3.10.13

Sem dramas

Apesar do vento, apesar da chuva, o mar enrolava baixinho, sem dramas, calmo como um cordeiro. Sobre as águas escuras erguia-se uma curiosa neblina, fosse dos salpicos de cada gota de chuva, fosse da temperatura fria do ar, que igualmente condensava a cada expiração.
Já sentia as pernas  dormentes, não do frio mas da posição. Estava sentado na areia ensopada havia mais de duas horas. Duas horas a contemplar o mar a subir, tentando levar cada vez mais longe a pouca espuma que as suas ondas conseguiam fazer, tão fraquinhas estavam. Duas horas de constante enrolar, marulhar, paulatinamente cumprindo o seu devir.
As gaivotas nunca estiveram longe. Ora se lançavam para apanhar qualquer coisa na água, ora aterravam na areia para a debicar procurando com que encher o papo. As mais afoitas e curiosas avançavam para si, logo recuando de cada vez que as olhava de frente. 
Graças ao poderoso blusão e calças impermeáveis, a água da chuva escorria sem o molhar. Apenas os óculos exigiam constante atenção pois as gotas que neles se juntavam eram um permanente e irritante obstáculo. Já cansado de os limpar, manteve-os entre as mãos e olhou para a frente.
Abanou a cabeça perante o cenário desfocado, borrado, que encontrou. As rochas que o mar tentava cobrir eram agora umas formas difusas nas quais umas manchas brancas apareciam irregularmente, posto que nem a espuma das ondas lhe era perceptível. O navio que tinha contemplado minutos antes, imaginando para onde se dirigia, quem ia a bordo, a carga que transportava, os cheiros e rotinas, estava agora invisível. Até as gaivotas poderiam ser galinhas que não as veria de forma diferente.
Trinta anos antes, ali mesmo, naquela praia, à borda de água antes de mais um mergulho, gabara-se da sua visão. Num dia de Verão, com os seus inseparáveis amigos de então, tinham competido pelo melhor olhar. 
Pedro, que já então usava uns pesados óculos, e que os tinha deixado junto à toalha, riu-se e disse: "Eu vejo o mar. É o mar que está à nossa frente, não é?"
Carlos, que teimava em não usar óculos pois isso estragaria o seu estilo futebolista, cedeu quando não conseguiu ver umas bóias de pesca logo para além das rochas para as quais costumavam nadar todos os dias.
André dera mais luta. Os outros dois já gozavam, insinuando que estavam já a inventar o que eles nem conseguiam imaginar que estivessem a ver. Mas André concedeu-lhe a vitória com um minúsculo bote a motor que navegava para lá da linha dos navios que saíam do porto da capital.
Trinta anos, e tanto mudara. Carlos perdeu todo o estilo com a heroína, com os roubos, com a cadeia. Vira-o no final do Verão passado. Andrajoso, comido pelo veneno, devolvido à sociedade depois de mais cinco anos de reclusão. Ficou do outro lado da rua a olhar para ele, com um aperto na boca do estômago enquanto recordava tudo o que tinham partilhado na adolescência. Fingiu não o ver e ele nem se terá apercebido da sua hesitação.
Pedro tocava numa orquestra, numa banda de jazz, e às vezes até actuava sozinho. Ele e o seu clarinete. Por vezes ia vê-lo, noutras jantavam juntos. Já não usava óculos. Foi operado pelo André, cirurgião oftalmológico, que naquele dia longínquo dissera: "Deixa estar que um dia hei-de ver melhor que tu."

1 comentário:

Ouriço-Cacheiro disse...

Bem vindos de novo oh belos contos!