22.12.13

A realidade é mais estranha que a ficção

Na modorra do sol de Inverno que aquecia o autocarro, progredíamos lentamente pelo trânsito de Lisboa, já congestionado pela azáfama das compras natalícias. Na parte de trás, onde os bancos se viram uns para os outros para promover o convívio, quatro mulheres na casa dos sessenta deixavam-se levar em silêncio. Aparentemente nem se conheciam. Porém, é certo e sabido que, às vezes, basta a centelha certa para desencadear uma conversa infindável que todas desejavam para fazer ouvir a sua voz.
No pára-arranca do Marquês, uma delas colou-se o vidro e exclamou:
- Olha um anão vestido de anão!
- Como vestido de anão? - respondeu a mulher à sua frente satisfeita por poder interagir rasgando a monotonia da viagem.
- Ali! Está ali um anão vestido de anão.
- Mas os anões vestem-se sempre à anão, pois são pequeninos.
- Não, este está como os anões das histórias.
- Como os da Branca de Neve?
- Não. De outras histórias. Olha ali! Até tem o chapéuzinho.
A vizinha do lado ajudou:
- Como os anões de Natal?
- É isso, um anão de Natal.
A progressão do autocarro, emperrado entre inúmeros veículos que pareciam conduzidos por quem não sabia para onde ia retirou-lhes ângulo de visão para o curioso personagem pequeno, mas a conversa arrancara e nada a faria parar.
- Há cada vez menos. Mesmo assim, há com cada homem pequenino...
- Eles não são só homens pequeninos. São assim porque têm uma doença.
- Mas não se pega. Nem para os filhos. Um anão pode ter filhos normais.
- São assim porque sofrem de "ananismo".
- Isso dos filhos é se tiverem uma mulher normal.
- Mas eles também se casam. Entre eles. Não viu nos casamentos de St.º António deste ano? Casaram um anão com uma "anoa".
- Eu vi, na televisão mostraram a casa dela. Parecia que vivia numa casa de bonecas, com tudo pequenino e baixinho.
- Há um muito conhecido, que até entra nas novelas... 
- Não é esse que é advogado?
- Não, fez de advogado... havia de ser giro....
Há medida que o autocarro conseguia livrar-se dos últimos obstáculos e entrar na faixa bus da Av. da Liberdade, a conversa suspendeu-se por um instante, construindo a ponte para a tirada fatal. Foi a quarta mulher, que até aí apenas tinha introduzido uns monossílabos de assentimento, juntamente com lentos movimentos de cabeça.
- Não sei se queria um anão. Na cama pareceria uma criança.*

*(As frases aqui reproduzidas não foram criadas por mim. Acho que não teria génio para tanto. A conversa é verídica. Felizmente fui suficientemente rápido para pegar no meu caderninho e começar a transcrevê-las).