20.12.07

Conto de Natal

Lamentou não ter trazido as luvas ao sentir as mãos geladas que seguravam o guarda-chuva abanado pelo forte vento. O dia cinzento, chuvoso, frio desaconselhava caminhar pelas ruas excepto em caso de real necessidade, mas ele fazia-o porque nada mais tinha para fazer. Porque nada mais queria fazer.

Ao fim de meia-hora calcorreando as ruas alagadas, as calças encharcadas, os pés e mãos gelados, o nariz e as orelhas completamente insensíveis, chegou à Baixa da capital onde ainda muita gente corria da porta de uma loja para a porta de outra loja em busca do calor condicionado, onde o trânsito se entupia em tromboses rodoviárias, com condutores escudados por detrás de vidros fechados e aquecimentos ligados no máximo, buzinando impaciência.

As iluminações de Natal, este ano sem os exageros do passado, conferiam àquelas ruas uma alegria que não contagiava as pessoas. As suas expressões espelhavam intolerância, cansaço, obrigação, apagando qualquer traço da felicidade apregoada para a quadra.

Presentes eram comprados e embrulhados e papeis de cores garridas mas os olhos de quem pagava traduziam apenas a sensação de um dever cumprido, de uma obrigação descartada. O artigo não era escolhido pelo seu valor para o presenteado, mas pelo peso na carteira do ofertante, pela rapidez com que decidia “isto, e mais isto e mais aquilo, e estou despachado”. E de loja em loja carregavam sacos, exibiam cartões de crédito, acumulavam inutilidades e olhavam para o relógio calculando quando chegariam a casa.

Ele não acompanhava esta lufa-lufa natalícia e olhava com distanciamento para a azáfama de última hora como se fosse um extra-terrestre a fazer um trabalho de campo procurando perceber o que movia a espécie humana. Ele não comprara um único presente em 2007, porque não tinha ninguém a quem o ofertar. Pela primeira vez numa vida de quarenta anos nada sentia pela quadra natalícia. Nem sequer o stress que presenciava. Estava anestesiado pelo frio que corria o seu ser, por dentro e por fora.

Recordou anos passados, nos quais buscava as ofertas uma a uma, dedicando tempo e mil cuidados para que fossem mesmo ao encontro dos desejos daqueles que presenteava. O livro perfeito, a tecnologia mais indicada, a iguaria excêntrica e delicada para ser degustada em cerimonial de prazer, a entrada para o espectáculo que seria citado durante anos e anos como um dos melhores de sempre.

Recordou como aos poucos aqueles que queria junto a si no Natal se afastaram, por vontade própria ou pela própria vontade da Natureza. O seu pai, uns anos antes. A sua mãe, havia seis meses. Apesar da mágoa eram perdas previstas, estando ainda por descobrir o elixir da eterna juventude. O seu irmão mais velho estava longe, no Brasil, com a mulher e três filhos e não falava consigo. Cruzaram-se no funeral da mãe e a única coisa que lhe disse foi “Tratas tu de tudo ou precisas de ajuda?”. A resposta foi dada com um olhar de desdém e mais não disseram durante dois dias. O irmão estava morto desde que casara com a sua antiga namorada.

Este ano ficara finalmente só. Depois de se despedir da mãe perdeu a mulher que partiu sem se despedir. Um dia chegou a casa e viu o guarda-fatos vazio, a prateleira dos CD’s a meio. os livros entremeados por espaços que não existiam. Na casa de banho faltavam os seus cremes, pós, líquidos, tudo aquilo com que implicava diariamente e que só então viu que tanta falta lhe faziam. Nem um adeus, uma palavra, um telefonema. Fora tudo meticulosamente calculado, o telemóvel estava cancelado, os pais dela e os amigos comuns fechados em copas, apregoando uma ignorância que apenas traduzia que tinham escolhido um lado.

A festa de família que desde pequeno o excitara era agora um amargo vazio. Lembrar-se da bicicleta BMX, do computador ZX Spectrum, da aparelhagem Pioneer, que durante anos e anos foram os melhores presentes alguma vez recebidos pelo Natal, apenas aumentava a dor do vazio que agora sentia.

A espera pela meia-noite em casa dos avós, depois dos pais e dos tios, finalmente em sua casa, sempre precedida por uma ceia iluminada com velas colocadas em altos candelabros com mais de cem anos e que saltitavam de casa em casa conforme era decidido onde passar  o Natal, era um momento que ansiava todos os anos. Pouco ligava a passagens do ano, a carnavais ou outros que tanto. Era o Natal que esperava viver todos os anos, como idílio de que, pelo menos por uma vez no ano, tudo estava bem, quente e aconchegante, com sorrisos para aqueles que queria próximo de si.

Até 2007.

Parou frente à montra da pastelaria e viu empurrões desesperados para garantir os últimos bolos-rei, os últimos sonhos. Uma náusea abalou-o, virou costas e acelerou sem olhar, cruzando para o outro lado da rua.

Parar um autocarro da Carris que vai embalado a queimar os semáforos amarelos não é fácil. Especialmente quando, por um acaso, o motorista se deparou com um espaço livre suficiente para acelerar um pouco mais e criar a ilusão de que poderia recuperar algum do irrecuperável atraso que acumulara num urno de filas. Quando ele saltou para o asfalto a travagem desequilibrou os passageiros que iam em pé e dificilmente se seguraram. Ffoi atingido com uma pancada seca que o projectou vários metros para a frente da besta amarela.

Injuriado por muitos, amaldiçoado por muitos mais, que viram aumentar o engarrafamento e atrasar o regresso a casa, ficou no meio da estrada a aguardar o INEM que voou gritando pelo meio do trânsito para o socorrer. Ossos partidos, traumatismo craniano, escoriações deixaram-no no hospital por três dias.

E durante três dias não esteve sózinho. Partilharam consigo uma ceia que nem conseguiu comer, entregaram presentes e recebeu um inesperado livro com sudokus para preencher as horas vagas, estimaram-no e cuidaram de si. Pessoas que nunca vira, médicos e enfermeiros que estavam de serviço em vez de acompanharem as sua famílias e mesmo assim sorriam. Voluntários que preferiam estar ali à noite com uma palavra de apoio, um carinho, um presente para minorar a solidão de quem tinha que ficar no Hospital.

Nesses três dias percebeu que nunca ficaria só no Natal. Que sempre estaria disponível para, como voluntário, ir em busca de gente mais só do que ele, e juntos aquecerem uma noite que para si tanto significava. 

1 comentário:

r. disse...

Que giro, sabes que por acaso nestes 3 dias estive no hospital e ofereci-me como voluntária para distribuição de presentes para asemana!?!? bem ...que estranho...