29.4.13

Antigamente

"O Salazar, a mim, nunca me fez mal nenhum!" , anunciou em tons de autoridade para justificar o seu descontentamento com o actual estado da nação.
Pois não, pensei. A ti não te fez mal algum, mas fê-lo a muitos outros que por cá andavam. Destruiu muitas vidas e reduziu a existência de milhões a um dia-a-dia de trabalho, pobreza, medo, temor reverencial e subserviência. Mas como tu eras dos que estava bem, estás a cagar-te para todos os demais. Apesar de pensar tudo isto, nem uma palavra disse. A viagem continuou e tive que gramar mais uns minutos de ideias feitas, disparates, parvoíces fascistas e fascizóides que  velho continuou a partilhar em voz alta para que o outro velho que o acompanhava no autocarro pudesse ouvir, entender, e acenar com a cabeça dando a sua concordância a tamanhos dislates.
Porém, a dado passo, o autocarro encostou a uma paragem sem que alguém tivesse premido o sinal para tal efeito ou alguém pedisse para entrar. A porta de trás abriu-se com um sonoro suspiro pneumático e o condutor levantou-se avançando pelo corredor. puxando pelo braço do velho exclamou: "Faça favor de sair do veículo!".
"Mas..."- hesitou o velho - "Eu quero continuar até Moscavide."
"Queria, não queria?" - o tom de voz do condutor era severo e inflexível - "Mas vai ficar aqui, que eu não o quero a bordo."
"Mas com que direito...?"
"Com o meu direito. E se quiser, vá queixar-se ao Salazar"

25.4.13

O "Montanha"

