28.2.13

Joy Division

O cinzento do céu escorria até à terra, inundando as ruas de um frio nevoeiro. A manhã ia adiantada mas os automóveis mantinham os faróis acesos, as luzes das lojas tentavam chegar aos passeios e o som ecoava de forma estranha por entre o silêncio que o isolava do resto do mundo.
Caminhava apenas porque não podia parar. Caminhava porque sabia que ao parar a realidade o apanharia. Nos auscultadores ouvia repetidamente a mesma canção. Ouvia-a vezes sem conta desde manhã cedo.

"When routine bites hard, 
And ambitions are low. 
And resentment rides high, 
But emotions won't grow."
Deitara-se na ânsia de um novo dia, esperando que a manhã trouxesse uma nova realidade, uma nova vida, uma nova esperança. Mas ao acordar, tudo estava na mesma. Tudo estava pior. 
"Why is the bedroom so cold?" 
Caminhava pelas ruas frias respirando a humidade que se condensava no ar, ali pairando, agarrando-se à pele, ao cabelo, à roupa. Tudo esfriando. Tudo gelando. Mas ele continuava a caminhar a passo certo, firme, sempre em frente, sempre sem direcção.
Repetia a letra daquela música como um mantra. Repetia-a para não deixar a mente divagar e recordar. Repetia-a assim como caminhava. Apenas porque sim.
Agora estava só e não sabia como lidar com isso. Como encarar os outros. Como a encarar quando com ela se cruzasse num dos muitos sítios que não queria deixar de frequentar mesmo sabendo que ela lá poderia estar. Como confiar de novo quando o peso da traição pairava sobre a sua cabeça.
Por isso andava. Porque não podia parar. 
Por isso escutava a mesma música. Porque não podia pensar.
Por isso sofria. Porque não queria esquecer.
"Love, love will tear us apart again. 
Love, love will tear us apart again"


27.2.13

Eric Clapton

Parei à porta do quarto vendo-a de escova na mão enquanto olhava o vestido que já tinha depositado na cama. Parecia um gato a abanar a cauda com a indecisão. Na minha cabeça, instantaneamente, brotou a letra de "Wonderful Tonight", do Clapton.

«It's late in the evening; she's wondering what clothes to wear.
She'll put on her make-up and brushes her long blonde hair».
Passei junto ao seu corpo tocando-lhe ao de leve num ombro exposto. Provoquei um arrepio, um sorriso, um regresso ao momento. Exteriorizou o que lhe ia na mente perguntando-me "Levo os sapatos azuis ou castanhos?"
Reparei então nos dois pares alinhados no chão, pouco diferentes entre si para além da cor. Fui assolado pela incompetência respondendo tentando não me comprometer "Sinceramente, não sei. Ficam ambos bem". Era verdade.
Mas de imediato percebi que mais uma vez dera a resposta errada. Será possível, alguma vez, acertar na resposta uma pergunta destas? Mais valia ser afirmativo, e escolher um deles, se bem que, se estivesse mais inclinada para o outro par, essa preferência sem fundamento apenas iria trazer confusão e dificultar um processo já de si difícil.
Agarrei os botões de punho e escapuli-me. Na sala, enquanto os abotoava, martelava agora na minha cabeça a música que mais ninguém ouvia.
«And then she asks me, "Do I look all right?"
And I say, "Yes, you look wonderful tonight.»

26.2.13

R.E.M.

A entrada da discoteca não escondia o que lá dentro iríamos encontrar. As portas estavam pintadas de preto brilhante mas uma observação próxima revelava que mais não eram que enormes portões de chapa que já ali estariam quando aquela era a entrada para um quintal ou uma garagem. Por cima, o néon anunciava um pouco promissor "Sympathia", algures entre o alterne e o inocente, revelando a indecisão que inspirara alguém a abrir uma casa daquele género no meio de uma vila tão pequena e tão rural.
Não havia ninguém à espera para entrar, estando franqueadas as portas para o negócio, longe da prosperidade. Nada era cobrado à entrada. Nenhum cartão. Nenhuma revista. Nenhum cuidado. Apenas o erguer do olhar do segurança que se revelava pelo sobretudo negro com um cartão na lapela.
Assim que passámos a porta fomos bombardeados por vermelho e prata, os tons de eleição para alimentar uma ilusão de qualidade, de requinte, de destaque. Não tinham tido muito sucesso.
Meia centena de pessoas, dos quinze ao cinquenta, espalhavam-se pelo espaço que era amplo. Tão amplo que parecia vazio, a música ecoando por entre espelhos e cortinados. A fraca iluminação tinha contributos de uns gigantes candelabros com velas acesas contribuindo para montanhas de escorrências de cera, alimentando  um claro risco de incêndio que não preocupava ninguém. 
O bar, corrido, ocupava uma parede inteira, enorme para o casal que lá atrás esperava por pedidos de bebidas. Pelo seu ar repousado percebia-se que não estavam habituados a enchentes e que o ritmo do seu trabalho seria sempre pausado e sem tensão. 
Encostámo-nos ao balcão e de imediato percebemos que não haveria muito por onde escolher, já que as muitas garrafas que faziam a parede de fundo repetiam amiúde meia dúzia de marcas por cada tipo de bebidas. Enquanto pedíamos ouviram-se os primeiros acordes do "Losing my Religion", dos R.E.M., gerando gritos de reconhecimento, em particular entre os mais jovens que saltaram para a pista de dança, mero quadrado marcado no chão com uma pintura clara para reflectir os tons multicolores das luzes que seguiam a música.
"Trying to keep up with you
And I don't know if I can do it 
Oh no I've said too much 
I haven't said enough"

