31.10.13

«Conta-me histórias, daquilo que eu não vi »*

Como era a vida antes dos "smartphones"?
De onde veio esta obsessão pela imagem a todo o momento impingida aos outros numa insistente ânsia pela partilha daquilo que cada um deveria viver em pleno em vez de se preocupar a mostrar que "esteve lá", "fez isto", "comeu ou bebeu aquilo"?
Vejam este vídeo. Larguem os telemóveis e preocupem-se em viver intensamente cada momento, com quem vos rodeia. Porque depois, sabem, em vez de mostrar fotos ou vídeos à distância, podem sempre contar as vossas experiências com..., ai como é que se diz?..., ah, sim, com palavras!

* Clã

19.10.13

Filme francês

Manhã de sábado, sem qualquer pressão. Não preciso de ir trabalhar, não tenho planos que me obriguem a olhar para o relógio, consegui dormir nove horas seguidas e estou descansado.
Na cozinha, ao preparar o pequeno almoço, deu-me para escolher Bach, Cello Suites para me fazerem companhia. Com tais harmonias como pano de fundo, sentei-me à mesa. Torradas, brioche, sumo, capuccino, a leitura das notícias, a espreitadela às capas dos jornais, tudo através da longa mão virtual da internet.
Lá fora, depois da borrasca da noite, o sol brilha com intensidade, reflectindo o seu brilho na água que ainda se agarra às árvores, aos telhados, ao chão. A passarada está contente e faz questão de anunciá-lo com trinados que conseguem sobrepor-se à música que escolhi.
A calma é tão reconfortante, como preocupante. Parece que, a qualquer momento, o realizador vai mostrar algo de errado que não se vê no enquadramento. Que o autor escreveu umas linhas que surpreenderão o espectador colocando o personagem em dificuldades que alimentarão a trama.
Para começar, fora de cena, uma enorme nuvem negra esconde agora o sol. A imagem radiosa foi substituída por uma tenebrosa paisagem cinzenta, escura, desagradável. Os pássaros calam-se. A tensão sobe. Bach já não soa tão repousante, antes contribuindo para o desconforto crescente.
Assim de repente, tive a sensação de que a minha vida dava um filme francês.

10.10.13

O peixe está bem dentro do aquário?

