29.3.13

Lixo V

Marília acordou quando o despertador tocou, eram quatro e meia da manhã. Ao seu lado a cama fria recordava que o marido, enfermeiro, estava ainda ao serviço e só chegaria lá para as dez da manhã. Esperava, sinceramente, que hoje a vizinha não se lembrasse de fazer barulho para que ele pudesse descansar calmamente.
Para não lhe dar desculpa alguma, tratou de se preparar caminhando sobre as meias e evitando qualquer ruído brusco. Quase em silêncio lavou a cara, os dentes, penteou-se, vestiu a roupa que tinha preparada. Aqueceu o café da véspera e bebeu-o com umas bolachas. Calçou os sapatos junto à porta de saída e trancou-a devagar para que a fechadura não desse os habituais estalidos que ecoavam pelas escadas do prédio. 
A noite ainda estava instalada. Caminhou rápida, pelo ar frio, atravessando o bairro até à paragem do autocarro. Esperou pela carreira nocturna que chegou pouco depois. Sabia que se a perdesse teria que aguardar meia hora por outra passagem, pelo que preferia chegar dez minutos antes a arriscar a chegada um minuto depois.
A viagem até à estação ainda demorava vinte minutos, muito por culpa das inúmeras voltas que dava, passando por outros bairros pobres da periferia. Ainda assim conseguia apanhar sempre o primeiro comboio do dia que a deixaria junto ao emprego, a não mais de cinco minutos de passos pausados.
Eram seis da manhã quando o segurança lhe abriu as portas e encontrou a sua parceira de trabalho, já com a bata alaranjada. Rapidamente se lhe juntou e iniciou a limpeza dos quatro pisos da empresa. Até às nove aspiravam, limpavam o pó, as casas de banho, a loiça da direcção, e recolhiam o lixo de cada um dos caixotes.
Ah, o lixo de cada um... As histórias que contava.
Marília sabia mais de cada uma das sessenta e duas pessoas que ali trabalhavam do que qualquer uma delas sabia do seu colega mais próximo.
Só não fazia a ideia do que poderia fazer com tamanha informação.

28.3.13

Lixo IV

Irene, secretária da Direcção:
- várias folhas com fotocópias de notas de encomenda de produtos Yves Rocher, rasgadas;
- várias folhas amachucadas do bloco pequeno, cada uma com um número de telefone e uma mensagem, titulada pelo nome do respectivo destinatário da chamada;
- aparas de lápis de maquilhagem;
- migalhas;
- sete bolinhas de folha de prata de Ferrero Rocher;
- alguns lenços de papel usados;
- duas pilhas alcalinas AAA, usadas;
- oito sobrescritos profissionais, de diferentes remetentes, de oito cartas que abriu;
- muitas bolinhas de papel de furador;
- um horário da CP, Intercidades e Alfa, Lisboa/Porto, desactualizado.

27.3.13

Lixo III

Miranda, contabilidade:
- duas embalagens vazias de nougats de sésamo;
- uma garrafa de iogurte líquido de morango, marca Continente;
- uma embalagem vazia de M&Ms;
- um copo plástico usado da máquina de café;
- a TimeOut da semana passada, parcialmente recortada de algumas sugestões;
- impressões amachucadas de consultas de viagens.

26.3.13

Lixo II

Pereira, motorista:
- "A Bola";
- o "Record";
- o "Correio da Manhã";
- um maço vazio de Marlboro, amachucado;
- cascas de pistáchios;
- papel de embrulho da pastelaria da esquina;
- post-it amarelo, amachucado, com um número de telefone escrito a azul e riscado por cima com letras a preto que demonstram ira ao dizer "PUTA!";
- quatro pastilhas elásticas mastigadas, duas delas agarradas ao fundo do caixote.

Lixo

Odete, da recepção:
- uma revista TV7dias amarrotada, com óculos, bigodes e barbas em quase todas as fotografias;
- várias folhas rasgadas de papel impresso de um lado e com desenhos de má qualidade do outro, feitos a caneta preta;
- três embalagens plásticas vazias de bolachas integrais;
- duas embalagens de iogurte líquido de aloé vera, magro;
- um caroço de maçã embrulhado em papel de limpar as mãos da casa de banho;
- uma embalagem dos correios endereçada à Odete proveniente da Gigashop;
- uma caneta preta, completamente vazia;
- talão do multibanco de um levantamento de € 20,00 - saldo contabilístico/disponível de €102,18;
- uma rosa vermelha murcha e velha depois de ter estado três dias no balcão da recepção.