Este foi o preciso momento em que eu e Pedro vimos Carolina a chegar ao balcão. Ao contrário do resto do mundo, parecia indiferente à música do momento que nos fazia abanar de copo na mão. Ali estava ela, com calças e blusão de ganga clara, e uma camisa branca que reflectia a luz negra fazendo-a brilhar na escuridão com aquele tom azulado. O cabelo, enorme, era sustentado de uma forma mágica envolvendo-a e destacando-a ainda mais. Era bonita. Muito bonita.
"But that was just a dream 
That was just a dream"
Quase de imediato eu e Pedro avançámos ao seu encontro para meter conversa. E logo percebemos que daquela vez não haveria hipótese de entendimento. Seria cada um por si e logo se veria quem ganharia o troféu.
No início foi tão fácil. Nós éramos dois tipos de fora, da cidade, destacávamo-nos do resto com um pouco de sofisticação e conversa. Carolina foi receptiva, deu-nos conversa, aceitou umas bebidas, revelou-se mais interessante, mais cativante, mais apaixonante do que algum de nós estaria disposto a prever.
Jogou o seu jogo e seduziu-nos. Ao invés de um tempo bem passado, entrámos numa espiral de competitividade, numa guerra sem quartel por causa daquela mulher de olhos azuis. Esquecemos tudo o que nos unia, os anos de amizade... tudo por uma mulher que depois nos descartou sem rodeios, sem qualquer dificuldade. Uma mulher que nos separou.
Desde aquele Verão de 1991 que não falava com Pedro. Fiquei sempre à espera que fosse ele a retomar o contacto. Mas nunca o fez. E eu, orgulhoso, também não dei o primeiro passo.
Hoje, aqui, no seu funeral, percebo como fomos parvos estes anos todos. Como éramos parvos então e como deitámos tudo a perder ao som de uma música.
"But that was just a dream, try, cry, why, try 
That was just a dream, just a dream, just a dream 
Dream"

25.2.13

Pink Floyd

"Home, home again
I like to be here when I can"
A música dos Pink Floyd, em particular estes dois versos, não lhe saíam da cabeça. Este regresso a casa era nostálgico e levara-o a recordar como ouvira o "Dark side of the moon" vezes sem conta deitado naquela cama onde agora se estendia. 
Vezes e vezes, até gastar a fita no  seu leitor de cassetes com auscultadores cobertos de esponja. A maquineta que durante anos foi consigo para todo o lado apesar de não gostar da mostrar. Enquanto os outros exibiam "walkman" de marca, da Sony, da Philips, da Aiwa, da Grundig, o seu aparelho, azul, tinha uma referência desconhecida típica de produto comprado na feira a preços mais convidativos. Mas nunca o deixou ficar mal, até morrer de velhice ao ser substituído pelo extraordinário leitor de CD comprado com o primeiro ordenado, no fim do secundário.
Ali deitado, contemplando um tecto que conseguia ver mesmo com os olhos fechados, lembrou-se de um momento exacto, num dia de Verão, com muito calor, em que esteve ali deitado com as pernas de erguidas de encontro à parede, mesmo ao lado da janela, para sentir o fresco de encontro à pele exposta pelo fato de banho. Esteve ali a ouvir aquele preciso disco, aqueles precisos versos, enquanto fazia tempo para ir para a praia, sem escaldar. Como eram quentes os Verões. À memória vieram-lhe semanas seguidas com temperaturas superiores a 40º e teve saudades dessa época em que férias grandes eram mesmo grandes, três meses de liberdade.
Nesse mesmo dia fora para a praia reunindo-se ao grupo de sempre, mas chegando-se a Filipa, com quem tinha estado todos os dias desde o início das férias. Intimamente pensava que da escuta atenta do disco lograra a paz interior, a segurança, para poder revelar a paixão que por ela tinha. Quando antecipava o momento perfeito, quando construía a ocasião ideal, quando afogava a ansiedade que o comia por dentro chegou o bronzeado Vasco, com os músculos desenvolvidos, o cabelo rebelde, os dentes perfeitos, brancos e direitos. E nem vinte minutos depois estava ele dentro de água a agarrar Filipa pela cintura, rindo e transpirando segurança, absorvendo toda a sua atenção. Filipa. A morena com a qual sonhara sonhos que naquele momento ruíram com estrondo.
De volta à toalhas, aquele palerma que invejava já pegava na toalha e a ajudava a secar, tocando-lhe, agarrando-a, para ao seu lado se deitar, afastando-se de todos os demais. 
Filipa e Vasco. Como os odiou a ambos quando os viu trocar beijos. "Os meus beijos. Eram meus, Filipa, eram meus e tu deste-os a esse oportunista acabado de chegar. E eu, Filipa? E eu? Há duas semanas à espera dos teus favores..."
Aproveitou a primeira deixa para sair da praia e voltar para casa. Voltar para aquela cama onde enfiou os auscultadores e voltou a ouvir a fita do "Dark Side of the Moon", à procura de uma tristeza que não encontrou, de uma depressão que nunca viria. Era Verão e tinha catorze anos. Filipa era apenas mais uma das inúmeras paixões que teve na adolescência e que nunca deixaram marca. 
Apesar de recordar tão bem aquele dia não havia ali qualquer despeito, tristeza, mágoa. Recordava-o porque, à distância de um quarto de século aquela cena era tão ridícula. Ridícula para si e tão importante para Filipa e Vasco que desde esse dia estavam juntos, casaram, consigo como padrinho, e tiveram três filhas, duas delas já na universidade...
Filipa e Vasco eram já então adultos em potência ao passo que ele, naquele Verão, era tão só um puto borbulhento que não fazia ideia de quem era, o que queria, o que fazia. Um puto borbulhento que em casa se deitava horas a fio apenas a ouvir música pelos auscultadores, absorvendo melodias e letras que ainda hoje apareciam instantaneamente ao reconhecer os primeiros acordes. 
"The sun is the same, in a relative way, but you're older, shorter of breath, and one day closer to death"

