Todos os anos a correria, a lista, a preocupação de ninguém esquecer, de não repetir a futilidade oferecida nos últimos anos, de não parecer desinteressado, vazio. Mas vazio era como, todos os anos, se sentia.
Reunia-se à mesa com familiares que não via desde há um ano atrás. Comia o mesmo prato de sempre, a mesma sobremesa, ouvia as mesmas piadas. Até os lugares se repetiam, ano após ano.
Entalado entre o tio e o cunhado, com a prima e a sua filha à frente, via o tempo passar nas suas faces envelhecidas e não se cansava de pensar como ele próprio estaria velho. A adolescente loira e muito preocupada com o seu telemóvel duante toda a noite, já fora um anjinho adormecido, uma crente no Pai Natal, um poço de curiosidade. Hoje nem olhava para si, como se não existisse, evitando estabelecer contacto com o primo estranho, o que vivia sozinho, que tinha a casa cheia de livros, que fumava desalmadamente, que bebia demasiado.
O corrupio da meia-noite enchia a sala de papéis de embrulho rasgados e fitas desfeitas. As crianças, cada vez menos crentes e impressionáveis, à medida que os anos também por elas passavam, vibravam agora com sobrescritos carregados de notas e novidades electrónicas. Entre os mais velhos trocavam-se garrafas, perfumes, peças de roupa, inutilidades domésticas.
Para si nunca se enganavam. Várias garrafas de Jameson, algumas de vinho, uma ou outra caixa de charutos. Não arriscavam oferece-lhe livros, pois nunca saberiam o que queria ou o que ainda não tinha amontoado nas sete divisões do velho apartamento que herdara dos pais.
Como um vazio orgasmo desperdiçado numa fútil relação de uma única noite, a festa terminava rápido à volta de uma horrível chavena de chá. A sua irmã nunca soubera fazer um chá decente e insistia em apresentar bules com água fervida cheia de ervas passadas, todo o aroma perdido sabe-se lá para onde.
À saída, despedia-se com a certeza de que os veria apenas dali a um ano, excepto se a morte levasse mais alguém, houvesse um casamento, ou a família voltasse a crescer.
Entrava então no automóvel, escolhia um cd, e fazia-se à estrada. Nunca ia para casa. Por estradas secundárias, espantando o sono de Natal, conduzia até Vila Nova de Cerveira onde chegava a tempo de ver o sol nascer.
Aí chorava o casamento que nunca teve com a miúda ruiva que um emigrante bêbado ceifou no Verão de 1996 naquela mesma terra.
Entrava então na auto-estrada e acelerava de regresso a casa, violando todos os limites de velocidade e pensando se seria este ano que seria apanhado pela GNR. Ou se seria este ano que teria o acidente que poria fim àquela rotina de "toma lá, dá cá" que já não conseguia suportar.
Sem comentários:
Enviar um comentário