Meio milhão de pessoas. Meio milhão…
Quinhentas mil almas reunidas num único espaço, indignadas,
ultrajadas, fartas do rumo tomado pelas suas vidas. Gritam palavras de ordem,
insultos, aproveitam para desabafar as amarguras que diariamente as oprimem.
Sentem-se incomodadas e encontram no calor da multidão conforto, quanto mais
não seja por perceberem que não estão sós, que muito mais gente vê o futuro
pintado de negro a partir deste presente cada vez mais escuro.
Por isso falam para o lado e recebem compreensão do vizinho
desconhecido que, com empatia, sorri e aproveita a primeira pausa para, também
ele, desfiar o rosário das suas dificuldades. Ao ouvir estórias piores que a
sua, o indivíduo encontra uma irracional satisfação quando confirma que há quem
seja mais desafortunado e que para si olhará com um laivo de inveja.
Volta e meia interrompem-se as trocas de experiências para
entoar um cântico comum. Nesses momentos, a vibração das vozes em uníssono faz
tremer os espíritos mais empedernidos. Há nós nas gargantas e lágrimas ao canto
do olho. Há uma convicção de que, todos juntos, não poderão ser detidos. Serão
imparáveis. Uma maré viva. Um tsunami.
Tremam!, dizem no seu íntimo. Tremam!, e vergam-se à vontade
desta multidão.
Rapidamente passam as horas.
Rapidamente a multidão desmobiliza. Gente não habituada às
lides de rua queixa-se de dores nos pés, nas pernas, queixa-se de fome, de sede…
falam em ir para casa tratar da janta, deitar os miúdos, amanhã vou almoçar a
casa dos pais, eu vou ao hiper fazer compras, eu já combinei uma ida à praia
que o tempo ainda está bom, há que aproveitar.
Num ápice, o magnífico caudal que inundou a praça reflui
pelos inúmeros canais de saída, escoando as pessoas por ribeiros enfraquecidos.
Num ápice meio milhão transforma-se em cinco mil.
Aqueles que se vão ostentam um sorriso de dever cumprido,
como se tivessem mudado o mundo.
Mas nada mudou. Tudo ficou na mesma.
Sem liderança, sem alternativas, sem soluções, sem propostas
reais e não demagógicas, a multidão limitou-se a partilhar a catarse. A lavar a
alma. Nada mais.
Fizeram as notícias da TV. As manchetes do jornal. Falaram
para a rádio.
Mas a demonstração da sua força revelou igualmente a sua
fraqueza. Por enquanto ainda são, apenas, meio milhão de pessoas num único
espaço. Por enquanto o indivíduo ainda não se anulou em prol do colectivo, com
poder próprio e desmedido. Enquanto não tiverem liderança, ou enquanto o
desespero não fizer com que cada um deixe de pensar em si, a presença do indivíduo
na multidão não será bastante. Bastante para uma luta, uma revolução, uma
guerra.
Se a qualquer um dos que ali se encontra for dada a
oportunidade de viver uma rica vida rica, ele de imediato abandonaria o seu
posto deixando à sua sorte o inseparável amigo manifestante.
E o poder sabe isso.
Sabe que tem que medir a dor, o sacrifício, pois estes serão
tolerados enquanto ainda houver esperança.
Andar nesse ténue equilíbrio será a arte do político. Saber
ler a tensão do elástico para ter a certeza de que, enquanto o estica, não lhe
vai rebentar na cara.
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