22.2.13

Alguém?

"Está aí alguém?"
Para além do zumbido das máquinas, das passadeiras rolantes, das lâmpadas, e do eco, nada nem ninguém lhe respondeu. Ao longo do corredor imenso, ninguém se mostrava. Havia malas junto aos bancos mas ninguém por elas olhava.
Caminhou até às enormes vidraças e até onde conseguia ver, ninguém. Ninguém nos carros, nos autocarros, junto aos aviões. Lá fora, para além do movimento gerado pela brisa suave, nada mais se mexia.
Começou a correr, ouvindo os seus passos a ecoar pelo piso polido do aeroporto. Passou pelos tapetes das bagagens. Alguns rodavam, com malas à espera de ser recolhidas, mas ninguém estava lá para as receber. 
Passou a correr pela alfândega sem que alguém o interrompesse. O átrio das chegadas. Os taxis. Nem vivalma. Sentiu o coração a explodir de tensão.
Acordou.
E nesse momento compreendeu que estava sozinho.

21.2.13

Sherlock

- Carla, viste o Sherlock? - perguntou Pedro enquanto fechava a porta das traseiras.
- Não. Há muito que não o vejo.
- Estará lá fora? - Pedro reabriu a porta e saiu olhando o vazio do quintal. O calor apertava e as cigarras ouviam-se no ar seco.
- A esta hora? Com este calor? Deve estar por aí, à procura do fresco.
- Ajuda-me a encontrá-lo. Não queria sair sem ter a certeza que está cá dentro. Sherlock! - chamou.
- Papinha! - aliciou a voz aguda de Carla. Nada.
Procuraram na casa de banho, onde por vezes se punha na banheira ou no lavatório hipnotizado por uma gota que caía de tempos em tempos. Nada.
Procuraram na sala, debaixo do sofá, onde costumava guardar os seus troféus. Nada.
Na cozinha, por cima dos armários. Nada.
No quarto, na cama. Nada. Debaixo da cama. Nada. No guarda-fatos. Nada. Nas gavetas da cómoda. Nada.
Voltaram à sala e viram nas estantes, sobre os livros ou por detrás deles. Nada.
No cesto da roupa suja. Nada.
No cesto da roupa lavada. Nada.
Durante toda a busca iam chamando por Sherlock, mas nem uma resposta.
- Vou abrir uma lata. Ele não resiste ao som.
- Não vale a pena. Ele está lá fora. De certeza. Vou procurá-lo.
- Não temos tempo, estamos atrasadíssimos. Vou abrir uma lata. - dito isto, avançou para a cozinha enquanto Pedro voltava ao corredor. Aí parou e chamou.
- Vem cá. Não vale a pena. Vem cá.
Carla retornou e viu a silhueta negra do gato, sentado na posição de bem-comportado, junto à porta da rua.
- De onde veio ele?
- Não faço ideia. Mas olha para o ar dele. Todo fofo e inocente mas  a rir por dentro, gozando-nos.
Correram para o gato que esboçou, sem a mínima convicção, uma fuga, deixando-se agarrar.
Apesar de atrasos, havia ainda tempo para uns mimos ao Sherlock.

20.2.13

Oh, Susana...

"Susana?"
Ninguém respondeu.
"Susana, estás aí?"
De novo o silêncio.
Acendeu a luz e viu aquilo que temia.
"Susana, responde."
A voz diminuiu de intensidade. Viu a moldura da consola sem a fotografia tirada havia quinze anos, na praia. Na sala algumas prateleiras quedavam vazias exibindo marcas de pó reveladoras da ausência de livros e discos.
"Susana?..."
O chamamento era agora um apelo torcido pelo nó na garganta.
No quarto, o guarda-fatos aberto expunha cabides despidos, esqueletos pendurados. As gavetas da cómoda estavam abertas, vazias do seu recheio.
"Oh, Susana."
Deitou-se agarrado à almofada que ainda guardava o cheiro dela, fechou os olhos e quis chorar. 
Mas não conseguiu. Apenas então percebeu que era por isso que ela tinha partido. E que o fizera com toda a razão do mundo.

