vento, chuva, tempestades. Claro que sim. Gastam o dinheiro todo em porcarias e a mandar coisas lá para cima que dão cabo de tudo. Isso e o aquecimento global. Quando era miúdo tínhamos quatro estações. A Primavera vinha em Março. Os dias aqueciam, floriam, as tardes cresciam aumentando o nosso tempo de brincadeira. Em Junho começavam as férias grandes e começava o Verão. O sol, o calor, a praia. Até Setembro. Lá para o final vinham as chuvas e as trovoadas que anunciavam o Outono. Quando começávamos as aulas já não tínhamos vontade de continuar no Verão e ambicionávamos o fumo das lareiras, das castanhas, o frio que aumentava anunciando o gelo do Natal e do Inverno. Isso é que eram tempos. Sabíamos quando íamos ter calor, frio, sol, chuva. Hoje nada mais é assim. Foram eles que deram cabo de tudo”.
A voz era elevada, e cada um dos doentes em espera conseguiu ouvir todo o discurso. Trocaram-se sorrisos, alguns trocaram umas palavras. Mas de novo o silêncio se instalou até que ele continuou.
“Como se não bastasse, agora cortam em tudo. Cortaram-me a pensão, cortam-me os medicamentos, os tratamentos, pedem-me para pagar tudo. A comida está mais cara. O senhorio chula-me coiro e cabelo. Água, gás e luz levam-me outra fatia esmagadora. Qualquer dia vou viver para a rua… Isto já lá não vai a bem. Qualquer dia o povo chateia-se e muda isto tudo outra vez.”
Desta vez ouviram-se vários a perguntar, quem era aquele personagem.
Os pacientes mais antigos respondiam e avisavam:
“Não sei bem, mas está aqui todos os dias. Chega com o jornal e começa a fazer o comentário em voz alta.”
“O melhor é ignorá-lo. Quem decidir dar-lhe troco tem para a manhã inteira, que o tipo fala, fala, fala que se desunha”
“Acho que vem todos os dias. Eu, pelo menos, já é a terceira vez que o apanho. Aqui, pelo menos, não está ao frio ou chuva.”
O monólogo continuou.
“O governo não tem dinheiro, mas não cobra aos clubes que gastam milhões em futebol… Está tudo perdido.  O melhor é emigrar, como diz o outro. Não sei para onde. Eu acho que ia bem para a Venezuela. Ainda tenho para lá uns primos. Se bem que a violência…”
“Olhe que por aqui, também está cada vez pior.” - respondeu-lhe um dos doentes, do alto da sua sabedoria de setenta anos...

21.1.13

O homem quer é fogo

- Acredita no que te digo. Estas histórias repetem-se porque as brasileiras vêm para cá, as interesseiras, roubar-nos os homens.
- Exageras tudo. Os homens é que são desmiolados e não resistem a qualquer engate.
- Para mim, as brasileiras são todas umas putas, é o que é.
- Lá estás tu a abusar. Vais-me dizer que nunca houve encornanço com portuguesas...
- Está bem. Mas agora é demais. Vê lá que nos últimos tempos foi o meu cunhado, o vizinho de cima, um colega lá do escritório e o pai da Aninhas... Todos eles largaram as mulheres por brasileiras. As putas. Querem é o dinheiro deles.
A conversa já durava havia uns minutos e o tom de voz era suficientemente alto para que todos os que estavam na sala de espera ouvissem a indignação daquela mulher. Cerca de cinquenta anos, cabelo pintado de loiro, grandes unhas de gel com desenhos, fios e pulseiras de ouro, tal como as largas argolas que pendiam das orelhas, casaco curto de pêlo preto, saia subida, saltos altos de verniz. 
Da porta da sala ouviu-se a funcionária do consultório chamar por Solange Vieira e uma mulher, sensivelmente da mesma idade mas aparentando menos uma dezena de anos levantou-se. Não resistindo, com o seu sotaque carioca respondeu à ofendida senhora:
- Olhe, senhora, o seu problema é que os homens portugueses, como quase todos, ficam doidos por mulheres que os tratam como reis e, desmiolados como são, enquanto estão entretidos com o samba não chateiam a nossa cabeça.
   "E a mulher brasileira quer um homem vai buscando por ele, não é, Então usa seu corpo como arma. Mas uma arma que mostra, pega e dispara mesmo. Não é como a portuguesa que mesmo quando tem arma nunca a quer disparar, tem medo, nojo de usar seu corpo.
   "Se o que o homem quer é fogo, vai logo disparando seus canhões. Usa seu corpo, faz sexo com ele de forma que ele só pensa ser possível aos outros e garanto que ele não vai procurar mais nenhuma mulher, seja ela brasileira, portuguesa, francesa, russa... Agora, se você só lhe dá sopa, e sempre a mesma sopa, vai estranhar se ele quiser ir lá fora comer um bifinho?