Sabe-se agora que nunca foi conhecido pelo seu nome próprio. Num momento de infeliz falta de inspiração, os pais baptizaram-no de Plácido Sebastião Pequeno Casal.
Assim que começou a frequentar a escola, as outras crianças, com a sua cruel frontalidade, encontraram formas de deturpar os seus nomes e apelidos irritando-o com alcunhas depressivas. Nomes que se propagavam como fogo em mato seco e, de um dia para o outro, tinha a escola em uníssono a usar a última e ofensiva moda.
Contudo, teve sorte nos genes. Cresceu rapidamente, sempre à frente dos colegas, sempre maior, sempre mais forte. Vai daí, começou a cobrar o fim dessas alcunhas, oferecendo uns sopapos como garantia. Apesar de não poder combater a escola toda, tinha a inteligência de escolher os confrontos mais frutuosos. Os gozões, aqueles que arrastavam o peso da popularidade, eram as suas vítimas de eleição. Nada melhor que pôr um deles a chorar para transmitir a mensagem no recreio. 
Enfrentava, porém, um problema. Tanto esforço não seria compensado, ou credível, se começassem a tratá-lo por qualquer um dos seus nomes. Foi então que ele próprio escolheu a alcunha pela qual queria ser conhecido. E ainda não chegara à quarta classe já toda a gente sabia quem era o "Montanha". 
"Montanha".
De início estranhou, mas rapidamente viu a lógica e o poder do nome. Plácido estava sempre uns centímetros e uns quilos acima da média. Era grande. Era forte. Assustava. Nada melhor que "Montanha" para ser conhecido. E o único que se lembrou de o tratar por "Montanha de merda" foi ao dentista de urgência para reparar a perda de três dentes, dois deles definitivos.
O "Montanha" teve um percurso difícil. Tanto crescimento físico, tanto empenho no emprego da força, trouxeram-lhe limitações escolares lá pelo oitavo e nono anos durante os quais andou a marcar passo. Tinha dezasseis quando abandonou a escola sem sequer completar o nono ano. Mas o seu pai achou que estava mais do que na altura de por a trabalhar aquele corpo que já passava por vinte. O "Montanha" foi para a empresa de mudanças do tio e começou a dar-se com novos amigos, todos mais velhos e experientes. Amigos que o apresentaram ao haxixe e, mais tarde, à sua companheira cocaína.
Foi por essa altura que num círculo mais restrito o "Montanha" passou a ser conhecido pelo "Dedos". Tinha o irritante hábito de estalar os dedos constantemente. Tinha também o dom de, durante as mudanças, com subtis passes de mágica, fazer desaparecer este ou aquele bem que, depois, era rapidamente convertido em vício. Juntas as duas habilidades, a alcunha surgiu com naturalidade. 
Depois da tropa, onde o tratavam pelo apelido propiciando piadas às quais reagia a quente, ganhando com isso alguns dias de prisão disciplinar, "Montanha" regressou com uma nova paixão: as armas. Recusou voltar a trabalhar com o tio e juntou-se a um grupo com o qual ocupou uma casa desabitada. Os pais passaram a vê-lo apenas uma ou duas vezes por mês e, para seu desgosto, sempre que dele tinham notícias as mesmas estavam longe de ser boas.
A polícia tomou-o debaixo de olho e aos vinte e quatro o Juiz, apesar de ser a primeira condenação, não hesitou em dar-lhe três anos de prisão efectiva, impressionado que ficou com as fotografias da cara amassada da vítima e dos tiros disparados contra três polícias.
Cumpriu dois anos e regressou ao activo, permitindo-se  um novo nome. A montanha fumegava agora a duas mãos, graças ao par de pistolas Smith&Wesson de 9mm que encontrou ao assaltar a casa de um militar. Nunca mais as largou, assim como à nova alcunha. Por todo o lado se passou a ouvir falar do "Pistolas".
O "Pistolas" ganhou fama e a Polícia empenhou-se em fazer-lhe a folha. Acumulavam-se zaragatas, espancamentos, tiroteios... Ele e o seu grupo estavam cada vez mais eficazes a entrar em casas e limpar o recheio mais valioso. Se alguém aparecia pela frente não hesitavam em bater ou disparar.
Contudo, o "Pistolas" aprendera mais em dois anos de prisão que em onze anos de escola e trouxera um "mestrado" em artes de rua, estratégia e técnicas para não deixar provas. Tinha uma linha de escoamento dos bens adquiridos e nunca lidava directamente com os receptadores. O seu tamanho, força, fama e as duas pistolas desencorajavam os delatores.
Ainda assim, sabemos todos muito bem que não há nada que dure para sempre. A sorte do "Pistolas" acabou no dia em que pisou os calos ao Comandante Carriço, oficial da GNR que toda a gente chamava de "Carraça".
Longe de ser um exemplo de integridade, "Carraça" estava uns degraus acima na cadeia alimentar. E jogava tanto pelo lado da lei como pelo campo da clandestinidade. Por isso, no dia em que o "Pistolas" e o seu grupo foram à sua casa, limparam um ror de dinheiro e valores, e abateram o cão de guarda, fiel amigo de sete anos, "Carraça" decidiu acabar de vez com aquela rês. E, jurou-o, não iria dar trabalho aos Tribunais. Não iria ficar à espera que um Juiz aplicasse a lei e permitisse que, em poucos anos, aquele meliante retornasse às ruas.
Vai daí, "Carraça" pôs os seus homens da GNR em campo para investigar, acossar, encurralar o "Pistolas". E encarregou os seus outros homens para, no final, não deixarem o "Pistolas" ser apanhado pela Guarda. Pelo menos em condições de ser julgado.
Aconteceu tudo numa madrugada quente de Verão. "Pistolas" e seu grupo entraram numa vivenda lá para os lados de Azeitão, em plena Serra da Arrábida. À saída, nas estreitas estradas de terra, a GNR esperava o grupo. Houve tiros e perseguições e foram todos capturados. Todos excepto o "Pistolas" que conseguiu acelerar de encontro à barreira que lhe cortava o caminho e passar incólume aos vários tiros que contra si foram disparados. 
Seguindo pelas estradas costeiras, esclareceram as notícias que perdeu o controlo do veículo e caiu por uma falésia. Pelo menos essa foi a versão do Cabo e do Soldado da GNR que primeiro chegaram ao local.
Sem meios nem perícia para acompanhar o ritmo do fugitivo, tinham ficado para trás no velho jipe temendo mesmo perder definitivamente o rasto do "Pistolas". Mas à luz de apenas um farol de um Mitsubishi Pajero estava um homem que lhes fez sinal e se limitou a dizer: "Ia a passar e vi um carro a voar pela falésia abaixo".
Nenhuma das perguntas que o Soldado queria fazer, nomeadamente o porquê daquelas marcas de colisão no Mitsubishi, teve oportunidade de ser respondida pois o Cabo foi rápido a agradecer e dispensar a "testemunha". Nem sequer dela fez constar no relatório.  
Nos últimos momentos, quando as rodas giravam livres pelo ar, as pistolas calaram-se, os dedos partiram-se, a montanha ruiu. E Plácido Sebastião Pequeno Casal encontrou o seu fim no fundo de uma falésia, enquanto fugia da polícia, ganhando a imortalidade nas histórias que ainda hoje se contam sobre si.