19.2.13

Patrícia

- Patrícia? Estás aí, Patrícia?
Só o silêncio lhe respondeu. Suavemente fechou a porta da rua e repetiu o chamamento.
- Patrícia! Estás em casa, Patrícia?
Rápida e ansiosamente foi de divisão em divisão, concluindo que estava só. Parou no escritório e pegou no telefone. Os dedos tremiam-lhe, mas a marcação rápida facilitou-lhe a vida e encurtou a distância para a sua sogra.
- D. Lurdes, está boa? Obrigado. A Patrícia está por aí? (...) Deixe estar, obrigado. Deve estar a chegar. Eu depois falo com ela. (...) Adeus, beijinhos.
Escolheu outro destinatário e ligou.
- Oi, Carlos, tudo bem? (...) A Patrícia não está por aí com a Sofia, está? (...) Eh, pá, obrigado. Deixa estar. Procuro por ela mas tem o telemóvel desligado... Obrigado, pá, um abraço.
Percorreu a lista telefónica do aparelho, sem saber a quem mais ligar. Hesitou.
O som da chave na porta fê-lo saltar e, num impulso, alcançou a entrada. Despreocupada, ligeira, alegre, Patrícia entrou em casa para o encontrar ali, expectante, quase em bicos dos pés.
- Olá! O que se passa?
Agarrou-a num abraço apertado e quis falar devagar. Não conseguiu e, apesar da voz lhe fugir, as palavras lançaram-se numa torrente imparável.
- Só me lembrei de ir ver hoje. E tu sem telemóvel... Não é o primeiro prémio mas é tão bom, tão bom... Patrícia, ganhámos quase quatrocentos mil euros no Euromilhões...!

18.2.13

O Sousa

- O Sousa!, alguém viu o Sousa?
Quatro pares de olhos se ergueram, mas ninguém esboçou uma resposta. O chefe, de fato escuro e gravata rosa, insistiu.
- Nenhum de vocês viu o Sousa?
- Eu não...
- Eu também não...
Os outros dois limitaram-se a abanar a cabeça.
- Onde é que esse filho-da-puta se enfiou? Se lhe ponho as mãos em cima...
Habituados a estas explosões, nenhum dos quatro motoristas levou a sério a vaga ameaça.
- Qual de vós está disponível?
- Eu estou à espera do Presidente. Ele disse que ia para casa mais cedo.
- O Sr. Director disse para não me comprometer com nada porque ainda tem que ir a um sítio... não sei onde.
- Eu fiquei de ir ao aeroporto buscar a esposa daquele Administrador... o coiso, pá, aquele careca.
Em seco, o quarto motorista procurou qualquer coisa, uma desculpa qualquer. Mas à medida que os segundos passavam em branco percebia que lhe saíra a rifa. Encolheu os ombros.
- Não tens nada? - interrogou o chefe.
- Não... - disse hesitante.
- Boa. Então vais tu em vez do Sousa. Quando vir esse gajo faço-lhe a folha!
- Vou onde?
- Anda lá dentro que eu te explico.

Baixando o tom de voz, o chefe abriu o livro.
- Vais com o Vice-Presidente. Leva-o onde ele te disser. Transporta quem ele disser. Não fazes perguntas, não fazes comentários, não vês nem ouves nada. Nunca falarás do que se passar a ninguém. Nem comigo... que não quero saber de nada.
O seu olhar interrogativo expressava a surpresa que sentia. Engoliu em seco, temendo o que lhe estava reservado. O chefe continuou.
- Não te preocupes, que não é nada de ilegal. O gajo gosta delas já crescidas, e não se mete com qualquer uma. Bebe demais, mas porta-se bem. Tem apenas cuidado porque às vezes há umas que querem aproveitar-se... não as deixes levar nada. E avisa lá em casa para não esperarem por ti. Hoje vais fazer serão até de madrugada.
- ...
- Quando o fores por a casa assegura-te de que ele entra bem e em segurança. A casa está vazia, pois a mulher e os putos foram para Madrid. E toma atenção aos fotógrafos. Se vires algum, o que é raro, evita-o.

Só então percebeu porque raio o Sousa, que sempre fora um baldas, nunca tivera problemas e o chefe, por mais que ladrasse, acabava por lhe tolerar tudo.