18.1.13

Obrigado, Armstrong, por me fazeres passar por parvo. Obrigado por me teres feito acreditar em ti, inclusivamente há uns meses atrás quando te defendi enquanto vítima de uma injusta perseguição.
E, afinal, eras igual aos outros que nos entusiasmaram nas subidas francesas e foram expostos como produtos de substâncias ilegais.
Eu sei que pedalar custa muito mas... Haverá alguém no ciclismo em quem possamos acreditar?

Raiva

Logo que saiu do elevador percebeu que tudo estava errado. As lascas no chão, as marcas na porta, a porta entreaberta.
Ficou hirto. Hesitou entre chamar de imediato a polícia ou certificar-se se ainda estava alguém lá em casa. No silêncio do átrio lembrou-se de respirar novamente. Fê-lo devagar, profundamente.
Largou a pasta e encostou-se à porta arrombada. Nada. Nem um som. Empurrou-a o suficiente para se esgueirar para o interior e penetrou no seu espaço sagrado, tão manifestamente violado.
O sentimento era esse mesmo, de violação. Tudo estava remexido. Já mais confiante foi avançando, ciente que há muito se teriam ausentado os ladrões.
Na sala faltava a televisão, a consola de jogos, a mini aparelhagem. Mas as gavetas do aparador tinham sido abertas e muito do seu conteúdo repousava no chão.
No escritório tudo voara. O computador portátil, a impressora, a máquina fotográfica, o iPod. As gavetas tinham sido retiradas do pequeno armário e estavam viradas, vazias, ao lado da pilha de papeis e pequenos artigos que anteriormente guardavam. Atrás da porta estava o espaço vazio onde costumava encostar a espingarda de pressão de ar com quarenta anos que herdara do pai.
No quarto tudo fora revirado. De imediato se despediu dos relógios, vazia que viu a respectiva gaveta. Apercebeu-se igualmente que o blusão de cabedal que ficara desarrumado na cadeira se tinha eclipsado.
Entrou na cozinha e viu que lhe tinham levado a Bimby, a Nespresso, as garrafas de vinho, de whisky, de gin, de vodka...
Apeteceu-lhe gritar, chorar, partir, bater. Mas não fez nada disso. Conteve toda a raiva e limitou-se a chamar a polícia. Concordou em não tocar em nada antes que chegassem.

Quando a PSP chegou a sua casa encontrou-o caído no chão da sala, vítima de um AVC fulminante.

17.1.13

Há dias assim.

Assim que entrou no átrio do prédio ouviu-o miar furiosamente. Já adivinhava a sua chegada.
Subiu os dois lanços de escadas e abriu a porta de casa. Os miados vinham acompanhados de violentas cambalhotas que dava, tão contente estava. Com o bichano a cruzar-se com os seus pés, roçando-se nas calças, alcançou o quarto onde largou o casaco, as chaves, a carteira, o telemóvel. 
Então baixou-se, pegou na quente e fofa bola de pêlo branco e negro e abraçou o gato com amor. Deitou-se cheirando o pêlo quente e sentindo o pesado ronronar que rapidamente o embalou.
Começou então a chorar.
Há dias assim.