Na rádio passavam recordações dos anos oitenta, quando a vida era simples e todos os problemas se resumiam ao facto de ser adolescente. Quando deu por si, já a protecção do monitor findava o ciclo programado e os discos entravam em modo de repouso. Pela configuração do computador poderia concluir-se que havia mais de quinze minutos que não tocava no teclado ou no rato. Contudo, quem o visse, poderia pensar que estava muito dedicado ao trabalho que se acumulava na secretária.
Mas a verdade é que não estava ali. Não estava naquele gabinete envidraçado, como um aquário no qual o podiam ver nadar durante o dia sem conseguir esconder-se. Ao contrário do que acontece com a maioria dos peixes, nenhuma rocha estava ao seu dispor para nela se esconder. Dia após dia a privacidade era, cada vez mais, um sonho.
Por isso desenvolvera aquela capacidade de se ausentar sem sair do mesmo sítio, sem mostrar que não estava onde o corpo se mantinha firme frente ao posto de trabalho. Bastava um impuso, um estímulo, e partia.
Hoje fora da rádio que nascera a viagem. 
"Don't, don't you want me?
You know I can't believe it when I hear that you won't see me
Don't, don't you want me?
You know I don't believe you when you say that you don't need me"
Ouvir os Human League trouxe de volta toda a angústia da paixão por Ana Rosa, a colega do 8.º e 9.º ano que se sentava à sua frente e tanto iluminava os dias com os seus cabelos loiros, como os escurecia com a indiferença com que lhe falava, ou pior, o ignorava.
Ana Rosa, a miúda que se vestia como se fosse mais velha, que usava uns pequenos saltos e saias curtas enquanto as outras andavam de sabrinas ou ténis, com as omnipresentes calças de ganga ou aquelas horríveis saias axadrezadas abaixo do joelho. Ana Rosa que já pintava as unhas e usava um baton vermelho que conseguia torná-la ainda mais gira, sem a vulgarizar como acontecia com as outras colegas quando arriscavam usar maquilhagem.
Um dia, Ana Rosa começou a namorar com um tipo do décimo ano, que tinha uma banda. Seguia-o com a firmeza de uma admiradora incondicional e ele agarrava-a e beijava-a como se fosse sua propriedade. Quando saíam da escola montados na mota barulhenta, atraíndo a atenção de todos quantos estivessem nos patios, sentia crescer em si um ódio por todos os que tinham alguma fama. E lutava com o conflito interno de desejar aquela rapariga loira que se sentava à sua frente, e o ódio por ela andar com um tipo mais velho que tinha tudo o que queria.
A rádio mudou de música. Algo com menos recordações. O secundário acabou há trinta anos, a Ana Rosa é apenas uma recordação do passado, e a sua vida está aprisionada àquele aquário.
Ao recordar que o apelido dela era Antunes, lançou-se ao Google e ao Facebook. Ajudou a memória de que a banda do outro tipo tinha por nome "Janela Indiscreta".
Ficou surpreendido com a abundância de informação disponível. Descobriu que Ana Rosa casou com o tal tipo, Marco Pimm, com ascendentes em Inglaterra, o qual cedo deixou de tocar música para a passar a produzir. Viu fotografias da Ana Rosa, sempre bela, cada vez mais impressionante com o passar dos anos, dedicada à ilustração infantil.
Viu fotografias dos seus dois filhos, a mais velha já casada e também mãe. Encontrou um vídeo de má qualidade gravado por alguém que, com o seu telemóvel, não guardou a privacidade que lhe era exigida com a presença no evento. Neste, os dois irmãos fizeram o elogio fúnebre da mãe, que no ano passado perdera uma luta de anos contra vários e sucessivos tipos de cancro.
De repente, a viagem pela estrada das memórias tornou-se amarga e sentiu um nó na garganta. Ana Rosa já não estava viva. Apercebeu-se então de que tinha quarenta e cinco anos e para muitos isso é mais do que uma vida inteira. 
Olhou em volta para as pilhas de papel acumuladas na secretária, na cadeira à sua direita, no pequeno armário junto à porta. Na barra de ferramentas contou as quatro janelas excel abertas que o atropelaram com os milhares de números que diariamente preenchiam cada minuto de trabalho.
Levantou-se, passou pelos colegas de piso que o ignoraram, tal como Ana Rosa costumava fazer na escola secundária, e enfiou-se na casa de banho.
Sentado na sanita, chorou a morte de uma colega de escola que não via havia trinta anos.

6.10.13

O caos dos outros

Acabou o sumo de laranja e comeu, mastigando meticulosamente, dois biscoitos de maçã. Abriu a máquina finamente estilizada e introduziu a cápsula. Baixou a alavanca com firmeza e pressionou o botão. A água foi sugada, aquecida, e empurrada sob intensa pressão através do café moído que se continha naquela pequena embalagem. Para a chávena pingou um expresso cremoso que recolheu  e levou aos lábios. 
O cheiro, o sabor, tudo lhe passou despercebido, mesmo quando engoliu a cafeína escaldante. Aquilo que em tempos fora um acto de prazer transformou-se numa rotina, num acto imperativo sem o qual o encadeamento diário ficaria perturbado.
Depositou a chávena no lava loiça,  encheu-a de água, despejou-a e guardou-a na máquina de lavar. Largou então para a casa de banho onde iniciou outro ritual.
Sanita, lavatório, banheira, secador, lavatório, tudo em trinta minutos contados ao segundo.
No quarto, antes de se vestir, fez a cama que deixara a respirar. Cuidadosamente vestiu um dos cinco fatos cinzentos que tinha, a camisa branca, a gravata vermelha.
Antes de sair, verificou todas as janelas, todas as luzes, todos os aparelhos.
Trancou a porta de casa, desceu os três andares a pé, ignorando o elevador ruidoso, e atravessou a porta da rua. Quando assentou os dois pés no passeio endireitou-se e respirou fundo três vezes, de olhos fechados.
Estava pronto para mais um dia. Estava pronto para enfrentar pessoas. Dali a doze horas e meia, sem falta, estaria de volta ao seu mundo organizado. Sabia-o.
Agora, era a vez do  caos dos outros.