15.2.13

Laranja

-Vais ver agora uma coisa que nunca ninguém viu. - disse o pai para o filho à mesa do almoço.
- O quê? - perguntou o petiz.
- Olha. 
Com firmeza e experiência o pai começou a descascar a laranja numa contínua espiral sem partir a cobertura porosa. No ar pequenas gotas de sumo vaporizavam o cheiro que entrava pelas narinas e despertava os sentidos. A doçura fazia crescer água na boca e a criança aguardava expectante. Queria comer uns gomos do apetitoso fruto e queria ver aquilo que nunca alguém vira.
- O quê? - insistiu a criança.
- Não vês? Olha! - e exibiu o globo descascado.
- É só uma laranja descascada. Eu já vi isso.
- Mas nunca tinhas visto esta laranja descascada. Nem tu, nem ninguém.
- Ahh... - foi compreendendo.
O pai pegou então na peça única que era a casca, levantando-a e exibindo as suas curvas. Com delicadeza pousou-a na palma da mão esquerda, reconstituindo a forma esférica.
- Quantos pedaços?
- Ãhn?
- Vou partir a casca. Em quantos pedaços vai ficar?
- Três.
Levantando a mão direita o pai bateu três palmadas sobre a casca de laranja. 
- Vamos ver. 
Puxou o primeiro pedaço. Desviou um segundo e mostrou o terceiro e último.
- Três! Boa!
- Boa. Acertaste!
Com gosto viu o riso, a alegria estampada na cara do filho, e lembrou-se da sua própria alegria e surpresa quando, quarenta anos antes, o seu pai lhe revelara aquela maravilha.

14.2.13

Caracol, caracol, põe os pauzinhos ao sol

Sobre a mesa da esplanada contavam-se os despojos do festim. Mesmo com o empregado a recolher pratos e copos já vazios, ainda se contavam quatro imperiais, dois cestos de pão e uma grande dose de caracóis.
As cascas vazias empilhavam-se, secando ao sol do fim de tarde. Os guardanapos de papel usados competiam num monte assente noutro prato. Como nem uma brisa corria, não havia perigo de se espalharem papel e gordura.
Ao fundo, o mar enrolava na areia, sereno,  sem dramas.
Carlos saboreava o salgado dos lábios enquanto picotava a toalha com o palito usado para fisgar os que mais renitentes se tinham escondido na sua casca. Olhou para Isabel e encontrou-a perdida no reflexo do poente nas calmas águas esverdeadas, também ela pintada naquele laranja quente.
Num golpe de sorte o sistema de som da esplanada avariara, pelo que se ouviam conversas, brincadeiras de crianças, uma ou outra gaivota e o marulhar das pequenas ondas, lá à frente. Mesmo assim, sentia-se insatisfeito.
Pigarreou ganhando a atenção de Isabel. Não foi preciso dizer nada. Já não era preciso dizer nada. Um olhar anunciou a pergunta. O seu encolher de ombros, como se estivesse resignada e disposta a fazer um sacrifício, acompanhado daquele sorriso que denunciou a ironia da resposta bastou para que Carlos erguesse o braço.
- Mais um prato de caracóis e duas imperiais. - transmitiu ao empregado.

13.2.13

Porco

"Amigo, desta vez é que é. Essa é a última bifana que lhe sirvo", o velhote, barrigudo, barba por fazer, engordurado, não tinha afivelado o habitual sorriso. Engoli com esforço e questionei, "Como assim? Acabou-se?"
"Acabou-se! Já não tenho vida para isto. Todos os dias a mesma coisa. Todos os dias menos receita, menos dinheiro para mim. E agora falam que a ASAE anda a multar a malta que tem molhos como o meu. Como se as bifanas pudessem ser feitas sem esta gordura..."
"Arranje-me aí mais uma. Essa sim, será a última."
"Aqui está. E esta fica por conta da casa. Por todas as que já cá comeu..."
"Obrigado."
Ao morder o pão senti o sabor salgado do molho que o ensopava. A carne rasgada pelos dentes desfez-se espalhando mais sabor a todos os recantos da boca. Engoli com prazer e empurrei com mais um pouco da imperial fresca. Repeti o ritual em pequenos pedaços prolongando o momento. Quando terminei tinha na garganta um nó muito bem temperado.
Estendi a mão ao Sr. Luis e desejei-lhe bom descanso.
"Até um dia."
"Até um dia", despediu-se ele.


12.2.13

Bestas

"Foi preciso chegar a Lisboa para ver as pessoas a comer de pé, como as bestas", recordou. A frase, do seu avô, traduzia a incompreensão perante o estranho fenómeno da capital conhecido como os "pratinhos ao balcão". Mas o dinheiro era cada vez menos, o tempo também, e não desdenhava a possibilidade de almoçar num quarto de hora por quatro euros... prato, imperial, café.
Quando o pequeno prato lhe foi posto à frente, agarrou no saleiro e despejou uma quantidade considerável de sal sobre a jardineira cheia de molho que se lhe apresentava. Não contente, depositou ainda uma boa dose de pimenta, misturando tudo com o garfo. Recordando práticas de criança, esmagou as batatas, as ervilhas, as cenouras, num puré que embebeu grande parte do molho e absorveu em cada garfada os sabores que se reuniam no prato. 
Nada elaborado. Sabia ao guisado da mãe, quando requentado de dois dias. Ali, contudo, era vendido como prato do dia. Afastou da mente cenários imaginados da cozinha do snak-bar concentrando-se em  engolir a comida que tinha à frente. Não mastigava muito, porque não era preciso. Não saboreava porque, apesar do sal e da pimenta que todos os dias enfiava na comida, havia muito que deixara de sentir o sabor dos alimentos. Diziam-lhe que era dos dois maços de tabaco que fumava por dia. Talvez. Também o tabaco já a nada lhe sabia. Era só o vício de ter qualquer coisa na mão e fumo nos pulmões.
Dez minutos depois acabou a bica, deixou duas moedas no balcão e saiu, acendendo mais um prego. 
Até as bestas comem mais devagar e saboreiam melhor a palha ou a erva ou lá que merda é que elas comem.

