‑ Isto é assim: se abandonares a materialidade, se te despojares do corpo, ganharás um conhecimento pleno, ficarás a saber tudo, tudo sobre tudo, a todo o tempo, sempre actualizado... mas nada poderás fazer para além de estudar; por outro lado, se optares por um conhecimento funcional, parcial, pouco a pouco irás descobrindo as coisas, não todas, mas algumas. Descobri‑las‑ás em ti, por ti, no teu corpo, na tua vida, na terra... e aí poderás marcar a diferença. Para os outros existes. A eles podes transmitir a tua mensagem.
A escolha não foi dificil.
‑ Prefiro o conhecimento parcial. Não sou pessoa para ficar a ver acontecer.
‑ Então, como estás no Edificio da Verdade, pergunta. Responder‑te‑ei na medida da tua escolha anterior.
Vitor fez uma pausa. Perguntar?! Havia tanta coisa que queria saber, coisas profundas. Sem saber porquê, foi começar por algo superficial, uma espécie de aquecimento, de apalpar o terreno em que se movia.
‑ Curiosidade trivial: porquê estas provas sensaboronas?
‑ As duas primeiras analisam a tua capacidade, para ver se poderias dar uso aos conhecimentos que porventura viesses a adquirir. A última revela o teu "eu", a tua sinceridade e posição face à Verdade.
‑ Já era tempo de as actualizar, não?
‑ Não! Elas são eternas. Os grandes génios da tua filosofia por elas passaram.
‑Onde estamos? ‑ Vitor tentava aprofundar o teor da conversa.
‑ Na tua imaginação.
‑ Então isto não existe?
‑ Não disse isso. Porque não há‑de a imaginação ser real? Ela é o motor do Homens.
‑ Então, o que está na minha imaginação existe?
‑ A dois níveis. Existe para ti e para aqueles a quem o transmitiste, nos livros por exemplo. E existe noutra realidade.
‑ Outra realidade? Estás a falar noutra dimensão?
‑ Porque não? Mas prefiro outra realidade.
‑ E essa "outra realidade" cruza‑se com a minha realidade? ‑ bebeu um gole da sua cerveja fresca, fixando os olhos da sua adorável interlocutora.
‑ Não achas que sim? Já o sentiste.
‑ Sílvio Cunha! ‑ o ar surpreso não transmitiu a excitação que sentiu ao ver esclarecido um enigma.
‑ Exactamente.
‑ Ele estava no mesmo plano que eu? ‑ Não era fácil compreender tudo aquilo. Sílvio Cunha, o temível perseguidor que o assolara nos últimos tempos, fora por si criado para uma das suas obras, onde funcionava como um alter‑ego, aquela parte que cada um de nós se recusa a assumir, da qual fugimos, impedindo um reencontro inevitável. E inevitável porque é parte de nós. O reencontro é permanente desde que dele tomemos conhecimento.
‑ Sim, porque tu quiseste.
‑ Eu quis? Se eu o quisesse, saberia da inutilidade de fugir dele, saberia das vantagens em me unir a ele.
‑ Nem sempre se pode saber o que se quer.
‑ Aí tens razão. Muitas vezes sinto‑me sem saber o que quero. Na volta nem quero nada.
‑ Querer. Queres sempre qualquer coisa. Podes não sabê‑lo ou descobri‑lo tarde demais. Mas queres. É isso que te faz andar. É isso que faz andar o Homem. Nem que seja acordar de manhã, ou deitar ao fim do dia, mas um Homem quer sempre alguma coisa. E acaba por ser o seu querer que determina a sua dimensão, o seu relevo entre iguais.
‑ Quem és tu?
‑ Isso cabe a ti descobrir.
‑ És Deus? Deus existe?
‑ Pfff ... Deus, Deusa... porquê algo tão abstracto, e ao mesmo tempo tão concretamente à medida dos Homens?
‑ Então não existe Deus?