23.3.13

A prazo

Tudo começou com uma pequena mentira.
"Não vou já para casa, está bem? Encontrei uns colegas antigos e decidimos ir jantar e beber um copo."
Ela nem se aborreceu, pois precisava de um tempo só para si, sem o ter a cirandar lá por casa.
Não havia amigos nenhuns. Havia Paula, que conhecera uma horas antes, mas da qual tinha a estranha sensação de a conhecer de há muito tempo. Quando se falaram, a dada altura partilhou essa impressão. Ela retorquiu que tinha o mesmo sentimento. Mas, ao compararem percursos de vida rapidamente perceberam que não havia pontos de contacto. Decerto não se tinham cruzado antes. Pelo menos com a profundidade que a estranha sensação de reconhecimento indicava.
Depois arranjou aquela desculpa e foi jantar com ela. Sem alguma vez lhe dizer que estava casado. Ou que a mulher, grávida de seis meses, ficara em casa a cuidar de si. Sem deixar de devolver os olhares, os sorrisos, os toques que alimentavam o jogo da sedução.
Foi Paula quem primeiro avançou e o beijou intensamente. Não se fez rogado e devolveu o beijo. Agarrou-a e em menos de um fósforo estavam em casa dela enrolados em emotivas exibições de prazer.
A partir de então ficou dividido entre dois mundos. Nunca tivera tamanha abundância e não queria ceder nenhuma. Não lhe passava pela cabeça afastar-se da mulher que amava e do primeiro filho que vinha a caminho. Mas não queria largar aquela outra mulher, autêntico suplemento para o seu ego, tamanha era a dedicação com a qual se lhe entregava. 
Por outro lado, sabia que não seria fácil afastar-se dela, já que dera a entender ser uma mulher obstinada e nada habituada a ceder naquilo que queria. E, agora, queria-o.
Tudo começou com uma pequena mentira e, rapidamente, tudo se tornou numa grande mentira. Toda a sua vida passou a ser composta por desculpas, subterfúgios, evasivas. De um momento para o outro, deixou de viver para apenas sobreviver. A prazo. Pois estava cada vez mais seguro de que aquilo não iria terminar bem para ninguém.

Avisos

"A 100 metros, vire à direita."
"Vire à direita, agora"
"Siga mais 1200 metros e vire à esquerda."
"Vire à esquerda agora."
Horácio seguia cegamente as instruções monocórdicas do GPS, sem hesitações pois sentia que aquela não era a zona adequada para se mostrar titubeante. As poucas casas, feias, estavam claramente encerradas ao contacto com o exterior. Na humidade do dia chuvoso sentia-se tensão. No silêncio cheirava-se o medo. Não percebia como podia o seu colega viver num sítio assim.
Aproximou-se do novo cruzamento e rodou para a esquerda. à sua frente uma azinhaga, com vegetação abundante caindo sobre os muros altos. A iluminação pública estava ainda apagada, mas a luz do dia era já muito fraca. Os faróis do BMW iluminaram a faixa que se expunha, esburacada. 
"Siga mais 400 metros e vire à esquerda."
Cumpriu a ordem, devagar, imaginando o momento em que seria forçado a parar por salteadores e despojado de todos os bens, quem sabe se da vida também.
"Vire à esquerda agora. Chegou ao seu destino."
Ali não havia nada. A rua continuava, mas não tinha uma única casa, só campos vazios, alguns arbustos, poucas árvores.
Não podia parar ali. Não iria parar ali. Não queria parar ali.
Através do sistema mãos livres mandou o telefone chamar o seu colega. A resposta foi o sinal indicativo de que não tinha rede. Estava no meio do nada.
Um clarão iluminou o interior do seu veículo quando uma carrinha apareceu por trás, vinda do nada. Acelerou, mas os solavancos provocados pelos buracos cada vez maiores obrigaram-no a reduzir a marcha, temendo avariar o veículo criado para pavimentos mais regulares. De imediato a carrinha se colocou a seu lado. Pelo canto do olho viu uma figura esticar-se pela janela acenando-lhe. Não tinha como evitar e encarou o homem de chapéu vermelho e bigode farto. Percebeu claramente a ordem para parar. Rendeu-se e assim o fez, preparado para o pior.

Valeu-lhe o aviso pois adiante uma parte da estrada desmoronara com as chuvas daquela madrugada. Conhecedores da zona, o homem de bigode e a sua filha que conduzia a carrinha enlameada, conseguiram dar-lhe indicações para voltar à estrada principal e alcançar a terra seguinte onde, possivelmente o seu colega viveria. 
O GPS, esse mentiroso, foi desligado e nunca mais Horácio confiou em indicações electrónicas traduzidas por vozes maviosas.