19.4.13

Carol

Abriu pesadamente os olhos, ainda o despertador não tinha ligado o rádio. O corpo antecipava a rotina e, minutos antes da hora marcada, devolvia-o à vida. Ainda não conseguira focar com rigor na luz azulada que entrava pela janela, anunciando mais um dia frio, e já na sua mente se faziam ouvir as palavras que o iriam acompanhar durante a jornada. "Oh, Carol, I am but a fool / Darling, I love you tho' you treat me cruel"
Não sabia de onde vinha tal música, nem se lembrava da última vez que a escutara verdadeiramente. O certo é que ali estavam elas, aquelas palavras que iria repetir até à exaustão, coladas ao consciente, rasgando a sua presença e impondo-se pela força.
"Oh, Carol...", continuou a ouvir quando a rádio começou a emitir as notícias das sete da manhã.
"Oh, Carol...", trauteou no chuveiro, aproveitando a ressonância dos azulejos..
"Oh, Carol...", mastigou a torrada e sorveu o café.
Todo o dia, a toda a hora, lá estava Carol. Ouviu rádio, onde passaram mil e uma músicas, mas nenhuma superou os acordes que vibravam repetidamente e em silêncio. Mesmo sem querer, por vezes, deixava fugir em voz alta um "Oh, Carol...", tentando logo perceber se alguém dera por de tamanho deslize, logo tentando disfarçar.

No regresso a casa, já no autocarro, reparou na mulher magra, de sapatos vermelhos, que se sentava num dos bancos protegidos por um vidro, junto à porta da saída. Conseguiu perceber as suas pernas compridas, sensuais e demorou o olhar nos ombros expostos, de tez leitosa. Ruiva, amplos olhos cinzentos, sardas modestas. O cabelo comprido, apanhado, não escondia o estreito pescoço que inclinou quando os seus olhares se cruzaram. Embaraçado, desviou os olhos. Quando de novo focou nela, viu-a olhá-lo abertamente, sem reservas ou pudor.
Ao aproximar-se da saída, sentiu aquela impressionante mulher levantar-se e avançar até estar a seu lado, inundando-o com um perfume doce e frutado. Cedeu a passagem para que caminhasse à sua frente, aproveitando que os seus passos navegavam na mesma direcção para continuar a contemplar a forma ligeira, quase dançante, como se equilibrava nos saltos altos e progredia no passeio de calçada portuguesa.
"Oh, Carol..."
Mantendo o ritmo, seguiu-a. Ficou, contudo, embaraçado quando ela rodou a cabeça para trás e, entre duas passadas, o olhou directamente. Por não querer passar por seguidor obcecado, parou momentaneamente à porta da florista que antecedia o seu prédio, como se se concentrasse nas plantas expostas na rua. Quando arrancou de novo, já não a viu em lado algum.
Quatro passos depois abriu a porta do prédio e, de imediato, a do correio. Sem nada para recolher avançou para o elevador reencontrando aí a ruiva de pele branca à espera da cabina do ascensor. 
Olharam-se e sorriram, retribuindo mutuamente da simpatia espontânea.
Não  resistiu e meteu conversa.
- Boa noite... Mora por aqui?
- Foi. Me mudei faz uma semana. Estou no 4.º C. E você?
- 5.º C. Já cá estou vai para dez anos. Bem-vinda!
- 'Brigada.
- José Farinha.
- Carol. - cantou com o seu sotaque brasileiro. - Muito prazer.

