A simples revisitação mental da lista das tarefas que assumira deixava-o inquieto, num misto de ansiedade para as concluir e de angústia por ter tanto para fazer. Ninguém iria conferir o seu desempenho. Não havia ninguém que lhe chamasse a atenção por ainda não ter reparado o candeeiro da sala, por não ter reparado o estore do quarto, por não ter enviado os papéis para a empresa gestora do condomínio, apesar de estarem pedidos há mais de três meses. Esse era o problema. Não havia ninguém.
Desde que Patrícia partira no primeiro dia das férias de Verão que deixara de ter a mesma energia, a mesma vontade para as coisas do dia-a-dia. Sozinho naquele apartamento sentia-se aprisionado a uma realidade sem sem sentido. Ao fim de tantos anos, não ter alguém a seu lado para comentar uma ideia, uma piada, uma observação deixava-o sem ânimo. Acordava depois de umas horas mal dormidas e arrastava-se de um lado para o outro, adiando tudo o que poderia fazer de útil (até escrevera a tal lista de tarefas sem qualquer resultado visível), saindo inúmeras vezes para umas voltas sem sentido até regressar a casa e vegetar em frente à televisão, perder-se nas páginas de livros que começava e não acabava, ou esgotar os minutos em jogos na consola, repetindo gestos e movimentos para os aperfeiçoar de nível para nível.
Ciente do caminho inútil no qual se enfiara, na sua cabeça constantemente procurava uma saída. E se a encontrava, não tinha o ânimo para a abraçar, antes se deixando ficar na rotina descabiada de dias sem sentido.
O Natal fora passado como um outro dia qualquer, e o Ano Novo ameaçava ter o mesmo destino. Porém, algo aconteceu naquele domingo. Quando acordou esqueceu-se de que o estore do quarto precisava de ser arranjado, que encravara havia dois meses e que era preferível não lhe mexer. Por isso, quando deu um esticão à fita para erguer a barreira que o separava da rua, esta rebentou com o esforço, deixando o plástico empilhar-se ruidosamente, aumentando agora o trabalho da sua recuperação.
Foi então até à cozinha para ver o dia que o esperava lá fora. A luz estava rosada, enquanto o sol se erguia lá para os lados do rio e se reflectia na neve que tudo cobrira durante a noite. A neve.
Nunca vira nevar naquela cidade onde vivia já há mais de vinte anos. E a perfeição do fino manto que tudo pintava deixou-o sem fôlego durante uns segundos. Correu a trocar de roupa, pegou na máquina fotográfica e saíu para a rua animado por uma energia que o abandonara no Verão, levada por uma Patrícia que subitamente esquecera, para não mais o assombrar.
Meia-hora depois viu a perfeição na neve que cobria um banco de jardim onde alguém deixara na véspera uma rosa enfiada numa garrafa de cerveja. Aquele despojo da noite fora acariciado pela neve e pelo frio tornando-se numa escultura inimitável tanto mais que o sol ainda fraco depositava uns raios gentis no ângulo perfeito. À medida que se aproximava sentiu que mais alguém caminhava para o mesmo destino.
Ali da direita vinha uma mulher da sua idade, corada pelo frio, envolta no vapor da sua quente expiração, agarrada a uma câmara igualzinha à sua, até mesmo na objectiva, completamente concentrada naquele objecto original que repousava no banco do jardim.
Entreolharam-se, riram e falaram um com o outro de imediato ultrapassando o facto de serem completos desconhecidos. Estarem os dois ali, àquela hora madrugadora, com o mesmo material em busca das mesmas imagens era demasiado para ser uma mera coincidência.
Nos dias que se seguiram, completou a sua lista de tarefas. Chegou à noite de Ano Novo com tudo em dia, preparado para enfrentar os próximos doze meses como o glorioso início de uma nova fase na sua vida. Para começar, não iria estar só. O plano era ir à tradicional festa de rua, com muito fogo de artifício, gente e champanhe acompanhado da sua nova amiga fotógrafa. Juntos, unidos pela mesma paixão, iriam fotografar esta ilusão de que uma data tudo pode mudar. Acreditando nisso mesmo.
Que tudo pode mudar.