‑ Não! Deus existe. Basta que o Homem o imagine, lhe dê forma e força. Já te disse que a imaginação é.
‑ Eu nunca acreditei em Deus. Nunca o consegui conceber.
‑ Então, para ti, Deus não existe. Existirá porventura outra coisa?
‑ Bem,... eu acredito na Natureza.
‑ Nesse caso, a Natureza é o teu deus.
Vitor parou um pouco para aclarar as ideias e beber um pouco mais da cerveja que, curiosamente, ainda enchia o copo. Voltou à carga:
‑ Foi para isto que eu cá vim?
‑ Não sei. És tu quem decide.
‑ Pode o Homem viver sem Deus?
‑ É dificil. Toda a gente acredita nalguma coisa que lhe é superior.
‑ Então, porque não é o mundo justo?
‑ Ah!, uma dúvida que te consome há já algum tempo. Vamos por partes. Quem fez o mundo?
‑ Deus?
‑ Enfim, para ti, digamos, a Natureza, certo? ‑ Vitor acenou afirmativamente com a cabeça. ‑ Mas quem é que age sobre o mundo?
‑ O Homem, principalmente.
‑ É o Homem perfeito?
‑ Não, longe disso.
‑ A Natureza, era obrigada a fazê‑lo perfeito?
‑ Bem..., imaginando a Natureza como Deus, e sendo a perfeição um sinónimo de Deus, se ela criasse algo perfeito estaria a criar outro Deus. Isto não é um contrasenso?
‑ Então a tua dúvida está respondida.
‑ Mas, e o mundo?
‑ Oh, mortal... Se o Homem não conseguir evoluir até à perfeição, é porque ficou pelo caminho. Não será o primeiro e certamente não será o último. Mas aí, a Natureza recomeça de novo. Ela tem todo o tempo que for preciso. Ela é o Tempo. Só que não a obriguem, independentemente do nome, a que seja perfeita, a que crie coisas perfeitas. A perfeição não está na mesma proporção do poder. A perfeição é relativa. Não é por a Natureza, ou Deus, ou Alah, Buda, Jeová, Mãe Terra, o que quer que seja, ser poderosa que é perfeita. Não te esqueças disso. ‑ acalmou o tom de voz, bebendo ela também um pouco de cerveja.
Um pequeno silêncio instalou‑se enquanto Vítor pensava sobre o que falar. A conversa sobre Deus não fora esclarecedora, pelo menos para o escritor, porém ficara com uma base de reflexão, um ponto de partida para ulteriores cogitações.
‑ Onde estive eu, nestes últimos e disconexos tempos?
‑ Perdido dentro de ti.
‑ Então, onde estou eu agora?
‑ Ainda dentro de ti, só que mais localizado, menos perdido, menos só.
‑ Por falar em só, porque não encontrei ainda o Amor?
‑ Porque o procuras.
‑ Como posso não procurar?
‑ Se não duvidares dele, acreditarás que ele te encontrará, mais tarde ou mais cedo. Na altura certa.
‑ Se não o procurar...
‑ Se não duvidares.
Nova pausa.
‑ Então, e a Amizade, também a procuro?
‑ Talvez... talvez tenhas aí mais sorte que no Amor. E não será a Amizade mais necessária, mais fundamental que o Amor?
‑ Eu já nem procuro amigos... Eu limito a minha luta a manter os amigos. E já são tão poucos...
‑ Não!... os amigos mantêm‑se independentemente de lutas. Não vão nem vêm como as ondas do mar. Esses amigos "iô‑iô" não são os amigos de que estamos a falar. Os que contam são aqueles que estão connosco, sempre que precisamos, sempre que precisam.
‑ Ah,... esses... Mas, para além do Diogo não tenho mais ninguém.
‑ Tens! Mas tens que lhes dar alguma hipótese, não? Ser mais tolerante, confiar um pouco.
‑ Mas eu não estou a ver mais ninguém...
‑ Quando regressares pensa nisso. Olha à tua volta. Tenta conviver com as pessoas.