17.4.13

O Rosa

O silêncio transpirava insegurança, à medida que as horas corriam sem qualquer novidade e os três contemplavam as paredes esverdeadas da sala de espera. Chegaram quase em simultâneo apesar de virem de diferentes direcções. A mesma mensagem os trouxera, ansiosos, temerosos, angustiados. "O Rosa teve um acidente e está na urgência do hospital!"
É curioso como certas pessoas ficam conhecidas pelo apelido. O Rosa. Poucos saberão que o seu primeiro nome é Rodrigo, tão pouco usado é tal nome. Tirando a mãe e a irmã, ou o todos o conhecem pelo apelido ou pela longínqua alcunha de "Rato". O Rato Rosa. Ao que consta, desta feita terá roído a corda, acelerando demais, travando de menos e enfiando-se por um muro adentro desfazendo o pequeno carro que o levava para todo o lado.
Era um tipo curioso, o Rosa. Em miúdo, magrinho, com dentes grandes e orelhas largas, ganhou a alcunha à saída da primária. E manteve-a ao longo de toda a vida assim como manteve muitos dos amigos de então. Caso raro, o Rosa. Uma vez amigo, conseguia manter-se por perto, disponível, sempre disposto a dar.
Na Faculdade, numa das muitas noites de copos, começaram a gozar com o seu apelido, trocando-o pelo nome próprio feminino que representa. O certo é que rapidamente o apelido ganhou asas e, sem segundas intenções, passou a reinar. Era o Rosa, como outros eram o Costa, o Sousa, o Botelho. 
O Rosa.
Sempre calmo, seguro e sem problemas. O Rosa. Nas alturas de incerteza, insegurança, chegava lá e era o rochedo que punha tudo em ordem, tranquilizava as hostes e traçava o caminho. Nem valia a pena questionar. Era evidente que aquilo que o Rosa propunha estava correcto. Logo todos se perguntavam como não tinham visto tal solução, de tão evidente que era. O Rosa é que sabia. 
O Rosa não tinha problemas, não sofria, não hesitava. Ou se tal acontecia, ninguém dava por nada. O Rosa era mesmo um rochedo.
E agora estavam ali, os três, perdidos, ansiosos, temerosos, sem notícias do Rosa. Do Rato. Do seu rochedo. Ninguém poderia vir ali acalmá-los, pois a única pessoa capaz de o fazer jazia nos cuidados intensivos às mãos de médicos e enfermeiros que se desejavam competentes.

5.4.13

"Boa Noite"