20.3.13

Filmes


“Claro que sei do que estou a falar!”, respondeu com indignação. Sabia que mais do estar seguro, precisava de se mostrar seguro. 
“É que não parece nada”, contrapôs o Presidente. “Quando o chamámos cá, foi na convicção de que poderia responder com clareza às nossas perguntas e oferecer-nos uma solução rápida, eficaz e, sem dúvida, prática”, continuou, contraindo a face cada vez mais vermelha. O tom era ríspido e o volume elevou-se revelando a perda de paciência.
Quando findou, as palavras restaram ecoando pela ampla sala, dando lugar a um silêncio que foi ganhando espessura, aumentando a tensão enquanto pensava na resposta a dar. Mais seis olhares assentavam em si não o ajudando na tarefa. Julgava que ia ser tudo tão mais fácil, e contudo… As suas linhas de raciocínio tinham ficado tão embrulhadas que não sabia por onde começar. Consequentemente, ia antevendo um futuro negro, à mercê da ira do Presidente.
A ampla janela exibia o azul do céu, inspirador, assim como o reconfortante relvado, fofo e apelativo, e foi olhando para lá que encontrou os primeiros passos para a segurança da terra firme. “Não sei como nasceu essa ideia de que eu não sei o que estou a fazer”, começou contra-atacando, tal como o cão encurralado que ataca tudo o que dele se aproxima. “Antes diria que vocês é que não sabem o que estão a fazer, senão não me chamariam para limpar esta trampa toda”. 
O Presidente corou ainda mais, parecendo que poderia rebentar com um massivo ataque de coração, um AVC fulminante, ou mesmo explodir numa fonte de sangue.
“Aliás, enquanto não vir o dinheiro, não vos dou, sequer, alguma dica”, adiantou ganhando algum tempo. Não muito, pois de imediato lhe abriram uma mala com vários montes de notas cintadas, permitindo calcular os quinhentos mil euros que lhe tinham prometido.
Tendo recuperado o alento, o Presidente retorquiu. “Tem aí o dinheiro. E se tem bem presente, nós chamámos foi o Xavier, e é a ele que estamos habituados a pagar tanto dinheiro”. Perante o seu encolher de ombros, o Presidente voltou à carga. “Relembre-nos lá porque haveremos de lhe pagar tanto como ao Xavier, e porque não veio ele desta vez”.
A pergunta não podia ter caído melhor, pois estudara o guião a partir dela. Vai daí, ligou o piloto automático da resposta tentando reagir com todas as ferramentas ao seu dispor para enfrentar a situação em que se encontrava. “O Xavier está ocupado, respondendo a uma emergência ainda maior. Eu sou o seu pupilo e em breve serei eu a responder a todos os apelos pois o Xavier está a sentir-se velho para isto. O que é compreensível, pois trinta anos a limpar o lixo dos outros é muito ano”. 
“E porque nunca ouvi eu falar de si?” 
“Porque eu sou bom a fazer o trabalho. O Xavier ensinou-me bem e temo dizer que, actualmente, sou já melhor do que ele. Bom…, apenas porque ele já deixa o peso dos anos reflectir-se no trabalho”.
“Então, qual é a saída?” 
“Em primeiro lugar, vou ao carro buscar umas roupas para todos vós, pois parecem saídos de um matadouro, ou de um talho…” Fez uma pausa, sorrindo largo, para continuar. “E não é que estão mesmo num talho que virou matadouro?” O humor não atingiu nenhum dos sete homens, ainda mal convencidos e preocupados com o futuro imediato. “Depois”, continuou, “saem daqui nos vossos carros e vão para longe, de preferência para sítios diferentes. Não falam ou interagem com ninguém, não passam em portagens, escolhem estradas pouco movimentadas e vão para junto de alguém que possa atestar que esteve convosco nas duas últimas horas. Não usam o telemóvel. Acima de tudo, não usam o telemóvel. E não falam com ninguém sobre o que se passou aqui. Nem entre vós para que ninguém vos oiça”.
“E o corpo?” 
“Eu trato do corpo, como sempre o Xavier tratou. Mais descansados?”
O silêncio foi o melhor assentimento.
Calmamente, pegou na mala com o dinheiro e dirigiu-se para a saída. “Vou buscar-vos roupa”. Caminhou sem pressas, mas com toda a determinação do mundo, saindo do talho e aproximando-se do automóvel que estava ao virar da esquina. Abriu as portas, sentou-se ao volante e arrancou sem pressas, para depois acelerar pelas ruas em direcção à auto-estrada. 
Qual corpo, qual carapuça. Na mala do carro já estava Xavier, com um saco plástico na cabeça, não deixando espaço para mais ninguém. E ao contrário do desgraçado que estava na câmara frigorífica pendurado junto às carcaças das reses já desmanchadas, Xavier não lhe sujaria o carro de aluguer.
O dia que começara diabolicamente mal com o excesso de Xavier que o levou até à bagageira, estava a acabar em grande. Com aquele dinheiro começaria a vida noutro lugar qualquer. Seria fácil mudar de visual, já que a sua verdadeira identidade ficara à distância dos bandidos.
Triste ficou quando, no quarto de um hotel espanhol, rompeu as cintas para verificar que entre algumas notas verdadeiras estavam cópias grosseiras, impossíveis de usar. Ficou igualmente irritado pela falta de honestidade daqueles bandidos que lhe mentiram e o enganaram como a um qualquer principiante que vê demasiados filmes.

19.3.13

Não conseguia



Feitas as contas, dava para mais de dez meses. Entre aquilo que lhe pagaram como indemnização, o que guardava no banco e o subsídio de desemprego, dava para mais de dez meses. Ela não precisava de se preocupar. Quando tivesse outro emprego dizia-lhe e tudo estaria bem pois nunca ela temeria perder a casa, ficar na rua, cair em falta perante todos os que a conheciam.
Bastava nada dizer. Não seria mentir-lhe. Sair todos os dias de casa às oito e meia da manhã, como fizera nos últimos doze anos, e voltar depois das seis da tarde. Estaria cansado e nunca falaria do emprego, tal como nunca o fez desde que se casaram. O emprego jamais entrara pela porta de casa. Só o salário.

O plano era bom. A execução não tinha mais do que uma dificuldade. E essa nunca conseguiu superar. Um ano e meio depois, quando esgotou os últimos cêntimos da conta, caiu finalmente na realidade que negara. Um ano e meio depois ainda não tinha emprego e aos cinquenta e um anos percebeu que ninguém lho daria, especialmente com as parcas habilitações profissionais que tinha.
Ela ainda não sabia. Nem queria saber. E ele não queria ver a desilusão no seu olhar quando a ilusão caísse. Quando lhe dissesse que não tinha mais nada, que não havia forma de ganhar dinheiro. Que teriam que vender a casa, pagar o resto do empréstimo e, com o remanescente, sobreviver o melhor possível, em local e por tempo a determinar.
Não conseguia revelar a mentira.
Foi por isso que meteu o cano na boca e esmagou o gatilho.