16.1.13

Calado

Aos poucos tornara-se um indivíduo fechado em si próprio. 
Com frequência apercebia-se de que não dissera uma palavra, a alguém que fosse, durante o dia todo. Sentia-o quando chegava a casa e falava para o gato e a voz escapava-se-lhe pois as cordas vocais estavam secas, caladas.
Também... cada vez menos havia quem interessasse ouvir, a quem interessasse falar. A realidade era muito mais viva na sua cabeça que no espaço que o rodeava.
Por isso escrevia. Escrevia. Escrevia. 
E aí dizia o que queria sem ter que falar a alguém.

15.1.13

Orgulho

"Nós, os homens, também semos orgulhosos", disse o sem-abrigo filosofando com o seu companheiro enquanto partilhavam um pacote de vinho.
Retardei o passo para ouvir melhor o que se seguiria a tal pérola.
"Por isso não lhe ligo." - continuou - "Nem mesmo sabendo que teria onde ficar".
"Eu ligava." - retorquiu o outro - "Estou farto desta merda e adorava ter um tecto, uma cama, um banho".
"Pois eu não sinto falta nenhuma de voltar a casa. Não preciso de nenhuma porta. É que na rua é que semos livres, pá!"


14.1.13

Música e cinema na tv

Este fim-de-semana descobri na posição 145 do MEO o canal iConcerts. Bolas, que aqui sabem o que é música boa. Também disponível na net. Sigam o link.


Ontem, do vídeo-clube, vi o filme Polisse, da realizadora Maïwenn. Brilhante.
O relato de uma equipa da Brigada de Protecção de Menores de Paris. A espontaneidade e naturalidade dos diálogos, das situações, dos personagens, da sua interpretação, tornam o filme tão credível que é entusiasmante. O humor cruza-se com o drama, natural na vida de polícias que lidam com abusos sexuais de menores, pedofilia, maus tratos, abandono. Quem conseguir passar indiferente à cena do acampamento romeno, ou da separação de mãe e filho quando este vai para um abrigo tem, seguramente, um coração de gelo, tão bem que estão interpretadas tais cenas, em particular pelos infantes.
Certo é que se compreende, rapidamente, que quem lida diariamente com o tema, precisa de uma couraça brutal para resistir àquilo a que é exposto. E, afinal, são apenas homens e mulheres comuns, com os seus problemas, com qualidades e defeitos, que lidam esta nódoa negra social.

Chill out

As duas voltas da chave na porta de entrada anunciaram-lhe que Clara ainda não estaria em casa. Entrou no espaço escuro e silencioso empurrando a porta nas suas costas. Respirou fundo tentando esquecer aquela merda toda.
Sem acender qualquer luz encontrou os passos para o escritório onde deixou no cofre a pistola, ferramenta que durante todo o dia lhe pesara na cintura. Depois percorreu o corredor, onde luzes vindas da rua mostravam os contornos dos obstáculos que conhecia de cor, e entrou na cozinha.
Foi quando rompeu a escuridão, com a ténue lâmpada que por baixo dos armários iluminava a bancada, que viu o bilhete: "Fui ao cinema com a Alice. Volto às 10h. Beijos. C."
Clara não acreditava em SMS ou chamadas telefónicas a constatar o óbvio. Melhor assim, Mantinha o factor surpresa e, em dias como este, permitiam-lhe gozar de uma hora de descompressão para desligar do trabalho.
Acendendo agora todas as luzes por onde passava foi ao quarto mudar de roupa para algo mais caseiro, passou pela casa de banho, foi à sala ligar a televisão e voltou à cozinha. Do frigorífico retirou uma sobra de lasanha que em dois minutos aqueceu no micro-ondas. Levou uma lata de coca-cola e sentou-se no sofá com o prato na mão.
Comeu e bebeu revendo um episódio de uma série cómica norte-americana que insistentemente passava nos canais do cabo. Ao fim de uma hora, quando Clara pôs a chave à porta, já a rapariga morta estava guardada para só retornar no dia seguinte, depois do acordar.