11.2.13

De olhos fechados

Fechou os olhos.
Na boca, sem mastigar, esmagou o pedaço permitindo aos sabores misturarem-se na exacta proporção que o mestre sushi imaginou. O arroz. O peixe. As ovas. As algas. E qualquer coisa que não identificou. Algo fresco mas intenso.
Ao engolir abriu os olhos e sentiu uma onda de prazer. A luz era muito fraca mas via com clareza as mãos do mestre de sushi a trabalhar sobre nova experiência na zona mais iluminada da bancada. Procurou o seu olhar e encontrou-o depositado sobre si. O homem, de sorriso largo, e que não falava uma palavra de português, assentiu com um "Hai" e mais qualquer coisa imperceptível. 
Só conseguiu replicar com um sorriso idiota e um gemido de prazer. Deu um gole no saké espesso e trincou um pequeno pedacinho de gengibre em pickle preparando-se para o que mais viesse.
Não tardou muito a receber uma nova peça solitária num pequeno prato manifestamente de manufactura artesanal. A experiência egoísta iria continuar. Pegou nela com os dois pauzinhos e colocou-a na boca onde o fresco se misturou com o estaladiço, o adocicado com o salgado.
Fechou os olhos.

8.2.13

Frango

- O que é que vai ser?
- Frango. Não têm mais nada, pois não?
- Não. Sim. Pois. Mas... que frango?
- Assado. Claro.
- Amigo, nós só vendemos frango assado. A questão é qual.
- Como qual?
- Meio frango? Um frango inteiro? Em menu? Para comer aqui? Para levar?
- Está a ver-me com cara de quem vai comer para o meio da rua?
- Pode ser para levar para casa.
- Se fosse para levar para casa ia à Sevilhana que lá, pelo menos, o frango é crescido.
- Como crescido?
- Aqui, o que vocês vendem é pintainhos.
- Oh amigo, deixêmo-nos de conversas e voltemos ao pedido. Qual é o frango que quer?
- Dê-me o menu. Para comer aqui, à mesa, como gente civilizada, de faca e garfo. 
- Certo. E para beber?
- Whisky.
- Co-como whisky?
- Whisky.
- Frango assado com whisky?
- Porque não? Eu gosto.
- Mas não pode ser. Não temos whisky e mesmo que tivéssemos não entrava no menu. Não pode ser cerveja?
- Que nojo... dá-me azia.
- Vinho?
- Argh!, que isso dá-me vómitos.
- Coca-cola? Sprite? Ice Tea?
- Que horror. Isso é só açucar, faz-me gordo. Não tem mesmo whisky?
- Não, já lhe disse. Só sobra água.
-Água? Isso não dá cabo do estômago?, tudo ali a boiar?

7.2.13

[ -... ]

- ...
- Não dizes nada?
- ...
- Porra!, pá, estás mesmo calado, hoje.
- ...
- E se dissesses qualquer coisinha? Pelo menos para perceber o que se passa? Sabes, a gravidade da coisa.
- ...
- Acho que estás a ser parvo, é o que é. Ela também não era assim nada de extraordinário. Se queres que te diga, se calhar foi melhor assim. Logo no início, para doer menos e trazer menos complicações. Já viste se isto acontecesse daqui a um ano, já vocês os dois estariam a viver juntos, teriam uma bagagem enorme... Não achas, pá?
- ...
- Lembro-me do Carlos, que era o único que não sabia que a Flor andava metida com outros gajos. O único. Apesar dos avisos foi-se enterrando e quando descobriu já andava a pensar em casamento e filhos. Ficou de rastos e entrou numa depressão que demorou três anos a passar. A única coisa positiva é que nessa altura perdeu vinte quilos e deixou de ser o badocha que fora durante anos. Bem vistas as coisas, até é capaz de ter sido bom para ele. Sabes como dizem, não é, "depois da tempestade vem a bonança".
- ...
- Mas contigo, assim, só sofres se quiseres. A gajinha só estava a brincar contigo. Tu é que tens a mania de que qualquer relação é para a vida toda. Desde que fizeste 40 perdeste o instinto de matador. E agora estás para aqui, calado, macambúzio, como se o mundo tivesse acabado.
- ... 
- Eu não queria ir por aí, mas bem que te avisei. Uma gaja quinze anos mais nova é muita areia para a nossa camioneta. Andam de cabeça no ar, querem mais do que aquilo que temos para dar em termos de saídas, amigos, programas. A malta quer é intimidade e conforto. E tu mais que todos nós, que sempre foste quem mais pensou as suas relações. Olha, devias era ir ver as gajas a passar lá em baixo. Agora, com estes primeiros calores da Primavera, estão todas a libertar-se da roupa e é só coisas boas a passar.
- ...
- Lavas a vista e esqueces essa tipa, pá. Alinhas?
- ...
- Então, vá... eu vou descer e sentar-me na esplanada a beber um fino e controlar o gajedo. Aparece.
- ...
- Até já. Gostei de falar contigo.