18.3.13

Destino Comum

Os olhares cruzaram-se e ele nem hesitou:
- Sónia?
- Sim?
- Sónia? És tu?
- Sim...
- Não te lembras de mim?
- ...
- Sónia Sara... Conhecemo-nos na festa da Lídia, naquela casa com piscina...
- Eu...
- Estava lá o Pedro, a Inês... Foram eles que nos apresentaram!
- Carlos? 
- Alberto. Carlos Alberto!
- Meu Deus, o que tens feito?

Meia hora e duas bebidas depois saíam juntos com um destino comum. À entrada para o carro ela não resistiu e disse:
- Sabes que eu não sou a Sónia, não sabes?
- Assim como tu sabes que não sou o Carlos...
- Mas mentes muito bem... com convicção.
- Tu também não vais nada mal.
Olharam-se com um pequeno silêncio, e depois riram com prazer enquanto entraram para o automóvel.
- Luis Cabrita.
- Carla Mendes.

15.3.13

Probabilidades

À volta da mesa seis pares de olhos concentravam-se sobre si. Era o centro das atenções, sabia-o, e isso não o ajudava em nada. Tinha que tomar uma decisão e não conseguia alinhavar um pensamento coerente e seguro.
Segurava o futuro nas mãos, mas não tinha a certeza de querer pô-lo à prova. Estava tanto em jogo...
Daquelas seis pessoas só conhecia duas, e não eram propriamente amigos do peito. Um deles estava tão ou mais desgraçado que ele, enquanto o outro era o portador da desgraça.
Olhou de novo a mesa. Ergueu o olhar e através da cortina de fumo que pairava no ar e procurou na cara de cada um deles um sinal, uma ajuda. Não teve sucesso na busca.
Imediatamente à sua esquerda estava Horácio. Não sabia o apelido dele assim como o de qualquer um dos outros. Também nenhum deles sonharia que o seu era Calado, curiosamente fazendo jus à sua maneira de ser.
Horácio tinha um grave problema de obesidade. E também de falta de higiene. Ao fim de quatro horas ali sentados, começava a ignorar o aroma a cominhos que o fato de treino pleno de fibras sintéticas, e ostentando o emblema do Belenenses, já tinha entranhado. Acima das bochechas gordas de Horácio uns óculos escuros redondos, muito pequenos, cumpriam a sua função, não lhe permitindo escrutinar o seu olhar. Mas conseguia ver as gotas de suor a acumular na careca, deixando perceber a tensão que o assolava.
Seguia-se o Henrique. Já o conhecia havia três anos. Era quem organizava estas sessões, e mais do que uma vez o tinha financiado, cobrando juros alarmantes. Também ele escondia o olhar nuns cerrados óculos negros, envergando um boné com pala grande para os sombrear.
Pietra devia o seu nome ao jogador de futebol que o seu pai tanto idolatrara. Hoje o nome era uma chaga no coração daquele homem enfezado, que nem sequer gostava de futebol. Era o único sem óculos, apenas porque deles não precisava. Qualquer que fosse o andamento da coisa, mostrava-se totalmente indiferente, com o olhar vazio como se lhe tivessem congelado as emoções.
Aristides fumava um charuto, mordendo-o de forma que expunha a boca num esgar permanente exibindo os dentes amarelos. Os seus óculos de sol eram espelhados pelo que evitava olhá-lo, com  medo de se ver reflectido e distrair-se.
Pepe era um catalão que estava nisto pela primeira vez. Tinha vindo a boleia de Carlitos, o homem à sua direita, colega de trabalho no El Corte Inglès. O primeiro tinha barba e coçava-a constantemente. Era difícil perceber a sua mente, mas desta vez já não contava, pois tinha passado ao largo. Já o segundo, pela respiração acelerada que tentava esconder, tudo fazia para segurar o bluff.
Espreitou de novo a sua mão para perceber que nada mudara. Tinha uma sequência, mas as cinco cartas no meio da mesa permitiam tantas combinações potencialmente vencedoras que não estava minimamente seguro do seu sucesso. 
E não conseguia calcular quaisquer probabilidades...

Nesse dia apostou tudo o que tinha para ficar com nada. Mas mesmo assim não deixou de jogar. Não conseguia parar. E enquanto teve quem o financiasse... continuou.
A última vez que jogou póquer foi no dia em que o encontraram, feito em papa no fundo de uma falésia, já o mar o tentava alcançar.