11.1.13

À chuva

Foi com vergonha que se deixou ficar à chuva, para vomitar longe dos olhares dos outros passageiros. As ondas agitavam a pequena embarcação, e no espaço confinado onde se sentavam os passageiros respirava-se um odor azedo, pesado. Qual efeito de bola de neve, aos poucos, cada vez mais pessoas abriam um saco de emergência para nele depositar a sua repulsa enjoada.
Quando não aguentou mais, levantou-se e de imediato se juntou ao grupo. A náusea atacou-o, sentiu o mundo às cambalhotas, e valeu-lhe a rapidez de reflexos para pegar num saquinho plástico branco e sair disparado para o convés.
Depois de lançar borda fora os despojos do seu estômago, agarrou-se à amurada e deixou a chuva intensa ensopar-lhe a roupa, o cabelo, escorrer na pele. Arrefeceu rapidamente e ao fim de um quarto de hora já tinha tremores de frio.
Não se importou. Antes uma pneumonia que o terrível enjoo.
Faltava mais de uma hora para aportar. Ia ser uma longa viagem, pensou, imaginando os minutos a passarem lentamente, embalados pelo trepidar dos motores, pelas ondas quebradas, pelo horizonte saltitão, pelo cheiro a gasóleo.
Ouviu então a porta de correr abrir e fechar-se com rapidez, e permitiu-se olhar para o seu novo vizinho. Muito parecido consigo, o homem aproximou-se da amurada e vomitou para as águas do Atlântico. Logo que recomposto, endireitou-se, olhou para si, sorriu e disse:
- Posso fazer-me convidado a uma conversa à chuva até à Terceira?

10.1.13

Inevitabilidade

A mala rolava veloz, tentando acompanhar o passo de corrida que imprimia pelo corredor do aeroporto. Por vezes dava uns saltos voando atrás de si até que a gravidade a empurrava novamente para o chão. Ladeava as passadeiras que, cheias, carregavam pessoas sem pressa, mais lentas que a sua corrida.
Pelas tabuletas via o número das portas em contagem decrescente. 34, 33, 32, 31, 30.
Ouviu um aviso em inglês sem lhe prestar atenção até perceber a palavra Lisbon. 26, 25, 24, 22.
Sem abrandar, dedicou parte do cérebro a descodificar a mensagem que agora se repetia em francês. 
Recordavam que o voo da TAP partia da porta 2, e esta era última chamada. 15, 14, 13, 12...
Subitamente, sem que percebesse como, tropeçou noutra mala que corria à sua frente, estatelando-se com um embaraçoso estrondo. Como que num passe de mágica, a sua própria mala colaborou na vergonha e abriu-se, deixando fugir alguma roupa suja.
Combalido, aceitou o apoio das mãos que o alcançaram, elegantes, compridas, com um imaculado verniz vermelho. Mãos que tinham largado a mala na qual tropeçara para o apoiar no regresso à verticalidade.
Entre palavras, murmúrios, interjeições de circunstância, recolheu os seus haveres e acompanhou aquelas mãos que corriam para o mesmo destino.
Foram os últimos a entrar na aeronave e ofegantes sentaram-se, em filas contíguas.
Já sem pressa, as assistentes de bordo repetiram pela enésima vez as instruções de segurança.
Lá no ar, com o sinal de "cintos apertados" apagado, contrariando tudo aquilo que fizera na sua vida até então, foi meter conversa com a vizinha da fila frente. 
Dois anos depois casou com aquelas mãos.

