O patrão aproximou-se e perguntou, de forma bruta como era seu timbre:
«Atão o qu'é que se passáqui?»
Sem levantar os olhos, o funcionário respondeu:
«Nada.Não se passa nada.»
«Isso vejo eu. E é o qu'está errado no desenho. Tocá trabalhar, qu'é p'ra isso qu'eu lhe pago!»
«Não, não é.»
«Não?! Não?! Mas quem é que pensa qu'é? 'Tá armada ó pingarelho, a formiguinha, é?»
«Não. Aliás, se fosse formiguinha, bulia sem mais. O seu problema é esse. Eu não sou uma formiguinha. Sou alguém com espírito crítico, inteligência e capacidade de decisão. E não estou aqui para obedecer às suas ordens. É por isso que, neste momento, não se passa nada.»
«Mas ouça lá...» - o patrão começava a dar sinais de impaciência, sentindo-se desautorizado. O facto de toda a gente da sala estar em suspenso a ouvir aquela troca de palavras não o ajudava. - «São dez da manhã e você está a ler o jornal à frente de toda a gente em vez de fazer o seu trabalho? E ainda me questiona? Quer é ir pr'ó olho da rua, é o que quer.»
«Lamento, mas não estão reunidas as condições para fazer o meu trabalho. E não me parece que me vá por no meio da rua.» - sorriu perante o óbvio.
«Não? Qu'é que quer mais? Um cafézinho? Um bolinho? O rabinho lavadinho com água de malvas?» - sorrisos contidos ouviram-se nas imediações. O resto da empresa aguardava com expectativa o desenlace de tão caricato diálogo.
«Agora está a abusar, não?» - sorriu o funcionário alimentando o desconforto do patrão. - «Até lhe posso dizer que estou à espera que me dêem uma password para começar a mexer neste computador. Mas, por ora, não se passa nada.»
Sem perceber minimamente a falta da password, o patrão lançou-se em frente:
«Esqueceu-se da palavrinha, foi? É muita areia p'rá sua camionete?» - ouviram-se gargalhadas sem contenção. O funcionário decidiu rematar a conversa que já ia longa.
«Se me permite a pergunta... quem afinal pensa que sou?»
Um silêncio de dúvida agarrou-se ao patrão, baralhado, inseguro.
«Bom, é o... é o... é o Ferreira!» - disparou quando de soslaio viu a placa que em cima da secretária ostentava o nome do funcionário da contabilidade.
«Pois..., bem me parecia. Segundo me disseram, o senhor já despediu o Ferreira há três semanas...»
O patrão quis recordar-se, mas o vazio da sua memória caminhava ombro a ombro com a inteligência fugidia.
«Eu sou Funcionário da Inspecção-Geral de Finanças. Estou à espera da password para entrar no sistema e dar início à auditoria».