20.1.04

LUZ


Brincando com a luz que via através do visor, escolheu a velocidade do disparo. A máquina, inteligente, compensou na abertura, proporcionando uma exposição equilibrada. Aproximou mais a imagem, rodando a lente e premiu o botão até ouvir o característico aviso sonoro, informando que estava focado. Seis dos sete pontos de focagem estavam activos, informava o visor.

Carregou no botão até ao fim, e ouviu o reconfortante som do prisma a ser recolhido, e do obturador, rapidamente, a permitir à luz queimar o negativo, nele moldando, fixando, eternizando o momento. Ouviu o filme ser enrolado ficando a máquina preparada para mais uma recolha de imagem.

Naquele filme, agora enrolado, estava guardada a prova manifesta que Deus existe. Só Deus, ser perfeito e omnipresente poderia proporcionar-lhe o espectáculo que presenciava, a luz que iluminava uma paleta extraordinária.

Do céu, azul por entre manchas de escuras nuvens, desciam raios de luz amarela de fim de tarde, sobre uma mar cheio de “carneiros”, batido pelo vento. Em terra, de um castanho avermelhado, poças de água reflectiam luz por entre a verdejante vida, coberta de pérolas pelos aguaceiros que frequente e insistentemente caíam a espaços de breves minutos.

Ao longe, a cidade do tamanho de uma vila, brilhava agora à luz do Sol primaveril, no seu branco sujo de água, de lama, de um Inverno que findara e ainda não permitira o tradicional rito de caiar os exteriores. O vidro de uma janela reflectia um raio mesmo na sua direcção, completando a composição fotográfica que se expunha qual revelação metafísica.

Sorriu.

Segundos depois, a água começou a tombar do céu em pingas grossas e teve que correr para o automóvel que ali perto por si esperava, descansando da longa viagem já percorrida. Com um enorme sentimento de calma interior, arrancou para a estrada, atacando as duas horas que lhe restavam de asfalto.

Dez anos depois aquela fotografia, ampliada e devidamente emoldurada, repousa à vista de todos no seu escritório. Quando lhe perguntam onde fica o lugar da luz misteriosa, diz “em lado algum e em todo o lado”. Não adianta mais explicações.

Para si, aquela imagem transporta-o para junto de Deus de forma mais eficaz que qualquer ida à missa. Aquele instante cristalizado quimicamente numa película, e revelado num pedaço de papel é a sua igreja, e a paz que o inunda quando o olha assegura a força que lhe permite continuar, sózinho, na casa vazia, onde outrora correu uma criança que, decerto, já o esqueceu, e chama pai a outro.

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