17.9.12

Meio milhão

Meio milhão de pessoas. Meio milhão…
Quinhentas mil almas reunidas num único espaço, indignadas, ultrajadas, fartas do rumo tomado pelas suas vidas. Gritam palavras de ordem, insultos, aproveitam para desabafar as amarguras que diariamente as oprimem. Sentem-se incomodadas e encontram no calor da multidão conforto, quanto mais não seja por perceberem que não estão sós, que muito mais gente vê o futuro pintado de negro a partir deste presente cada vez mais escuro.
Por isso falam para o lado e recebem compreensão do vizinho desconhecido que, com empatia, sorri e aproveita a primeira pausa para, também ele, desfiar o rosário das suas dificuldades. Ao ouvir estórias piores que a sua, o indivíduo encontra uma irracional satisfação quando confirma que há quem seja mais desafortunado e que para si olhará com um laivo de inveja.
Volta e meia interrompem-se as trocas de experiências para entoar um cântico comum. Nesses momentos, a vibração das vozes em uníssono faz tremer os espíritos mais empedernidos. Há nós nas gargantas e lágrimas ao canto do olho. Há uma convicção de que, todos juntos, não poderão ser detidos. Serão imparáveis. Uma maré viva. Um tsunami.
Tremam!, dizem no seu íntimo. Tremam!, e vergam-se à vontade desta multidão.
Rapidamente passam as horas.
Rapidamente a multidão desmobiliza. Gente não habituada às lides de rua queixa-se de dores nos pés, nas pernas, queixa-se de fome, de sede… falam em ir para casa tratar da janta, deitar os miúdos, amanhã vou almoçar a casa dos pais, eu vou ao hiper fazer compras, eu já combinei uma ida à praia que o tempo ainda está bom, há que aproveitar.
Num ápice, o magnífico caudal que inundou a praça reflui pelos inúmeros canais de saída, escoando as pessoas por ribeiros enfraquecidos.
Num ápice meio milhão transforma-se em cinco mil.
Aqueles que se vão ostentam um sorriso de dever cumprido, como se tivessem mudado o mundo.
Mas nada mudou. Tudo ficou na mesma.
Sem liderança, sem alternativas, sem soluções, sem propostas reais e não demagógicas, a multidão limitou-se a partilhar a catarse. A lavar a alma. Nada mais.
Fizeram as notícias da TV. As manchetes do jornal. Falaram para a rádio.
Mas a demonstração da sua força revelou igualmente a sua fraqueza. Por enquanto ainda são, apenas, meio milhão de pessoas num único espaço. Por enquanto o indivíduo ainda não se anulou em prol do colectivo, com poder próprio e desmedido. Enquanto não tiverem liderança, ou enquanto o desespero não fizer com que cada um deixe de pensar em si, a presença do indivíduo na multidão não será bastante. Bastante para uma luta, uma revolução, uma guerra.
Se a qualquer um dos que ali se encontra for dada a oportunidade de viver uma rica vida rica, ele de imediato abandonaria o seu posto deixando à sua sorte o inseparável amigo manifestante.
E o poder sabe isso.
Sabe que tem que medir a dor, o sacrifício, pois estes serão tolerados enquanto ainda houver esperança.
Andar nesse ténue equilíbrio será a arte do político. Saber ler a tensão do elástico para ter a certeza de que, enquanto o estica, não lhe vai rebentar na cara.

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