Pousou a caixa e procurou as chaves no bolso das calças. Encontrou o telemóvel. Encontrou moedas. Encontrou uma pendisk. Encontrou ainda uma caneta com a tampa roída.
Procurou pelos bolsos do blusão. A chave do carro estava lá. Também a carteira, e a bolsa com os óculos escuros. Um pacote de lenços e mais uma caneta, esta quase nova.
Ali à porta, na rua, com a chuva a cair à volta da curta protecção que a pala do prédio oferecia, blasfemou contra todos os deuses por não encontrar as chaves. Abriu a caixa, não fosse dar-se o caso de ter posto lá dentro o porta-chaves com o mosquetão azul que lhe franquearia a entrada no lar, doce lar.
Nada à vista. Tinha que tirar alguns objectos para ver mais fundo. Começou pela caneca, pela moldura, pela agenda. Um a um depositou-os na soleira da porta. A escassa luz dos candeeiros da rua não o ajudavam na busca, agora que a noite caía mais cedo. Tirou para o lado o copo de barro torto e mal cozido que o filho mais velho lhe dera pelo dia do Pai, havia três anos. Também sacou a bola anti-stress que sempre que fora esmagada lhe dera mais tensão que aquela que deveria tirar. Quando puxou o Moleskine onde costumava escrever os ditos parvos que ouvia aos colegas de trabalho, ouviu o tilintar inconfundível das chaves que procurava. 
Franziu os olhos para ver melhor no escuro que cobria a caixa e pescou o mosquetão que tinha agarradas as desejadas chaves. Foi então que soou um sonoro estalido, quando a vizinha do andar de cima, provavelmente a mulher mais bonita do prédio, abriu a porta para sair e o encontrou ali, acocorado, com os seus magros pertences espalhados pelo chão, no final do dia em que perdera o emprego para o ver ocupado por um puto de 23 anos que todos julgavam ser melhor do que ele na arte de vender apólices. 
Ergueu os olhos e sorriu embaraçado, na esperança de receber um carinhoso apoio, mas a vizinha quase nem o viu. Soprou um sumido "boa noite" e avançou em cima dos saltos altos, que lhe prolongavam as esculpidas pernas, até ao Audi A5 que esperava por ela do outro lado da rua.

4.4.13

Ficas bem?

- Não levas mais nada?
- Não. O que não cabe nesta mala não é mais meu.
- Custa-me ver-te deixar para trás tanto de ti.
- Nada disto é parte de mim. Nós não somos as coisas que acumulamos.
- Mas podemos ser definidos por elas, não?
- É por isso que não quero levar mais nada. As resmas de livros, a música, os filmes, a roupa, os sapatos... objectos correntes, máquinas aparelhos, móveis. Procuramos uma casa para viver e a seguir enchêmo-la de coisas que apenas dificultam a nossa vida.
- Dificultam, não! Facilitam-na.
- Uma ilusão. Não quero levar mais nada. A minha existência passa a ser portátil. Caberá numa mala e mais nada. Para comprar um novo par de sapatos terei que deitar fora um dos que agora tenho. Reduzi ao mundo do virtual a leitura e a música. Os filmes, vê-los-ei e guardá-los-ei na memória. O resto são coisas que poderemos dispensar, pedir emprestado, alugar...
- E as tuas coisas que aqui ficam?
- São agora tuas.
- Serão sempre tuas. Eu ficarei mero depositário.
- Não, não contes com o meu regresso. Trata-as como tuas. Sê livre de as usar, estragar, dar, deitar fora. Não pretendo reclamá-las nunca mais.
- Vais dando notícias?
- Sim, parvalhão. Irei dando notícias. E quem sabe se daqui a uns anos não terei condições para te receber numas férias do outro lado do mundo...
- Se eu tiver dinheiro para ir até lá.
- Podes sempre vender umas coisas destas para comprar o bilhete.
- Tinha muito que vender e a preços abusivos.
- ...
- ...
- Ficas bem, maninho?
- Que remédio... Seguramente ficarei só.
- Não ficamos todos, alguma vez na vida?
- Desde que os pais se foram que só te tenho a ti. E agora partes para tão longe.
- Porque agora sei que posso partir e que te safarás. Estás lançado, maninho. E rapidamente encontrarás quem te faça companhia.
- E tu? 
- Do outro lado do mundo também há mulheres. Também haverá amigos. E posso sempre voltar.
- Podes, não podes?