9.1.13

Muletas

Apoiada nas muletas, com um pé no ar, falava irritada, áspera, mas muito baixo. Por momentos pensei que falava sozinha, mas depois apercebi-me dessa modernice do "mãos livres" que põe os sãos a comportarem-se como loucos. De baixa estatura, com excesso de peso, tinha o cabelo quase vermelho.
Estava mesmo furibunda, e a sua face transfigurava-se com tamanha contrariedade. Apurei os ouvidos, pus-me a jeito, e então percebi porquê.
Então ela, que partira o pé e só tirara o gesso havia dois dias, é que ainda tinha que ir buscar o puto a casa da sogra? Ela que já não estava de baixa, que trabalhara o dia todo... ela que aguardava pelo metro na gare do Marquês, é que tinha de ir a coxear apanhar mais dois autocarros para levar a criança para casa?
Seria que o interlocutor não tinha presente que, uma vez em casa, ainda seria ela quem, mal apoiada nas muletas, iria cozinhar o jantar? E não, não iriam mandar vir uma pizza, porque não há dinheiro para isso.
A conversa, a discussão,  continuaria não fosse a entrada do metro na estação, enchendo o ar de ruído. Ouvia-a ladrar um "adeus" antes de lhe dar passagem na entrada.
O metro não vinha cheio, mas não havia lugares vazios. Aproximou-se dos bancos reservados e ninguém se mexeu. Vi-a hesitar e fui em seu auxílio.
- Qual de vós se levanta para dar lugar a esta senhora?
Com um pedido de desculpa murmurado, um senhor ergueu-se e abalou.
Ela, elevando o olhar, mirou-me com um sorriso e agradeceu. Se calhar, este foi o momento alto de um dia que não lhe estava a correr nada bem.

8.1.13

«Little China Girl»

Nem por acaso, a música de David Bowie soava no rádio quando parei no semáforo e vi aquela miúda franzina, chinesa, com um enorme caixote sobre as costas. Não devia ser pesado. Não. Aquele volume, com maior densidade, esmagaria a rapariga que se esforçava por ver o caminho, dobrada sobre si, fincando os nós dos dedos, brancos, na corda que envolvia o cartão.
O semáforo virou verde, mas não arranquei. Estava abismado com a imagem do esforço, da sobrecarga de um ser tão pequeno. A rapariga chinesa não teria mais de 10, 12 anos. 
Com passos pouco firmes alcançou a porta da loja e largou o grande fardo. Com um sorriso, lançou um aviso estridente, tão aguda era a sua voz, e pegou numa mochila escolar cor-de-rosa com a omnipresente Hello Kitty.
Num instante arrancou ora correndo, ora saltitando, seguramente na direcção da escola.
Também eu quis partir mas fui novamente impedido pela regressada luz vermelha. Na rádio começaram a passar Supertramp. School.

7.1.13

Olhar

Quem estivesse atento perceberia que os olhos dela choravam. Sem que uma lágrima corresse. Sem que um soluço perturbasse a sua pose, vazia.
Encontrei-a no autocarro, onde a pressão da multidão desejosa de ser transportada nos juntou numa proximidade excessiva. Cruzámos  olhares, mas apenas encontrei um poço seco, morto, que focava para além de mim, como se eu fosse transparente e a sua mente estivesse ocupada por algo que acontecia por trás da minha nuca.
Foi preciso uma travagem brusca para alterar a fachada fria. Sem ter onde se agarrar, a sua mão tremeu no vazio para encontrar o meu peito como apoio. Assim que se firmou afastou-a como que largando um carvão incandescente.
Foi nesse momento, em que o embaraço acompanhou o sumido pedido de desculpa, que lhe vi a tristeza. Foi nesse momento que percebi que aquele olhar vazio chorava copiosamente, e que estar exposta ao público num autocarro cheio de gente que a comprimia, abafava, era um tormento sem igual.
Fiquei aliviado quando a vi sair e abalar em passo rápido, mãos enfiadas nos bolsos e cabelos lançados ao vento.