14.3.13

O Leitor lia

Não há dúvida que a sala era maior do que parecia. Porém, o espaço livre era tão pouco que dificilmente se compreendia como aquela figura chegara ao cadeirão para aí se sentar sob a única luz.
Não havia qualquer janela e apenas a porta interrompia as estantes que cobriam, de alto a baixo, todas as paredes. No meio, uma secretária coberta de livros, papéis, canetas, recortes. Por todo o lado o livro reinava. As estantes não tinham espaço, recheadas de lombadas. Livros cuidadosamente arrumados segundo um critério lógico misturavam-se com outros empilhados por cima, à frente, em segunda fila, ora lidos à procura de um canto para repousar, ora esperando ansiosamente o momento de serem levados para debaixo da luz.
Pelo chão cresciam estalagmites impressas, algumas ameaçando a ruína, outras sobrevivendo encostadas à solidez das suas irmãs.
Apenas sob o cone de luz amarela parecia haver ordem, reinando o caos na penumbra circundante. Ali, sob o foco do único candeeiro aceso, o velho homem espreitava pelos pequenos óculos de ver ao perto as letras criteriosamente impressas nas páginas de um livro comprado na véspera, em mais uma saída pelos seus alfarrabistas favoritos.
O silêncio era violado apenas pelo virar das páginas, por um ou outro pigarrear que anos de tabaco lhe tinham deixado, ou pelo frequente estalar da madeira. Estalavam as estantes, estalava o chão, estalava o tecto. Mas nada perturbava o Leitor.
Estavam ali anos de acumulação de livros. Só nos últimos tempo começara a ficar preocupado com a possibilidade de já não os conseguir ler todos. Mas, ainda assim, não resistia em comprar mais, e mais, e mais. Nos alfarrabistas, nas livrarias, nos quiosques... Felizmente nunca se metera nessa coisa da internet, caso contrário o mundo seria o seu fornecedor e mais grave seria a sua compulsão para comprar mais livros.
O Leitor lia. Lia todo o dia. Desconhecia os prazeres de se sentar a ver um filme, uma série de televisão, pois os breves olhares que lhes deitara encontraram algo muito aquém do que imaginava enquanto lia e absorvia os textos encadernados. Desconhecia o prazer da música, pois sempre a achara uma enervante distracção. Preferia o silêncio.
O Leitor lia. E não queria fazer mais nada. A sua irmã passava lá por casa e deixava-lhe a comida pronta, cuidava da limpeza e certificava-se que ainda era vivo. Mas poucas palavras consigo trocava. Sabia que não se devia intrometer entre si e o livro.
Entregue aos prazeres da palavra escrita, o Leitor lia, sabendo-se incapaz de redigir algo tão belo, ou criativo, como qualquer das páginas que devorava.
E por isso, apenas lia. Nunca escrevia.

13.3.13

Culpa

Sentado ao computador, uma inquietação minava a dedicação ao trabalho que tinha que concluir rapidamente. A cada frase que escrevia deixava o olhar fugir da pantalha e perder-se à volta, procurando aquilo que sabia não ir encontrar.
O desconforto acumulou-se até que teve que largou as teclas e se levantou da confortável cadeira onde diariamente se entregava ao esforço criativo. Percorreu o corredor até à cozinha e abriu de par em par duas portas  do armário. Latas de sardinhas, de atum, de feijão, de grão, tomate. Os frascos de massas, farinhas, açúcar. Azeites, vinagres. Pão. Tostas. Chás. Cafés. Nada.
Fechou as duas portas e abriu o frigorífico. O espaço livre era desolador, e pouco do que via era, sequer, comestível.
Abriu a gaveta onde costumava guardar algumas reservas para um dia mau. Nada.
Voltou para o computador e sentou-se. Releu o último parágrafo, levantou as mãos e retomou o monótono batimento das teclas.
Nem meia página tinha escrito, e já as pernas o levantaram e levaram de volta à cozinha. Olhou novamente, desalentado, para os mesmos lugares. Naqueles cinco minutos nada tinha aparecido, por milagre, para satisfazer a sua necessidade.
Cabisbaixo, ausente, atravessou o corredor até se sentar para mais umas linhas. Eram cada vez menos as que conseguia escrever. Olhou para o relógio e decidiu-se, saltando da cadeira como se esta tivesse uma mola. 
Pegou no casaco, abriu a porta e saiu para a rua. Estava sol, mas frio, muito por culpa do vento cortante que vinha da montanha. Caminhou cinco minutos até ao Lidl, onde sabia poder abastecer-se. 
Regressou satisfeito, com o saco cheio de chocolates. Não seriam os melhores, é certo, mas a relação qualidade/preço  era perfeitamente adequada. Já sabia que iria comer compulsivamente os primeiros, ficar enjoado com os segundos e terminar arrependido e com enorme sentimento de culpa ao engolir os terceiros. 
Possivelmente ficaria uns dias sem poder ver chocolate. Mas nunca seriam muitos. Por agora estava seguro de que conseguiria acabar a crónica nas duas horas que lhe restavam.

