26.4.06

"O Edifício da Verdade" (22)


O elevador. Chama‑o. Espera. Espera. Desespera. Corre escadas abaixo. O choro da loira ouve‑se no prédio inteiro. Soa como se estivesse a ser sujeita a tratos de polé, agonizante. Descalço, e de tronco nu, sai para a chuva miudinha. Grita com o frio. Grita com o susto. Dentro do Mercedes, o seu perseguidor sorri. Foge para o outro lado. Vira, a esquina. Vê o Bairro Alto. Volta atrás, espreitando para a rua de onde saíra. Bairro Alto.
Pelo menos a chuva abrandou. Veste a t-shirt. Fica‑lhe pequena. Nas costas uma frase a vermelho: "I'm gay".
Era o Bairro Alto. Não havia dúvida. Vitor conhecia aquelas ruas de outros tempos, de outras aventuras. Mas, para não destoar do resto da noite, qualquer coisa estava diferente. Gente. Não havia ninguém na rua. A noite mantinha‑se, os candeeiros iluminavam espaçadamente as estreitas ruas de castanho vestidas. Mas não havia movimento. Não tinham bares, discotecas, pessoas... nem sequer carros... só chuva. Chuva fria, miudinha irritante. Chuva que molha sem se dar conta.
Vitor sentiu‑se atordoado, como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Como se já não fosse ele. Era isso. Vitor sentia­‑se outro. Aquilo não lhe estava a acontecer. Aquilo era com outro. Era um sonho, decerto.
Reiniciou a marcha. Sem destino. Limitou‑se a andar. Os pés gelados, descalços, a pisar as poças e o chão irregular. Ensopado até aos ossos. De uma entrada ouve a voz:
‑ Oh, encharcado, queres dar uma cambalhota?
‑ Como? ‑ virou‑se. Era sem sombra de dúvida uma mulher da vida, com uma proposta de mercado. O seu corpo por dinheiro. Cotação do dia, cinco contos.
‑ Vi que saiste da casa dela. Deves querer acabar o que começaste. Aliás, aquilo que julgaste ter começado.
‑ A proposta é tentadora...
‑ Anda... eu seco‑te. ‑ a prostituta era uma mulher baixa, loira, de formas arredondadas. Não era bonita. Mas tinha uns olhos quentes, meigos, daqueles nos quais apetece mergulhar.
‑ Não posso! Não tenho um centavo comigo. Fui assaltado.
‑ Então adeusinho. Não há cá borlas. ‑ e deu um passo atrás, voltando para a escuridão da qual saíra misteriosamente.
"Mercenária!"
Vitor seguiu o seu caminho aleatório, na esperança de acordar. Continuou por ruas sujas e gastas, pensativo, fechado em si. De um momento para o outro, lembrou‑se da sua luta contra a prostituição. Lembrou‑se de um dos seus livros mais vendidos em que deitava abaixo o mercado carnal. Lembrou‑se de ter feito questão de afirmar que nunca contribuiria para tal degradação.
Ainda não tinha cinco minutos que rejeitara uma proposta, só porque não tinha dinheiro. Se tivesse, decerto iria para a cama com ela. Só para foder.
E de um momento para o outro, deixou de se conhecer. De um momento para o outro, apercebeu‑se de que nada em si era certo. Nada do que julgara afirmado tinha valor. Vitor Cardoso não sabia quem era, como era, até onde era.
(continua)

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