6.2.13

Está sol, quentinho...

- Já te ias embora, não?
- Porquê? Queres ficar sozinho? 
- Sim. É isso. Quero ficar sozinho.
- Estás à espera de alguém?
- Não. Vai-te embora.
- Tanta insistência dá para desconfiar.
- Desconfia o que quiseres, mas vai-te embora.
- E se eu quiser ficar um pouco mais? Está sol, quentinho...
- Se não vais tu, vou eu.
- Irra, que isso é mesmo vontade de me afastares.
- Não... que ideia. Vá lá, sai do carro.
- Acho que vou... meu Deus, que cheiro é este? Horrível, pá..., estás podre!
- Eu avisei. O melhor era teres ido embora enquanto podias.
- Eh pá, vou. Vou mesmo. Mas que cheiro... vai-te tratar.
-Porque é que não ficas mais um bocadinho. Está sol, quentinho...

5.2.13

Bacalhau

- Esta merda deste restaurante serve mesmo bem.
- Para quem gosta de batatas fritas cheias de óleo e carne mal passada cheia de sal... Dá-me lume.
- Ora, já comemos em sítios bem piores. Toma.
- Claro que já. Almoçávamos todos os dias na cantina. Obrigado.
- Está bem. Mas aqui não vais pagar mais do que 10 ou 12 euros e não podes dizer que comeste mal.
- Isso é outra coisa. Não comi mal. Mas não vou tão longe de ir ao ponto e dizer que esta tasca serve mesmo bem.
- Está bem... dou-te razão. Arranja-me um cigarro.
- Por outro lado, fomos todos para a carne, o porco e as batatas. Sal e gordura para engrossar a circulação. Toma.
- Se calhar aqui ias para o peixinho, não? Obrigado.
- Não... mas com aquela empregada estive tentado a pedir-lhe um pratinho de bacalhau de perna aberta.

4.2.13

Repetições

- Não gosto de me repetir.
- Então cala-te.
- Calava-me se tu ouvisses à primeira.
- E o que é que te faz crer que não ouvi?
- O facto de não fazeres o que te digo.
- Não fazer o que me dizes não quer dizer que não te tenha ouvido.
- Não?
- Não. Quer apenas dizer que não estou a fazer o que tu me dizes para fazer.
- E não o fazes porquê?
- Porque não quero.
- Então, custa-te muito dar a entender que me ouviste mas que te está a borrifar para o que te disse?
- Eu não estou a borrifar-me. Nem a ignorar. Estou só a não alinhar.
- Podias, ao menos, discutir aquilo que te digo...
- Mas então, irias ter que te repetir. E tu não gostas de te repetir.
- Sim. Eu não gosto de me repetir.

