28.12.14

Tudo pode mudar

A simples revisitação mental da lista das tarefas que assumira deixava-o inquieto, num misto de ansiedade para as concluir e de angústia por ter tanto para fazer. Ninguém iria conferir o seu desempenho. Não havia ninguém que lhe chamasse a atenção por ainda não ter reparado o candeeiro da sala, por não ter reparado o estore do quarto, por não ter enviado os papéis para a empresa gestora do condomínio, apesar de estarem pedidos há mais de três meses. Esse era o problema. Não havia ninguém.
Desde que Patrícia partira no primeiro dia das férias de Verão que deixara de ter a mesma energia, a mesma vontade para as coisas do dia-a-dia. Sozinho naquele apartamento sentia-se aprisionado a uma realidade sem sem sentido. Ao fim de tantos anos, não ter alguém a seu lado para comentar uma ideia, uma piada, uma observação deixava-o sem ânimo. Acordava depois de umas horas mal dormidas e arrastava-se de um lado para o outro, adiando tudo o que poderia fazer de útil (até escrevera a tal lista de tarefas sem qualquer resultado visível), saindo inúmeras vezes para umas voltas sem sentido até regressar a casa e vegetar em frente à televisão, perder-se nas páginas de livros que começava e não acabava, ou esgotar os minutos em jogos na consola, repetindo gestos e movimentos para os aperfeiçoar de nível para nível.
Ciente do caminho inútil no qual se enfiara, na sua cabeça constantemente procurava uma saída. E se a encontrava, não tinha o ânimo para a abraçar, antes se deixando ficar na rotina descabiada de dias sem sentido.

O Natal fora passado como um outro dia qualquer, e o Ano Novo ameaçava ter o mesmo destino. Porém, algo aconteceu naquele domingo. Quando acordou esqueceu-se de que o estore do quarto precisava de ser arranjado, que encravara havia dois meses e que era preferível não lhe mexer. Por isso, quando deu um esticão à fita para erguer a barreira que o separava da rua, esta rebentou com o esforço, deixando o plástico empilhar-se ruidosamente, aumentando agora o trabalho da sua recuperação. 
Foi então até à cozinha para ver o dia que o esperava lá fora. A luz estava rosada, enquanto o sol se erguia lá para os lados do rio e se reflectia na neve que tudo cobrira durante a noite. A neve.
Nunca vira nevar naquela cidade onde vivia já há mais de vinte anos. E a perfeição do fino manto que tudo pintava deixou-o sem fôlego durante uns segundos. Correu a trocar de roupa, pegou na máquina fotográfica e saíu para a rua animado por uma energia que o abandonara no Verão, levada por uma Patrícia que subitamente esquecera, para não mais o assombrar.
Meia-hora depois viu a perfeição na neve que cobria um banco de jardim onde alguém deixara na véspera uma rosa enfiada numa garrafa de cerveja. Aquele despojo da noite fora acariciado pela neve e pelo frio tornando-se numa escultura inimitável tanto mais que o sol ainda fraco depositava uns raios gentis no ângulo perfeito. À medida que se aproximava sentiu que mais alguém caminhava para o mesmo destino.
Ali da direita vinha uma mulher da sua idade, corada pelo frio, envolta no vapor da sua quente expiração, agarrada a uma câmara igualzinha à sua, até mesmo na objectiva, completamente concentrada naquele objecto original que repousava no banco do jardim.
Entreolharam-se, riram e falaram um com o outro de imediato ultrapassando o facto de serem completos desconhecidos. Estarem os dois ali, àquela hora madrugadora, com o mesmo material em busca das mesmas imagens era demasiado para ser uma mera coincidência.

Nos dias que se seguiram, completou a sua lista de tarefas. Chegou à noite de Ano Novo com tudo em dia, preparado para enfrentar os próximos doze meses como o glorioso início de uma nova fase na sua vida. Para começar, não iria estar só. O plano era ir à tradicional festa de rua, com muito fogo de artifício, gente e champanhe acompanhado da sua nova amiga fotógrafa. Juntos, unidos pela mesma paixão, iriam fotografar esta ilusão de que uma data tudo pode mudar. Acreditando nisso mesmo.
Que tudo pode mudar.

