Na rádio passavam recordações dos anos oitenta, quando a vida era simples e todos os problemas se resumiam ao facto de ser adolescente. Quando deu por si, já a protecção do monitor findava o ciclo programado e os discos entravam em modo de repouso. Pela configuração do computador poderia concluir-se que havia mais de quinze minutos que não tocava no teclado ou no rato. Contudo, quem o visse, poderia pensar que estava muito dedicado ao trabalho que se acumulava na secretária.
Mas a verdade é que não estava ali. Não estava naquele gabinete envidraçado, como um aquário no qual o podiam ver nadar durante o dia sem conseguir esconder-se. Ao contrário do que acontece com a maioria dos peixes, nenhuma rocha estava ao seu dispor para nela se esconder. Dia após dia a privacidade era, cada vez mais, um sonho.
Por isso desenvolvera aquela capacidade de se ausentar sem sair do mesmo sítio, sem mostrar que não estava onde o corpo se mantinha firme frente ao posto de trabalho. Bastava um impuso, um estímulo, e partia.
Hoje fora da rádio que nascera a viagem.
"Don't,
don't you want me?
You know I
can't believe it when I hear that you won't see me
Don't,
don't you want me?
You know I
don't believe you when you say that you don't need me"
Ouvir os Human League trouxe de volta toda a angústia da paixão por Ana Rosa, a colega do 8.º e 9.º ano que se sentava à sua frente e tanto iluminava os dias com os seus cabelos loiros, como os escurecia com a indiferença com que lhe falava, ou pior, o ignorava.
Ana Rosa, a miúda que se vestia como se fosse mais velha, que usava uns pequenos saltos e saias curtas enquanto as outras andavam de sabrinas ou ténis, com as omnipresentes calças de ganga ou aquelas horríveis saias axadrezadas abaixo do joelho. Ana Rosa que já pintava as unhas e usava um baton vermelho que conseguia torná-la ainda mais gira, sem a vulgarizar como acontecia com as outras colegas quando arriscavam usar maquilhagem.
Um dia, Ana Rosa começou a namorar com um tipo do décimo ano, que tinha uma banda. Seguia-o com a firmeza de uma admiradora incondicional e ele agarrava-a e beijava-a como se fosse sua propriedade. Quando saíam da escola montados na mota barulhenta, atraíndo a atenção de todos quantos estivessem nos patios, sentia crescer em si um ódio por todos os que tinham alguma fama. E lutava com o conflito interno de desejar aquela rapariga loira que se sentava à sua frente, e o ódio por ela andar com um tipo mais velho que tinha tudo o que queria.
A rádio mudou de música. Algo com menos recordações. O secundário acabou há trinta anos, a Ana Rosa é apenas uma recordação do passado, e a sua vida está aprisionada àquele aquário.
Ao recordar que o apelido dela era Antunes, lançou-se ao Google e ao Facebook. Ajudou a memória de que a banda do outro tipo tinha por nome "Janela Indiscreta".
Ficou surpreendido com a abundância de informação disponível. Descobriu que Ana Rosa casou com o tal tipo, Marco Pimm, com ascendentes em Inglaterra, o qual cedo deixou de tocar música para a passar a produzir. Viu fotografias da Ana Rosa, sempre bela, cada vez mais impressionante com o passar dos anos, dedicada à ilustração infantil.
Viu fotografias dos seus dois filhos, a mais velha já casada e também mãe. Encontrou um vídeo de má qualidade gravado por alguém que, com o seu telemóvel, não guardou a privacidade que lhe era exigida com a presença no evento. Neste, os dois irmãos fizeram o elogio fúnebre da mãe, que no ano passado perdera uma luta de anos contra vários e sucessivos tipos de cancro.
De repente, a viagem pela estrada das memórias tornou-se amarga e sentiu um nó na garganta. Ana Rosa já não estava viva. Apercebeu-se então de que tinha quarenta e cinco anos e para muitos isso é mais do que uma vida inteira.
Olhou em volta para as pilhas de papel acumuladas na secretária, na cadeira à sua direita, no pequeno armário junto à porta. Na barra de ferramentas contou as quatro janelas excel abertas que o atropelaram com os milhares de números que diariamente preenchiam cada minuto de trabalho.
Levantou-se, passou pelos colegas de piso que o ignoraram, tal como Ana Rosa costumava fazer na escola secundária, e enfiou-se na casa de banho.
Sentado na sanita, chorou a morte de uma colega de escola que não via havia trinta anos.
1 comentário:
há pessoas que nos marcam tanto que as amaremos para sempre mesmo que disso nem desconfiemos disso. Lindo!
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