12.3.13

Sopa quente

Pela segunda vez em dez minutos acocorou-se entre dois carros e contou as moedas que tinha no bolso. € 17,00. 
As mãos tremiam, não apenas do frio. As pernas, pelo contrário, estavam a ferver, tensas, esticadas, comendo-o com dores e ardores, comichões insuportáveis. Ergueu-se com um gemido e olhou o horizonte sem ver movimento algum. Escolhera mal. Apostara no sítio errado. Ficava em caminho mas ninguém ali passava. Esperava arrumar uns carros, os suficientes, mas apenas uns sete tinham vindo ali estacionar e, desses, só três lhe deram qualquer coisa. Dois euros e meio. Precisava de vinte.
Insensível ao cheiro que soltava, das suas roupas imundas e maltratadas, agitou-se muito devagar. Na sua cabeça o movimento fora diabolicamente rápido, entontecendo-o. Mais umas contracções involuntárias dos músculos enviaram mensagens de dor directamente para o cérebro que lhe pareceu inchar até quebrar os ossos cranianos.
Lá ao fundo, ao virar de um dos pavilhões do porto, surgiu um miúdo, com auscultadores nos ouvidos e olhos fixos no skate em cima do qual rolava. Instintivamente voltou  encolher-se entre dois carros e esperou. Intimamente já sabia o que ia fazer, apesar de não ser muito claro como o faria.
Concentrou-se no som dos rodados da prancha, e mediu a aproximação. Por detrás dos olhos uma neblina limitava-lhe a visão. A dor de cabeça limitava-lhe o discernimento. As contracções involuntárias dos músculos limitavam-lhe a coordenação.
Quando o rolador estava a pouco mais de dois metros ergueu-se, bloqueou-lhe o caminho e lançou um empurrão que o atirou ao chão. A surpresa estampou-se no olhar do rapaz que de imediato se encheu de  lágrimas.
- Dá-me dinheiro! - ordenou com uma voz rouca, ameaçadora, torcendo a face num esgar, meio de dor, meio de desespero.
O rapaz, mostrando que não era a primeira vez que se via naquelas andanças, pegou na carteira, abriu-a com rapidez e lançou uma nota de cinco euros ao solo. Enquanto se baixou para a apanhar o miúdo ergueu-se, pegou no skate e abalou numa retirada a toda a velocidade. Já não interessava. Já nada interessava. Tinha os vinte euros que precisava. Também ele abalou, ainda que em direcção contrária.
Doía-lhe o corpo. Doía-lhe a alma. Precisava do remédio. Parou num quiosque de revistas e trocou as moedas e notas pequenas por uma nota de vinte. Acelerou, trotando passeio abaixo.
Entrou na rua suja e viu de imediato o Káká na esquina do costume. Cruzaram o olhar enquanto se aproximava e ele foi logo adiantando serviço, baixando-se e pegando em algo que retirou de um tijolo tombado sobre o monte de entulho que o ladeava. Ao cumprimentá-lo com um aperto de mão deixou a nota de vinte seguir o seu curso, rapidamente se refundindo no bolso das calças de Káká.
As palavras de circunstância, incompreensíveis na sua maior parte, foram o interregno para o aperto de mão de despedida. Nesse momento sentiu entre os dedos o pequeno saquinho do pó mágico.
Disparou até às ruínas mais próximas onde se iria entregar ao vício, sopa quente veia acima, esquecimento concentrado, suspensão da miserável existência.

11.3.13

Fósforo ou isqueiro

Cheirou-o suavemente, inspirando com cuidado os aromas fortes, amadeirados, adocicados... Depois, apertou-o com suavidade entre os lábios e levou as mãos aos bolsos onde encontrou o isqueiro. O som metálico, inconfundível, da tampa a abrir, o raspar da pederneira, a antecipação das primeiras fumaças. Infelizmente o acendedor não quis colaborar e foi da forma mais frustrante que informou que já não carregava gasolina nas suas entranhas.
Com tremuras perante tamanho insucesso buscou nas gavetas da secretária um fósforo, um Bic, qualquer coisa que o ajudasse a incendiar a cigarrilha meio desprendida dos seus lábios. Nada encontrou, resposta que sabia de antemão mas que procurou contrariar. Olhou para o relógio e viu que lhe faltava menos de duas horas para entregar o texto que ainda procurava o caminho para a página branca que faltava preencher.
Havia tempo. Havia tempo para ir em busca de lume.
Saiu porta fora para encontrar o elevador parado em manutenção. Não era isso que o iria deter, e incapaz de sobreviver sem aquele fumo enxameando os seus pulmões, lançou-se às escadas que o separavam, dali do quinto andar ao rés-do-chão.
Na rua não se via quase ninguém. E cada vez menos se encontrava alguém com sinais de ser fumador. Os seus comparsas eram menos e menos, uma minoria malvista a lutar contra a segregação. Caminhou até ao café mais perto, a dois quarteirões dali. Lá haveria fumadores.
Venceu o frio, a chuva miudinha, o desagradável vento e chegou ao destino onde um casal salvador se acoitava como podia à porta do café, para poder fumar os seus cigarros. Pediu-lhes lume.
O som do riscar do fósforo na lixa da carteira obliterou tudo o mais que acontecia naquela cidade. Só a cabeça do fósforo a ferver, a queimar, combustão avermelhada e branca. Depois a fina madeira a consumir-se enquanto acendia a cigarrilha.
As primeiras baforadas de imediato o acalmaram. Fechou os olhos e sentiu o coração a abrandar, inebriado pelo doce sabor baunilhado da folha de tabaco. Agradeceu o empurrão e iniciou o caminho de regresso ao escritório. Dava passadas lentas afeiçoando a distância ao tempo de consumo daquele tabaco doce.
Só quando ia a meio das escadas se lembrou que não comprara fósforos ou isqueiro.
Daqui a meia hora voltaria ao mesmo. A mesma rua, o mesmo mau tempo, o mesmo café, outra pessoa. 
Fósforo ou isqueiro, alguém o ajudaria.

8.3.13

"Salve-me"

O ferro atravessava o crânio, entrava junto à nuca e perfurava até um ponto um pouco atrás do olho direito. Pelo menos, era assim que conseguia descrever a dor de cabeça. Havia três dias que sentia aquela dor. Três dias sem repouso, sem conseguir dormir. Três dias encharcado em medicamentos e mezinhas. 
Melhorias? Nenhumas.
Quando entrou no hospital, as luzes tinham todas um halo à sua volta e faziam mexer o danado do ferro, torcendo a dor que o assolava, levando-a para patamares bem mais agressivos. Já não comia, não bebia não se mexia, pois todos esses actos quotidianos pioravam o seu estado.
Não conseguia ficar na sala de espera, e disso deu notícia à enfermeira. Fizeram-no entrar para o Banco de Urgência onde a viu pela primeira vez, como um anjo. Loira, com a luz por trás oferecendo-lhe um maravilhoso halo. Estendeu a mão fresca e depositou-a na sua testa.
- Basta olhar para si para perceber que dói. 
Foram estas as primeiras que lhe ouviu. E as primeiras que lhe disse foram um apelo desesperado.
- Salve-me.

