1.10.13

Flecha

A luz amarelada do final da tarde emprestava reflexos mágicos aos cromados e vermelhos vivos. Com carinho, as mãos percorreram as diversas peças, sentiando-as como braile. Longas inspirações inalaram o odor a borracha dos pneus, o óleo da corrente, a frieza do metal.
Aos quarenta anos sentia-se novamente com doze. Era tal e qual a sensação de prazer que recordava daquela manhã de sábado quando o seu pai trouxera a pasteleira vermelha que pedalou durante uma década. Nova em folha, vinda da única loja da terra que vendia bicicletas e na qual várias gerações sonharam com o seu modelo favorito.
Então tivera que encostar a bicicleta ao passeio para nela conseguir montar, tão grande que era aos seus olhos de menino. Hoje, a máquina que cuidadosamente acarinhava estava montada ao rigor do seu tamanho. Mas ainda não conseguira pedalar nela, apesar de todo o seu corpo gritar para o fazer. 
Saiu da loja empurrando-a e sentara-se logo ali, no primeiro banco de jardim que encontrara, contemplando o quadro encarnado, os cromados, as finas rodas, o selim de couro, igual ao dos punhos. 
Dificilmente voltaria a ter uma sensação como aquela, a de ter uma bicicleta nova, tão perfeita que o levasse ao passado, que o fizesse sonhar com o futuro. Por isso deixou-se estar, a saborear com o olhar, com o tacto. A antecipar a curta pedalada para casa, numa ânsia infantil. Os pneus, ainda virgens, chamavam o asfalto. Mas ele resistia.
Resistiu durante uma hora. Depois, com um cuidado religioso, ergueu-se, montou a bicicleta nova e sussurrou: "Flecha. Vais chamar-te Flecha."

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