3.10.13

Sem dramas

Apesar do vento, apesar da chuva, o mar enrolava baixinho, sem dramas, calmo como um cordeiro. Sobre as águas escuras erguia-se uma curiosa neblina, fosse dos salpicos de cada gota de chuva, fosse da temperatura fria do ar, que igualmente condensava a cada expiração.
Já sentia as pernas  dormentes, não do frio mas da posição. Estava sentado na areia ensopada havia mais de duas horas. Duas horas a contemplar o mar a subir, tentando levar cada vez mais longe a pouca espuma que as suas ondas conseguiam fazer, tão fraquinhas estavam. Duas horas de constante enrolar, marulhar, paulatinamente cumprindo o seu devir.
As gaivotas nunca estiveram longe. Ora se lançavam para apanhar qualquer coisa na água, ora aterravam na areia para a debicar procurando com que encher o papo. As mais afoitas e curiosas avançavam para si, logo recuando de cada vez que as olhava de frente. 
Graças ao poderoso blusão e calças impermeáveis, a água da chuva escorria sem o molhar. Apenas os óculos exigiam constante atenção pois as gotas que neles se juntavam eram um permanente e irritante obstáculo. Já cansado de os limpar, manteve-os entre as mãos e olhou para a frente.
Abanou a cabeça perante o cenário desfocado, borrado, que encontrou. As rochas que o mar tentava cobrir eram agora umas formas difusas nas quais umas manchas brancas apareciam irregularmente, posto que nem a espuma das ondas lhe era perceptível. O navio que tinha contemplado minutos antes, imaginando para onde se dirigia, quem ia a bordo, a carga que transportava, os cheiros e rotinas, estava agora invisível. Até as gaivotas poderiam ser galinhas que não as veria de forma diferente.
Trinta anos antes, ali mesmo, naquela praia, à borda de água antes de mais um mergulho, gabara-se da sua visão. Num dia de Verão, com os seus inseparáveis amigos de então, tinham competido pelo melhor olhar. 
Pedro, que já então usava uns pesados óculos, e que os tinha deixado junto à toalha, riu-se e disse: "Eu vejo o mar. É o mar que está à nossa frente, não é?"
Carlos, que teimava em não usar óculos pois isso estragaria o seu estilo futebolista, cedeu quando não conseguiu ver umas bóias de pesca logo para além das rochas para as quais costumavam nadar todos os dias.
André dera mais luta. Os outros dois já gozavam, insinuando que estavam já a inventar o que eles nem conseguiam imaginar que estivessem a ver. Mas André concedeu-lhe a vitória com um minúsculo bote a motor que navegava para lá da linha dos navios que saíam do porto da capital.
Trinta anos, e tanto mudara. Carlos perdeu todo o estilo com a heroína, com os roubos, com a cadeia. Vira-o no final do Verão passado. Andrajoso, comido pelo veneno, devolvido à sociedade depois de mais cinco anos de reclusão. Ficou do outro lado da rua a olhar para ele, com um aperto na boca do estômago enquanto recordava tudo o que tinham partilhado na adolescência. Fingiu não o ver e ele nem se terá apercebido da sua hesitação.
Pedro tocava numa orquestra, numa banda de jazz, e às vezes até actuava sozinho. Ele e o seu clarinete. Por vezes ia vê-lo, noutras jantavam juntos. Já não usava óculos. Foi operado pelo André, cirurgião oftalmológico, que naquele dia longínquo dissera: "Deixa estar que um dia hei-de ver melhor que tu."

2.10.13

Lembras-te da Mónica?