Depois do tratamento, um dia, encontraram-se no café. A relação médico-paciente já não era ali qualquer obstáculo e puderam comportar-se apenas como um homem e uma mulher.
Algum tempo depois viviam juntos. Depois tiveram filhos. Envelheceram juntos. E ele dizia a brincar:
- Foi uma dor de cabeça que nos uniu. E garanto que esta mulher nunca foi uma dor de cabeça para mim.

7.3.13

Maçãs

O som dos passos na neve era uma novidade que o entusiasmava. O branco que tudo cobria reflectia a pouca luz que o céu cinzento deixava passar, dando um brilho irreal a toda a paisagem.
Em cima dos muros, dos pilares, dos telhados, camadas de neve imitavam claras em castelo, suspiros à espera da primeira dentada. 
Eram as primeiras horas de domingo, e não se via uma alma na rua. As estradas, os passeios, revelavam-se imaculados, sem qualquer marca, dando-lhe o prazer de deixar o único carreiro de pegadas.
Carregava várias camadas de roupa que o protegiam contra o vento gélido. Apenas as maçãs do rosto espreitavam entre o cachecol que cobria a boca e os óculos que salvavam os olhos.
Apenas as maçãs do rosto se expunham ao frio e doíam. Doíam ao mesmo tempo que ficavam dormentes. Uma dor agradável que o fazia sentir-se vivo. E essa sensação era o que o fazia acordar e sair para a rua todos os dias, bem cedinho, e andar, andar pelas ruas da cidade, de Verão ou Inverno, ao frio ou com calor.

6.3.13

"O Governo adverte que o consumo de futebol pode prejudicar a saúde"

O ataque do Benfica estava perdulário. A defesa um buraco. O meio campo não se via. 
António sentia-se incomodado com o passar do tempo e o resultado em branco. E a cada minuto aditado no canto superior direito do televisor aumentava o incómodo de mais um desaire a aproximar-se.
Pior que tudo, o adversário ganhava alento e ameaçava agora com ataques mais frequentes, mais consistentes, mais perigosos. 
A cerveja despejada no copo já morria, pois a concentração na pantalha colorida fizera-o esquecer-se dela. Assim como dos amendoins que restavam da lata que abrira na primeira parte. Sentado no sofá, torcia as mãos uma na outra, inquieto, preocupado, vibrante, temeroso. Excitado, desapontado.
Mais um remate falhado, com estrondo devolvido pela trave. Ao grito interrompido de golo seguiu-se um mortífero contra-ataque. O defesa adversário repeliu a bola lá para o meio-campo e o seu avançado, num passe de mágica, deixou para trás os dois centrais do Benfica. 
Só foi parado com uma entrada extemporânea, por trás, do lateral direito que num sprint fantástico apanhou-o à entrada da grande área. 
A falta deu direito a cartão vermelho directo, uma inevitabilidade com a qual lidou bem. Mas o cego do árbitro e o seu atrasado assistente apontaram a marca da grande penalidade. Enquanto os jogadores do Benfica intimidavam os juízes, arrecadando mais uns amarelos e outro vermelho, António urrou, saltou, esbracejou, praguejou, explodindo o seu desagrado e frustração.
Foi nesse preciso momento que a sentiu. A dor aguda que lhe queimou o peito, subiu ao olho direito e ferveu-lhe na cabeça. Estendeu-se ao braço paralisando-o. Quis respirar mas isso apenas lhe aumentou o desconforto. Quis chamar por ajuda mas não conseguiu.
As pernas fraquejaram. O corpo tombou no chão de tijoleira sem barulho, enrolando-se entre o sofá e a televisão.
António não viu a impossível defesa do guarda-redes encarnado. Assim como não viu a sua espectacular capacidade para agarrar a bola e colocá-la milimetricamente no avançado que, só entre dois defesas, se deslocava na linha divisória do meio-campo. António também não viu como este, parando o esférico no peito, se virou e num chapéu monumental aproveitou o avanço do guarda-redes contrário, marcando um impressionante golo que lhes valeu a passagem à final.
António já não viu nada disso.

Ermelinda passava a ferro a roupa da semana, em silêncio, embrenhada nos seu pensamentos. Lá ao fundo ouvia o gritos do marido, sofrendo com a bola como de costume. Aliás, achava mesmo que com a idade António estava a ficar particularmente sofredor com os jogos do Benfica, assim como com os jogos da Selecção. Aproveitava, por isso, estes momentos para se ausentar da sala, não contribuindo para a tensão que se sentia enquanto uns tipos escandalosamente pagos faziam asneiras no relvado.
Ermelinda achava piada pois nem precisava de ver o jogo ou ouvir o relato, já que pelos gritos do marido e dos vizinhos, também eles fanáticos benfiquistas, conseguia contabilizar o marcador. Por isso estranhou quando ouviu os gritos do Álvaro, do andar de cima, do Paulo, do apartamento ao lado, e do Sr. Cabrita, lá da cave festejando o golo do Benfica.
A estranheza levou-a à sala, onde após o susto inicial conseguiu chamar o 112. A sua pronta intervenção salvou António do ataque cardíaco, assegurando-lhe tempo para a operação de urgência e tempo para mais 14 anos de vida.