3.4.13

Pertences

A mala estava junto à porta da rua, gorda e pesada. A seu lado repousava a velha mochila de campista, cheia de livros até mal fechar. Nas mãos tinha um saco com alguns CD e DVD.
Com uma enorme sensação de vazio percorreu as quatro divisões do pequeno apartamento, em busca do que pudesse ter esquecido.
No quarto despediu-se do  velho e psicadélico candeeiro da mesa de cabeceira que comprara na feira da ladra logo após a mudança para aquela casa. Fora comprado para ali, não fazia sentido levá-lo para qualquer outra paragem.
No corredor para a sala viu-se ao espelho e recordou o dia em que o encontraram na defunta Habitat, exposto com aquela marca na moldura, e negociaram a sua compra com um desconto de 40%.
Passou pela sala e percebeu que nunca mais ouviria música pela aparelhagem que já tinha desde os tempos de faculdade. Não era um som muito bom, mas o equalizador que se mexia no visor digital marcara os últimos vinte anos. Precisava esquecê-la, deixá-la para trás. Hoje a sua música cabia toda no iPod que tinha no bolso e se levava alguns CD era só porque tinham  uma história para contar ou uma dedicatória pessoal.
No pequeno espaço reservado à função de escritório passou os dedos pelo teclado do iMac e antecipou a compra do seu novo computador, a anos luz daquela máquina branca de agradável desenho.
Encaminhando-se para a saída passou ainda pela cozinha onde pegou na caneca lascada que o alimentava ao pequeno-almoço havia mais de uma década. Enfiou-a no saco, engoliu em seco e partiu.
Tanto tempo reunido em tão poucos pertences. 
Enquanto trancava a porta imaginava-se a comprar novas mobílias, novos aparelhos, a encher uma nova casa e suspirou de enfado.
Enfiou a chave na caixa do correio e partiu.
Será que ela conseguiria manter tudo o resto à sua volta?

2.4.13

Ciclos

Enfiou mais uma resma de papel no caixote do lixo sem sequer se dar ao trabalho de ver o que por lá estava. Nada do que ali tinha iria voltar a fazer falta. Já nada importava todo aquele manancial de informação recolhida durante os últimos quatro anos.
Antes de iniciar a limpeza assegurou-se que o papel que ali depositasse seria encaminhado para a destruidora. Não que tivesse algo a esconder... pelo contrário. Dificilmente se encontraria naquelas folhas algum tipo de informação privilegiada ou comprometedora, pois tudo o que por lá constava já fora partilhado e repartilhado vezes sem conta. Mas não poderia dar parte de fraco, e queria que o Moreira e o Magalhães pensassem que havia  por ali muito a ocultar. Queria ver os seus ares intrigados, ávidos de curiosidade, quando a D. Maria levasse o saco pesado para a máquina da cave.
Abriu mais gavetas e esvaziou-as. Num caixote enfiou lápis, canetas e outro material de economato que fora acumulando. Não deixaria nada para trás, ainda que soubesse que não voltaria a pegar naqueles objectos usados. Seguramente que no sítio para o qual ia lhe encheriam as gavetas com bens de primeira qualidade, a estrear. Mas era já seu hábito levar tudo consigo quando chegava ao fim. A tesoura, a fita cola, o agrafador, o furador, a régua, a borracha a estrear (em quatro anos nunca a usara; mas alguém ainda usa borracha?), tudo levaria. Seguramente a sua sobrinha aproveitá-los-ia.
O motorista já levara os caixotes com os livros. Quando entrasse no novo gabinete já lá estariam devidamente emprateleirados conforme deixara indicações. Faltava mesmo acabar com a papelada e com estes artigos "pessoais". Prosseguiu a tarefa até a sentir finalizada.
O último passo foi emalar o portátil. Mais uma máquina lá para casa, desactualizada (velhíssima, com os seus quatro anos), que encontraria o seu lugar na estante do escritório até descobrir a quem o entregar.
Gostava destas mudanças. Pela renovação de tudo a que tinha direito, sem olharem a despesas... Mesmo durante a crise continuaram a tratá-lo bem... E sempre que o Governo mudava, lá ia para outras paragens. 
Nunca era uma despromoção. Também raramente era uma progressão. Era apenas mais uma mudança.