‑ As pessoas. Sabes muito bem que as pessoas são o meu passatempo, são matéria prima. Eu adoro conhecer pessoas, gente nova.
‑ Não me digas que nesses conhecimentos todos não arranjas amigos?
‑ Digamos que me tornei calculista. Continuando a disfrutar do prazer que esses conhecimentos me proporcionam, vacinei‑me contra a falsidade. As pessoas são falsas. E detesto pessoas que se julgam senhoras da verdade, da razão. Por outro lado simpatizo com todos aqueles que estão em busca. Aqueles para quem a verdade está algures à espera de ser descoberta. Só esses são suficientemente interessantes. Só esses têm algo para receber e muito para dar. Só esses são gratificantes.
"Se um gajo não se julga merda por uma vez na vida, não pode evoluir. E a grande maioria nunca se julgou merda. Sempre foram uns iluminados. Iluminados de merda que vivem na escuridão. São poucos os oásis que descobrimos.
‑ São poucos, mas bons. E existem.
‑ Mas aí coloca‑se o problema das ilusões.
‑ Isso é outra história.
‑ Mas conhecer pessoas é um campo propício para as ilusões. E a grande maioria das ilusões conduz a desilusões. Nada acontece como nós prevemos. Somos rasteirados quando começamos a acelerar. Quando nos aproximamos, vemos as expectativas esfumarem‑se, arderem como uma caixa de fósforos. As ilusões conduzem às desilusões. Por isso deixei de as ter. Passei a dar‑me com as pessoas de forma diferente, distante, sem alimentar qualquer expectativa.
‑ Talvez por isso percas novos amigos.
‑ ...Mas é mais seguro assim.
‑ Acreditas nisso? Sentes‑te bem dessa maneira?
‑ Não! Nem assim consigo atingir a felicidade.
‑ Tu nunca conseguirás atingir a felicidade permanente. Ninguém consegue. Podes vir a ser alguém alegre ou triste, mas de resto... Terás é momentos de felicidade e outros de infelicidade, nada mais.
"Tem lógica.", pensou Vitor. Fez mais uma pausa. Bebeu um pouco da melhor cerveja que alguma vez provara. Olhou para as crianças que ao longe corriam pela relva, rindo... Gostava de crianças... Gostaria de ser criança. Como tudo era tão simples na ignorância de um ser infantil.
‑ O que é que eu quero?
‑ Pensa antes assim: o que é que te faz correr?
‑ Eu. ‑ respondeu após breve reflexão ‑ Só corro por mim, para mim. ‑ perante a passividade da bela mulher, continuou ‑ Sim, parece egoísmo. Mas não é. Não. Agora percebo. Por causa do que sou, daquilo que pretendo ser, de tudo o que defendo e acredito, enquanto corro por mim, cumpro valores como a Amizade, a Liberdade, a Dor. Valores que fazem parte de mim. Ao correr por mim, estou a defendê‑los. Isto não pode ser egoísmo, ou então o egoísmo não é negativo.
Olharam‑se profundamente. Um olhar quente, forte. Ela sorriu. Vitor percebeu a deixa.
‑ Voltarei cá?
‑ Sempre que preciso.
Aparentemente o tempo de antena acabara. O Edificio da Verdade fugiu, e Vitor passou a ser ele de novo. Caminhava pela areia, sentindo nas suas costas o CÉU e o INTERNO, e o pobre e velho casinhoto. Lá à frente viu o seu prédio. Entrou, subiu, sentou‑se na poltrona. Fechou os olhos e pensou.
A verdade, apesar de mais próxima, continuava longe. Pelos vistos teria que morrer para a atingir. Mas para isso há tempo. A Eternidade é tempo. Agora era altura de viver para o presente. A começar por pedir desculpa a quem merecia. Agora iria viver. Se não podia apagar o passado, lutaria pelo presente. Agora iria viver. E acreditar na Verdade. Agora ia
Viver.
(FIM)