-Lembras-te da Mónica?
-Quem? A gorda?
- Sim. A gorda.
- Se me lembro. Gozavam todos com ela, e eu tinha vergonha de asssumir que gostava da miúda.
- Olhando para trás, devo dizer-te que foste muito parvo.
- Se fui. Ela podia ser gorda, mas era bonita e divertida. E mais esperta que todas as outras naquele grupo de Verão.
- E como não gozavas com ela, garanto-te que tinha um fraquinho por ti.
- Disparate. Tínhamos quinze anos. Como podes saber se tinha um fraquinho por mim? Aquele puto borbulhento e magricela que evitava qualquer confronto para não correr riscos...
- Ora, em conversas. Outro dia encontrei a Xana. Pusemo-nos a falar desses tempos, a recordar a malta do grupo, sabes como é, e um nome associa o outro e logo após saber da Mónica a Xana perguntou por ti. Quando lhe respondi, disse que foi uma pena que não tivesses tido a coragem de te lançares à Mónica, pois ela estava caída por ti, mas muito insegura e sem coragem para te cortejar.
- Cortejar… as palavras que te lembras para um grupo de putos de quinze anos esparramados nas areias de S. Pedro.
- Podia simplesmente ter dito “para te galar”, mas acho que já não fica bem.
- E o que é feito da Mónica?
- Isso é o mais interessante. Por isso te perguntei se te lembravas dela.
- Sim?
- A Mónica, antes dos vinte anos, já tinha perdido metade do peso. Assim como o “Gordo”, o Fernando, que hoje é um careca trinca-espinhas, sabes?, a Mónica perdeu peso e tornou-se uma estampa.
- Estás a gozar.
- Não. Já sou amigo dela no Facebook e andei a ver as fotografias… Amigo, agora que está nos quarenta, a Mónica está melhor que nunca.
- Tens que me mostrar isso.
- Faço melhor do que mostrar…
- Então?
- Quando aceitou o meu pedido de amizade, ela perguntou imediatamente se sabia alguma coisa de ti. Eu respondi que continuavas a ser diferente, e que devias ser a única pessoa que conheço que não tem Facebook. Mas que iria pôr-vos em contacto.
- Não sei… isso não vai acabar bem. Se ela está assim tão bem, porque carga de água quererá sequer falar comigo?
- Porque, meu caro, tu não está tão mal como aquilo que tens a mania de ver ao espelho. E se continuas a encolher-te, vais acabar mal.
- Esquece isso.
- É difícil. Esta conversa é só para te avisar que dei-lhe o teu número. Vai ligar-te em breve.
- O que é que foste fazer, pá? Não sei…
- “Padreco”, cala-te. Já é altura de perderes a alcunha. Ela vai ligar-te e tu vais entrar nessa batalha. Vais fazer-te à vida. Aproveita. A Mónica está divorciada, sem filhos, é professora de biologia na Universidade, está gira como tudo... Tu continuas solteiro. As tuas relações anteriores são meras anedotas. És um veterinário sólido, bem instalado. Estás em forma e não és um monstro horrível. Sabes conversar, sabes rir, lês, vês filmes, cultivas-te, sais à noite… Caramba… hoje em dia isso é mais do que suficiente… não és um bêbado, um burlão, um parasita, sei lá que mais.
- Se tu achas…

- Vais atender o telefone. E depois…, depois diz-me qualquer coisa.

1.10.13

Flecha

A luz amarelada do final da tarde emprestava reflexos mágicos aos cromados e vermelhos vivos. Com carinho, as mãos percorreram as diversas peças, sentiando-as como braile. Longas inspirações inalaram o odor a borracha dos pneus, o óleo da corrente, a frieza do metal.
Aos quarenta anos sentia-se novamente com doze. Era tal e qual a sensação de prazer que recordava daquela manhã de sábado quando o seu pai trouxera a pasteleira vermelha que pedalou durante uma década. Nova em folha, vinda da única loja da terra que vendia bicicletas e na qual várias gerações sonharam com o seu modelo favorito.
Então tivera que encostar a bicicleta ao passeio para nela conseguir montar, tão grande que era aos seus olhos de menino. Hoje, a máquina que cuidadosamente acarinhava estava montada ao rigor do seu tamanho. Mas ainda não conseguira pedalar nela, apesar de todo o seu corpo gritar para o fazer. 
Saiu da loja empurrando-a e sentara-se logo ali, no primeiro banco de jardim que encontrara, contemplando o quadro encarnado, os cromados, as finas rodas, o selim de couro, igual ao dos punhos. 
Dificilmente voltaria a ter uma sensação como aquela, a de ter uma bicicleta nova, tão perfeita que o levasse ao passado, que o fizesse sonhar com o futuro. Por isso deixou-se estar, a saborear com o olhar, com o tacto. A antecipar a curta pedalada para casa, numa ânsia infantil. Os pneus, ainda virgens, chamavam o asfalto. Mas ele resistia.
Resistiu durante uma hora. Depois, com um cuidado religioso, ergueu-se, montou a bicicleta nova e sussurrou: "Flecha. Vais chamar-te Flecha."