5.1.06

"O Edifício da Verdade" (11)

A festa era informal. Demasiado informal. Foi organizada numa pequena discoteca de Lisboa para o efeito reservada. Segundo o convite que recebera, alguém fazia anos. Não sabia quem. Aliás, seria incapaz de reconhecer qualquer dos Junqueira. Eram apenas mais uns novos ricos sem cultura que a dado ponto, e com os “padrinhos” certos, lograram alcançar o estatuto que justificava o envio de convites a todos os desconhecidos famosos só na esperança de vir a aparecer com eles em asquerosas fotografias nas peganhentas e ocas colunas sociais. E, depois da aceitação, era espantosa a quantidade de pseudo figuras públicas que engoliam o engodo. Os nomes mais sonantes, garantia de publicidade, estavam omissos. Os da segunda liga enxameavam o espaço que tomaram como seu, apenas outra oportunidade para sair à noite sem gastar dinheiro em bebidas.
Vitor não se recordava de ter alguma vez alinhado num desses convites. Porém, aquela era a única hipótese na busca por Isabel, pelo que alinhou naquele autêntico tiro no escuro.
Abeirou‑se do gorila à porta que o olhou de soslaio enquanto fingia ler o convite. Vitor duvidava mesmo que ele conseguisse ler. Grunhiu esboçando um sorriso frio como o Pólo Norte, deixando‑o passar. Penetrou no odioso ambiente. Tinha tudo aquilo de que não gostava. Era mal iluminado por um jogo de luzes inócuo, sem objectivo. O ar, pesado, quente, abafado, fumarento... O som a que alguns chamavam música seria capaz de acordar mortos, de tão alta que jorrava nas pesadas colunas em cima das quais os mais carentes de atenção se exibiam.
Tão deslocado se sentiu que o primeiro passo foi em direcção ao bar. De uma assentada pediu dois vodkas com limão. Fez questão de que fosse apenas com limão, sem a estúpida e detestável dose de refrigerante. Absorveu o primeiro de um trago, sorrindo enquanto o sentia descer. Afastou‑se para um canto mais vazio com o outro copo entre as mãos suadas.
Não viu ninguém a quem dirigir uma palavra. Pelo contrário. Só lhe apeteceu erguer uma parede entre ele e todos os outros que, felizmente, pareciam ignorá‑lo. Apesar de o relógio apenas agora se aproximar das duas da manhã, já bastante gente estava tocada, pelo que havia muito que passara a fase de meter conversa. A idade média era extraordinariamente baixa, inundando o espaço com uma colorida multidão de jovens. O escritor sentiu‑se envelhecido.
Vieram‑lhe à ideia os aniversários passados. Como terminaram mal esses dias. Os últimos cinco tinham dado direito a outras tantas bebedeiras, tão desamparado, desesperado, se sentira então... Acabou a bebida e foi pedir outra dose igual.
Buscou a máquina do tabaco e extraíu um maço. Olhou-o como que hesitando no passo seguinte. Depois, esboçou um sorriso amarelo e afastou‑se para o seu canto. Acendeu mais um prego para o seu caixão, o que já raramente fazia. Foi então que a vislumbrou. Os olhares cruzaram‑se. Esperou que caminhasse até si. Beijou‑a ao de leve nos lábios.
‑ Vitor... quanto ao outro dia...
‑ Esquece!
‑ Não. Quero pedir‑te desculpa. Foi errado o que fiz. Ainda por cima depois as coisas não correram nada bem e...
‑ Aprendeste a lição? Se é que houve alguma?
‑Sim, isso sim. Desculpa. ‑ abraçou‑o e beijou‑o prolongadamente. Realmente, o beijo entre sóbrios é muito mais agradável, pensou.
Arranjaram uma mesa de canto onde começaram a falar. Tinham dado a mão e iam trocando carícias. Falaram de tudo um pouco e de nada em concreto. Vitor embalava no vodka e fumava continuamente. Isabel estava bem alegre. Volta e meia brincava com os seus cabelos loiros. Por vezes debruçava‑se sobre a mesa para ir roubar mais um beijo húmido.
Contaram, histórias do passado. Partilharam anedotas. Começaram a rir. A dada altura ela disse:
‑ Queres fumar uma broca?
‑ Tens aí?
‑ Um resto. Queres?
‑ Está bem. Já está feita?
‑ Não, vai fazê‑la à casa de banho, só para não dar bandeira. Mas fumamo‑la aqui à vontade.
‑ Dá cá.