3.2.13

Rua da memória


O peso dos anos afundava-o à medida que conduzia lentamente pelas ruas vazias onde crescera. Naquela soalheira tarde de domingo, raras eram as pessoas com quem se cruzava no silêncio de uma terra outrora tão cheia de vida.
Não muito longe da grande cidade, havia quarenta anos, aquela fora uma zona de qualidade reconhecida e desejada por muitos que, aliciados pela auto-estrada então inaugurada, foram engodados com promessas de viagens de quinze minutos para o trabalho. Porém, o tempo e a experiência encarregaram-se de lhes desfazer as ilusões  impondo uma garantida hora de engarrafamento todas as manhãs, e outra ao fim do dia. Acrescendo a tal desgaste, somaram-se portagens cada vez mais caras, os custos do estacionamento na grande cidade e o brutal aumento do combustível.
Hoje, cruzava as ruas onde crescera e só via casas arruinadas e carros quedos e mudos, abandonados na berma, enferrujados, salteados, canibalizados. À frente da casa do Sr. Sousa, outrora luxuosa vivenda em cujos largos relvados bem cuidados se passeavam os seus labradores premiados, mas hoje reduzida a um esqueleto grafittado de janelas quebradas e plena de lixo, repousavam eternamente os restos do Mercedes 280 SL que alimentara os seus sonhos de adolescente. Em cima de tijolos, com os vidros partidos, os bancos ausentes, a capota rígida partida e marcas de incêndio na frente, era agora uma mera sombra da bomba vermelha que o fez estremecer da primeira vez que o viu. Recordou-se do seu sorriso de menino ao ouvir o roncar do motor na chegada à praceta onde jogava à bola, anunciando-lhe quilómetros a alta velocidade.
Seguiu em frente progredindo pelas ruas desertas. Passou ao largo do prédio de luxo que viu construir, o primeiro ali nas redondezas. Problemas com a Câmara embargaram a obra durante um ano, oferecendo-lhe um cenário de guerra para explorar com os amigos. Saltando entre andaimes e pisos inacabados, durante tardes guerreou com tubos de electricidade pelos quais soprava verdes bolas das árvores de rua. Até que o Fernando falhou o salto por cima do vazio do poço de elevadores e partiu um pé. Vieram então vedar o acesso àquele esqueleto de fantasia que depois concluiram e venderam a preços luxuosos, “pornográficos”, diziam os seus pais.
Hoje voltara a ser um mero esqueleto. Os moradores cansaram-se do subúrbio e partiram. Os que vieram a seguir não tiveram capacidade para pagar aos bancos os gordos empréstimos que enterraram na compra da casa. Aos poucos o prédio ficou vazio; aos poucos o mundo apoderou-se do espaço e as gentes levaram portas, janelas, móveis, candeeiros, fios, torneiras. De tudo um pouco poderia ser encontrado nas pequenas casas das proximidades, casas essas também hoje parcamente ocupadas.
As lojas que antigamente eram âncora da vida local há muito tinham desaparecido, tragadas por outros negócios mais baratos e alternativos. A competição feroz com os Centros Comerciais dos arrabaldes arruinou os pequenos comerciantes, aos poucos substituídos por emigrantes trabalhando de dia e de noite para ganhar o seu sustento e o sustento da família que ficara para oriente. Mesmo esses tinham partido, entretanto, sucedendo-se agora fachadas frias e vazias, montras partidas e cheias de lixo, néons quebrados e apagados.
Dos restaurantes, há muito se esqueceram os poucos que ainda por ali vivem. Deixou a memória vaguear até àquela que será a ida a um restaurante mais antiga da qual se consegue lembrar. Sentado na cadeira em cima de duas listas de telefone para alcançar o prato, calado e temeroso pela autoridade que o pai, ríspido, impunha nestas saídas em público. Passava agora à porta desse restaurante e via o aviso já queimado pelo sol que há mais de uma dúzia de anos informava: “Pedimos desculpa pelo súbito encerramento. Prometemos ser breves”. E foram. Duas semanas após a afixação desse papel e do encerramento já no Tribunal corria a inexorável falência.  
Aquilo que em tempos fora a casa onde cresceu já não existia. Vendida após a morte dos pais, os novos donos nem sequer a ocuparam. Numa manobra de especulação duplicaram o investimento e venderam-na a um grupo económico que arrasou o quarteirão fazendo nascer um centro comercial. Quatro anos após a inauguração um incêndio reduziu-o a cinzas e nunca alguém mexeu nos escombros, hoje já encobertos por pequena vegetação.
Mais há frente o terreiro onde brincara horas sem fim com os amigos de infância tinha dado lugar a dois gigantescos pilares para uma passagem aérea que ficou por construir. Os monstros de betão erguiam-se, lambidos por heras que os trepavam abraçando-os com força. Cá em baixo, barracas acoitavam gentes invisíveis, não obstante os reveladores fumos brancos de pequenas fogueiras que anunciavam a sua presença. Por ali brincara a guerras sem malícia, muito anteriores à guerra que mais tarde veio e o levou, a si e à sua geração, para paragens longínquas disparar contra o “inimigo” que atacava sem rosto roubando toda a inocência que ainda pudessem ter levado consigo.
Sacudiu as ideias e atentou no homem que, à frente, mijava para o alcatrão, abanando para a frente e para trás, na justa medida que o vinho deixava. Ficou convicto que era o “Chinês”, o terror da secundária, que tantas vezes o perseguiu anunciando maus-tratos que ficaram por consumar. O “Chinês”, o matulão briguento e forte, que nunca recuperou da ida para a guerra da qual regressou  o farrapo que continuava a ser.
Uns minutos à frente passou pelas suas antigas escolas. A dos pequenos, à esquerda; a dos outros, à direita. Grafittadas vezes sem fim, já nem era perceptível a cor branca original. Há mais de uma década que ali apenas se ensinava, de boca para orelha, a vulgar arte do crime, do carteirista, do esticão, da entrada em casa, por arrombamento, por escalamento, do tráfico…
Com uma estranha sensação de vazio, de desilusão, acariciando o forte murro no estômago que esta visita lhe dera, acelerou mansinho para a auto-estrada. Nunca deveria ter regressado. A curiosidade destroçou o romantismo com que guardava o passado. Agora, as últimas imagens registadas iriam impor-se e perdurar até ao fim dos seus dias.

1.2.13

Reviravolta

Deixou os miúdos no colégio e entrou de novo no carro. Respirou fundo e arrancou. Ao chegar à fila do costume não se encaminhou para a procissão que entrava para a auto-estrada em direcção à grande cidade. Hoje, enfiou para o sentido contrário. Três faixas vazias. Acelerou enquanto do outro lado a paciência se esgotava no "pára-arranca".
A sua expressão era tensa. Cerrara os dentes e nem se apercebera da força esmagadora que fazia entre os molares. Acelerou ainda mais.
Quase instintivamente rodou o botão do computador de bordo até ver a autonomia. 643 quilómetros. Era um bom sinal.
À medida que foi percorrendo a auto-estrada, que, de ligação em ligação, se aproximou da fronteira, foi relaxando. A dada altura já esboçava um sorriso. Quando abasteceu, já em Espanha, riu mesmo, em grandes gargalhadas, ao ver a nova autonomia. 801 quilómetros.
Regressou ao asfalto e prosseguiu a marcha. Ainda nem decidira onde ou quando iria parar. Ou por quanto tempo.

Martim e Inês, os dois miúdos, ficaram horas no colégio à espera do pai. Tiveram que chamar a mãe, a avó, até que esta os foi buscar. Esse foi o último dia em que viram o pai.