Nesses 14 anos, António nunca mais viu a bola. Nunca mais ouviu um relato, discutiu um resultado, comentou uma arbitragem. Como um alcoólico em recuperação, como um ex-toxicodependente, todos os dias fazia questão de dizer: hoje, não liguei ao futebol.

5.3.13

Cada vez menos

Respirar era uma prova de coragem. Ardiam os pulmões a cada golfada do ar saturado de fumo e o esforço para não desfalecer a tossir era quase tão grande como o necessário para mexer pernas e braços enquanto gatinhava pelo corredor. 
Já pouco via, tão inflamados estavam os olhos. Chorava, mas o calor extremo secava cada lágrima assim que esta assomava, impedindo-a de lubrificar as órbitas ressequidas.
O barulho ensurdecia. Os alarmes continuavam a silvar desesperadamente avisando toda a gente do hotel para partir, para sair sem fazer check-out, sem levar bagagem, sem se preocupar com gorjetas. Cada silvo da sirene gritava um apelo de urgência que ele, ali ao nível do solo, já não conseguia garantir.
A exaustão toldava-lhe a clareza de raciocínio, e por isso já não sabia se estava no caminho certo. Ao contrário dos aviões, nenhuma luz ao nível do solo lhe indicava a saída de emergência.
Sentiu uma porta e quis procurar o puxador, a barra anti-pânico, qualquer coisa que a abrisse. Mas para o fazer tinha que se erguer um pouco, esticar os braços. Estava já tão estafado que mesmo esse simples impulso parecia uma tortura infindável.
Só queria parar, encolher-se e esperar que tudo passasse.
Começou a aninhar-se de encontro à porta. Cada vez menos ar a entrar no corpo. Cada vez menos energia. Cada vez menos.

4.3.13

Passo a passo

Cada passo era um extremo sacrifício. As pernas queimavam de dor à medida que a esquerda ultrapassava a direita, e a direita a esquerda, transportando o corpo estafado, esfomeado, molhado e carregado. 
O caminho subia, mas pouco. Ainda assim, sob as suas botas a água empurrava a lama e dificultava as passadas, escorregadias. O capacete sacudia alguma da chuva, mas pesava-lhe no alto da cabeça descaída. A toalha enrolada ao pescoço evitava os arrepios das escorrências mais atrevidas. Pelo menos ia aquecendo a água com o calor do corpo.
Já não sentia a ponta dos dedos das mãos, que seguravam a G3, cada vez mais pesada.
Enquanto maquinalmente progredia todos os seus pensamentos se esfumaram. Só via as costas verdes do companheiro que na frente guiava os seus passos. Um pé atrás do outro. 
Um, dois, esquerdo, direito.
Aqui não havia o rigor da parada. Havia o caminhar penoso da marcha final. Cem quilómetros. Carga total. Os ombros esmagados. Os músculos castigados. O estômago esquecido da fome que deveria sentir. 
Sobre si a dúvida: retiraria algo de bom de toda aquela experiência?

Vinte anos após ter cumprido o serviço militar ainda gostava de caminhar. Depois daquele dia, no qual vencera a centena de quilómetros, qualquer passeio era uma brincadeira. "Quem corre por gosto não cansa", diz o adágio. Seria bom que a realidade fosse assim.
O certo é que agora, por gosto se atirava a trepar montanhas, tanto de Verão como de Inverno, de mochila às costas, com uma ou duas câmaras fotográficas, umas objectivas e um tripé,  e muita paciência.
Só, na montanha, calcorreando quilómetros todos os dias, e captando alguns dos momentos mais belos que os seus olhos viram, vivia o sonho de criança.

1.3.13

Violent Femmes

O vento lançava-lhe os cabelos para trás, uniformemente, e secava-lhe os olhos tal a sua intensidade. Agora não havia lágrimas. Apenas uma enorme atenção aos pormenores.

"Life was fun 


Life was great 
Til I made my big mistake 
Oh no it'll never happen to me" 

Naqueles breves segundos ouviu claramente no cérebro a música dos Violent Femmes. Era, sem dúvida, apropriada.
À sua frente via pessoas a caminhar pela rua na pausa para almoço, incapazes de se aperceberem da sua veloz aproximação. Vinha tão depressa... e por isso sentia tamanho vento naquele dia de calor em que nem uma brisa corria nas quentes avenidas da cidade. 
E se acertasse em alguém?
E se alguma criança o visse, e ficasse sem dormir dias e dias, tamanho o susto?
Devia ter pensado nisto. Devia ter pensado na possibilidade de arrependimento. "Meu Deus, que fui fazer?", pensou, e desejou que aqueles dois segundos não demorassem tanto tempo. Caramba!, só queria acabar com tudo.

"Catch me I am falling 


Catch me I am calling "

Ou voltar atrás, começar de novo. Cagar naquela gente toda, mudar de cidade, de país de vida, começar de novo. Se tivera coragem para saltar da janela, porque não teria para abraçar de novo o desconhecido e começar tudo outra vez. Mas desta vez melhor.
"Merda, quero começar de novo, não quero acabar aqui, agora. Não."

"Life was short 

And life was sweet 
I was thinking as I hit the street 
I could hardly beleve 
I could scarcely conceive 
But I had gone out the window"