Foi à casa de banho, lavou a cara com água fria, fechou‑se num dos compartimentos e enrolou. Não costumava fumar daquilo. Erva ainda consumia por razões de inspiração, mas hash “só para efeitos medicinais”, como costumava brincar. Agora, por exemplo, calhava bem um pouco de remédio.
Voltou para junto de Isabel. Acendeu o charro após um prolongado beijo. Continuaram nas anedotas, o subterfúgio da gargalhada e da conversa fácil. Esgotada a conversa esconderam-se no riso cada vez menos natural.
Retiraram‑se pouco depois, de taxi para Benfica. Vitor levou­‑a até ao apartamento e arrastou‑se com ela para o sofá. A irmã, com quem Isabel dividia a casa, estava fora.
Após o escritor os ter servido de vodka pura, envolveram‑se em jogos sensuais de múltipla exploração. Combinaram que ele dormiria ali, para não andar tocado na madrugada.
Já passava das cinco. Foi então que ela disse:
‑ É melhor irmos para a cama.
Ele levantou‑se devagar e mostrou intenções de lhe pegar ao colo. Ela recusou, sendo peremptória:
‑ Cada um para a sua.
Vitor não queria acreditar. Depois de tudo aquilo? Depois de o pôr naquele estado? De o aliciar a consigo passar a noite? Não se desmanchou:
‑ Está bem. Onde é que eu fico?
Ela conduziu‑o a um quarto, indicando‑lhe uma cama.
‑ Eu fico no quarto da minha irmã. ‑ disse ‑ Ficas bem?
‑ Sim. ‑ foi a lacónica resposta. Já estava a despir‑se para se deitar.
Isabel saiu. Uns minutos depois voltou. Encostada à porta inquiriu Vitor que se deitara por cima dos lençois, mãos atrás da cabeça.
‑ Ficas mesmo bem?
‑ Sim, não tenhas problemas.
‑ Eu poderia dormir contigo, mas nada acontecerá.
‑ Tu é que sabes.
‑ Queres que eu fique contigo?
‑ Tu é que sabes. – inconscientemente decidira assumir uma postura de adolescente amuado e nem se apercebia do ridículo da mesma.
Nova ausência. Voltou com óculos. Obviamente tirara as lentes de contacto sem as quais não deveria ver nada, a julgar pela grossura das lentes dos óculos. Despiu‑se lentamente. Primeiro a saia larga de padrão hippie, depois a blusa, seguida do soutien. Enfiou uma camisola. Deitou‑se agarrada a um Vitor de boxers e camisa vestido.
"Mas nada acontecerá." Seria ingenuidade? Ou pretendia iludir-se? É que dificilmente algo não aconteceria. Inexistia qualquer barreira moral ou de decência que inibisse o escritor, e se Isabel quisesse ser irredutível tivera a oportunidade para se retirar. Assim, pouco depois, e apesar de algumas reticências sem veemência por parte dela, ambos consumavam aquilo que durante horas tinham preparado.
Contudo, a dança dos corpos prolongou-se no tempo, sem entrega, sem ritmo, sem compatibilização ou sem emoção, apenas um repetir de actos mecânicos. Nunca o escritor se satisfez, nunca atingiu o clímax. Isabel parecia empenhada em conseguir agradar. Vitor cedo quis acabar a farsa, cedo quis chegar ao ponto em que lhe seria legítimo parar. Mas tudo parecia querer piorar as coisas.
A sua mente flutuou, perdida em pormenores. As horas no relógio sob o candeeiro. O quadro na cabeceira da cama. O padrão dos lençóis. Aqueles cabelos húmidos caídos sobre os lábios. “Vá lá, vem-te!”, ordenou o escritor a si próprio. E entre a preocupação do desempenho e a mente vogando em tudo o exterior ao sexo, via passarem os minutos, as horas sem saber como parar.
Foi pelas oito da manhã que, exaustos e suados, se quedaram sob as cobertas. Mas por pouco tempo. Vitor, inquieto, saíu da cama e foi para a casa de banho. Regressou largos minutos depois para começar a vestir‑se. Isabel nada disse. Deixou-se ficar ali deitada, nua, a olhar para ele. Parecia satisfeita, mas simultanemente ansiosa por mais. Que contradição. Ele não. Já vestido, por cortesia, despediu‑se com um beijo, uma carícia, partindo. O metro é já ali.
Vitor entrou na estação das Laranjeiras e deixou-se levar para casa. Intimamente, em silêncio, praguejava. Sentia-se estúpido.
(continua)

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