25.12.14

Toma lá, dá cá

Todos os anos a correria, a lista, a preocupação de ninguém esquecer, de não repetir a futilidade oferecida nos últimos anos, de não parecer desinteressado, vazio. Mas vazio era como, todos os anos, se sentia.
Reunia-se à mesa com familiares que não via desde há um ano atrás. Comia o mesmo prato de sempre, a mesma sobremesa, ouvia as mesmas piadas. Até os lugares se repetiam, ano após ano. 
Entalado entre o tio e o cunhado, com a prima e a sua filha à frente, via o tempo passar nas suas faces envelhecidas e não se cansava de pensar como ele próprio estaria velho. A adolescente loira e muito preocupada com o seu telemóvel duante toda a noite, já fora um anjinho adormecido, uma crente no Pai Natal, um poço de curiosidade. Hoje nem olhava para si, como se não existisse, evitando estabelecer contacto com o primo estranho, o que vivia sozinho, que tinha a casa cheia de livros, que fumava desalmadamente, que bebia demasiado.
O corrupio da meia-noite enchia a sala de papéis de embrulho rasgados e fitas desfeitas. As crianças, cada vez menos crentes e impressionáveis, à medida que os anos também por elas passavam, vibravam agora com sobrescritos carregados de notas e novidades electrónicas. Entre os mais velhos trocavam-se garrafas, perfumes,  peças de roupa, inutilidades domésticas. 
Para si nunca se enganavam. Várias garrafas de Jameson, algumas de vinho, uma ou outra caixa de charutos. Não arriscavam oferece-lhe livros, pois nunca saberiam o que queria ou o que ainda não tinha amontoado nas sete divisões do velho apartamento que herdara dos pais.
Como um vazio orgasmo desperdiçado numa fútil relação de uma única noite, a festa terminava rápido à volta de uma horrível chavena de chá. A sua irmã nunca soubera fazer um chá decente e insistia em apresentar bules com água fervida cheia de ervas passadas, todo o aroma perdido sabe-se lá para onde.
À saída, despedia-se com a certeza de que os veria apenas dali a um ano, excepto se a morte levasse mais alguém, houvesse um casamento, ou a família voltasse a crescer.
Entrava então no automóvel, escolhia um cd, e fazia-se à estrada. Nunca ia para casa. Por estradas secundárias, espantando o sono de Natal, conduzia até Vila Nova de Cerveira onde chegava a tempo de ver o sol nascer.
Aí chorava o casamento que nunca teve com a miúda ruiva que um emigrante bêbado ceifou no Verão de 1996 naquela mesma terra.
Entrava então na auto-estrada e acelerava de regresso a casa, violando todos os limites de velocidade e pensando se seria este ano que seria apanhado pela GNR. Ou se seria este ano que teria o acidente que poria fim àquela rotina de "toma lá, dá cá" que já não conseguia suportar.

7.12.14

Horas

Eram sete da manhã e já estava a pé. Uma comichão frenética corria os músculos e agitava as pernas que não se aguentavam debaixo do edredão. Virou-se para um lado, depois para outro, repetiu a manobra tantas vezes que se aborreceu e saltou da cama decidido.
Olhou desconsolado para o relógio. Durante a semana, todos os dias, quando o despertador tocava, sentia uma enorme tristeza por não poder dormir mais. Hoje, domingo, com o tempo todo a seu favor, não conseguia dormir.
Comeu, tomou banho, vestiu-se e foi à janela olhar o dia de sol que já estava anunciado. Céu azul, sem um farrapo de nuvem, sequer, e uma temperatura gélida. Sentiu o convite para passear, pegar na câmara e ir fotografar, ligar o automóvel e conduzir até à beira mar.

Dez minutos depois, vestido para sair para a rua, voltou para vale de lençóis. O calor do edredão rapidamente o aconchegou, relaxou e adormeceu. Recuperou as quatro horas de sono que se tinham perdido na semana de trabalho. E à tarde ainda foi lanchar numa esplanada para afugentar a angústia dos próximos cinco dias de papelada, chefias, colegas e depressão.