27.9.13

Sortido Rico

O assobio da chaleira em cima do fogão apanhou-o de surpresa. Já não se lembrava quão estridente era.
Apagou o lume e ficou a ouvir o silvo esmorecer enquanto os jorros de vapor ficavam mais curtos, espaçados e ténues. Pelos seus olhos passaram imagens de um passado longínquo, vividas como se fossem da véspera.
Rodou a cabeça para a direita, procurando a avó que se sentava à janela, naquela que ao mesmo tempo era a cadeira da cabeceira da mesa. Não estava lá. Havia mais de trinta anos que não estava lá. Quase sem olhar esticou o braço e agarrou a sua caneca azul, aquela pela qual bebia desde que se lembrava. O vidrado estalado desenhava rugas negras cruzando o azul marinho e as letras brancas que anunciavam o conteúdo: C H A. Assim mesmo, sem acento. Durante quarenta anos repetia sempre a mesma pergunta quando pegava na chávena. Ainda hoje não sabia a resposta. Para onde foi o acento?
Pendurada no cabide de madeira de onde pendiam o pano das mãos e o pano da loiça estava a pequena bola de chá, em metal de qualidade, mas envelhecido. Nela guardou uma colher de folhas verdes e acastanhadas, depositando-a então na chávena que encheu com a água fervente.
Nos quatro minutos seguintes contemplou a chama da vela. Ouviu a chuva nas telhas antigas, a água nos algerozes recentes, o vento embalando as paredes da casa centenária onde os avós viveram, onde em criança passou horas e horas. Muito antes dos ATL e das extensões de horário nas escolas. 
Os pais trabalhavam. As aulas começavam às oito da manhã e acabavam logo depois da uma. Saía correndo com os colegas e animadamente caminhava vinte minutos até casa dos avós. Não havia trânsito, gente má na rua ou qualquer perigo para o qual não estivesse alertado. Conhecia quase todas as caras com as quais se cruzava e fora educado a cumprimentá-las. "Boa tarde, Sr. Augusto!", "Olá, D. Flora", "Adeus, Menina Alice", "Olá, vizinho".
Assim que abria o portão da casa a avó aparecia à porta recebendo a mochila, o casaco, beijando-o e dizendo, fiel como um relógio: "Olá, querido. Lava as mãos e vai para a mesa para não arrefecer."
Depois de almoço, os tpc, a brincadeira, a leitura dos antigos livros de banda desenhada do avô, aqueles Condor, Mundo de Aventuras, F.B.I, Guerra e Espionagem, a imaginação sempre a correr. Não havia televisão para ver constantemente, computador para jogar, net para navegar. Apenas tempo para queimar. E fantasia a rodos.
A hora do lanche era anunciada por aquela chaleira. A avó não precisava de chamar. Quando o silvo ecoava pela casa pequena, vinha logo a correr. Encontrava a carcaça com manteiga, ou as torradas feitas naquela torradeira que se punha em cima do bico do fogão, as bolachas Maria com doce ou então bolachas-baunilha que comia separando as camadas e lambendo o creme, e muito de vez em quando, para grande satisfação, bolachas com chocolate de um Sortido Rico.
Sempre com chá. Preto ou de lúcia-lima, consoante a tensão arterial da avó.
Comia com gosto enquanto ouvia a avó a falar com uma ou outra amiga que se lhe juntava à hora do lanche, falando daquelas coisas de adultos enquanto faziam crochet ou malha. E zarpava de novo para as corridas de carrinhos nos desenhos da carpete do corredor e do tapete da sala, para as guerras de berlinde entre bonequinhos de plástico (verde escuro - americanos; verde claro - ingleses; cinzentos - nazis; castanho claro - japoneses), para as mais criteriosas investigações policiais que levava a cabo com o rigor do detective que encarnava. E o mundo era a preto e branco. Como a televisão, que lhe oferecia meia-hora de bonecos quando iniciava a emissão, logo o devolvendo à brincadeira deixada em suspenso.

Hoje, a viver na casa que foi dos seus avós depois de ter vendido a dos pais para pagar as dívidas do empréstimo da casa que comprou mas que ficou com a ex-mulher, foi preciso um apagão para recordar o tempo em que tudo era simples. Foi preciso ficar sem a sua inseparável chaleira eléctrica para ir à procura da velha assobiadeira que ainda se escondia no fundo do armário. 
Sentou-se à mesa, de lado como sempre, naquele que era o "seu" lugar e olhou para a cadeira da avó. Percebeu porque é que, estando ali a viver há mais de dois anos, ainda não renovara a mobília ou os utensílios. Tudo o que ali encontrava recordava-lhe o tempo em que fora verdadeiramente feliz. E isso deixava-o sereno.

A electricidade voltou mas não acendeu a luz. Deixou-se ficar à luz da vela a ler uma bd que conhecia de trás para a frente, dando golinhos no chá e registando mentalmente que, amanhã sem falta, iria comprar uma caixa de Sortido Rico. E a chaleira que assobiava não mais veria a escuridão do fundo do armário.

10:00am

Dez da manhã. 
Olho pela janela do gabinete e a escuridão incomoda-me.
Tive que acender a luz, passando de imediato a sentir uma pressão entre a nuca e o meio da testa. 
Agora não chove. É pena. Preferia que bátegas se esmagassem contra os vidros, empurradas por ventos uivantes, enquanto relâmpagos rasgassem o tecto nublado. Iria aliviar a tensão que se acumula. Abafaria o sopro constante do ar forçado que corre pelas entranhas do edifício e é despejado por cima da minha cabeça. Daria sentido à escuridão.

Em vez disso, não chove. Não sopra vento. Não troveja. Sente-se uma calma de morte, opressiva, como uma jibóia que nos abraça e aperta. Espero a minha vez. 
Que seja rápido. 
Quero ir para casa.

3.9.13

Sem alento

Acabou-se a papa doce.
Era bom mas acabou-se.
Tudo o que é bom chega ao fim.
Querias mais, mas já não há.
É tão bom, não foi?
O fim veio demasiado depressa.

Ainda mal refeito desse mal horrível que são as férias, já estou de volta ao trabalho.
"Mal horrível?", perguntam. Pois. Demoram imenso a aparecer e rapidamente se esgotam deixando-nos com imensa vontade de continuar livres e despreocupados. Ao partirem, tornam o regresso às galés ainda mais doloroso e esmagador.

Não quero trabalhar, porra!