1.4.13

Saco azul

Vinte e oito anos, dois meses e doze dias.
Vinte oito anos, dois meses e doze dias. Arredondados para trinta e seis meses de indemnização. O ordenado de três anos a somar ao subsídio de desemprego. Com cinquenta anos de idade estava longe de poder aspirar à reforma. Com cinquenta anos de idade estava longe de poder encontrar emprego para as suas habilitações.
Vinte e oito anos a tratar dos salários dos colegas. Chegaram a ser quase seiscentos, nos anos áureos da fábrica. Todos os dias saíam dezenas de camiões carregados de mobília para correr as estradas de Norte a Sul.
Depois vieram as Moviflores. Depois vieram os Ikeas. Depois as pessoas deixaram de comprar as mobílias que a "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." produzia há mais de quarenta anos.
Ainda conhecera o Sr. Armindo. Quando fora contratado para a firma foi entrevistado por ele. Não havia quem admissão sem passar pelo seu gabinete e ter uma conversa de um bom quarto de hora. Do chefe ao aprendiz. Todos iam conhecer o patrão, dar-se a conhecer e ouvir as regras fundamentais da empresa. "Aqui somos uma família"; "Quando um de nós tem problemas, todos têm problemas"; "Se alguém precisa de ajuda, alguém tem que ajudar"; "A firma são as pessoas que nela trabalham"; "Uma firma com pessoal descontente é uma firma doente".
Não se podia queixar, é certo, pois o homem levava à letra aquilo que afirmava. 
Qando morreu, levou ao cemitério uma romaria de mais de um milhar de pessoas, entre empregados de então, antigos empregados, os seus familiares, os parceiros de negócio bem como  qualquer pessoa lá da terra com um negócio, ciente que apenas existia porque os trabalhadores da "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." tinham dinheiro para gastar.
Quando morreu o Sr. Armindo deixou dois filhos educados segundo os seus padrões. Nunca puseram em causa o futuro da empresa, trabalharam em conjunto e honraram o património  e memória do pai. Mas cedo começaram a remar contra a maré. O virar do milénio marcou a entrada na espiral descendente do negócio.
Hoje, ao tentar vender a "família" a um investidor estrangeiro, os dois irmãos procuraram consultadoria e a resposta foi a mesma de sempre: se querem tornar o negócio apetecível, têm que emagrecer os custos, reduzir a massa salarial, os empregados. 
Chegara a sua vez. Apesar de tudo, preferia ir-se embora agora, negociando a indemnização com quem ainda tinha preocupações com os empregados e não apenas com as receitas da empresa. Ia embora ciente de que dali a dois ou três anos dificilmente estaria melhor. Ao sair, com mais uma vintena de colegas, deixava a "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." com cento e cinquenta funcionários. A ameaça de  maior automatização anunciava que aqueles números ainda iriam ser cortados, logo que os novos donos fizessem entrar o prometido capital para dar o "salto tecnológico" na fabricação de mobília. Falava-se de um contrato com a IKEA que garantiria o futuro da empresa.
A empresa poderia continuar. A família já não.
Enquanto juntava os seus pertences reparou na ironia extrema de os estar a enfiar num dos muito práticos sacos azuis da empresa sueca. Iria caber tudo num único saco. Vinte e oito anos num saco.
Olhou em volta e sentiu um nó na garganta por largar o local onde passou a maior parte da sua vida. Engoliu em seco e caminhou para a porta. A sua secretária vazia marcava o ponto de viragem. A partir de hoje havia mais postos de trabalho desocupados do que aqueles que ainda tinham alguém para pegar ao serviço.
Eram sete e meia da manhã, e partia antes que os antigos colegas chegassem. Não queria despedidas nem sentimentalismos. Haveria lugar para isso todos os dias quando se encontrassem na rua, já que a vila inteira falava, a toda a hora da grande empresa que os sustentara durante uma vida.
Virou costas ao escritório e caminhou cabisbaixo até ao seu carro, enfiando na bagageira o saco azul.