ELAS
Elas eram duas. Não posso dizer que fossem bonitas. Não!, até poderiam ser caracterizadas de “feias”. Mas os seus corpos, não sendo muito vistosos, eram jeitosos. A loira, diga-se, até tinha umas pernas bem torneadas e um rabo firme, redondo, equilibrado. Por isso, quando caminhavam juntas, ouviam piropos, assobios, e muitos homens torciam o pescoço para as ver.
Eu também olhava, mas não era pelos seus atributos físicos. Havia muitas coisas que me atraíam a atenção, a começar pelo mistério que emanavam. E as semelhanças no estar, e no equipamento. Quando olhava para o lado via sair da tenda delas um fogão igual, uma frigideira igual, as mesmas sopas instantâneas e ementas, os guias do “Expresso”.
No campismo estas coisas notam-se. Somos vizinhos à força, por vezes muito próximos, e habituamo-nos às caras que nos rodeiam.
Encontrava-me naquele parque havia cinco dias, junto com a minha mulher, num pequeno igloo à beira do Rio Sabor instalado. Elas já lá estavam quando plantei as estacas no solo macio. Mas só as via ao pequeno-almoço e ao jantar. Nem as via chegar à noite para dormir.
Uma morena de nariz generoso. Uma loira-arruivada com sardas. Duas mulheres às quais, apesar da proximidade, apenas ouvi umas breves palavras. Mas reparei nas rotinas, na organização, na cumplicidade.
Nunca pensei que a cumplicidade viesse...
Ultimamente não consigo dormir muito. Nem nas férias. Desde há um ano para cá que acordo cedo e a cama me incomoda. Especialmente se a cama é um saco sobre o chão, deste separado por um centímetro de espuma.
Mas custava-me incomodar a mulher, por isso, às vezes com esforço, deixava-me ficar na tenda. Em casa é diferente. Sai-se da cama sem acordar o outro. Naquela tenda pequena era muito mais complicado.
No entanto, naquele dia, sentia que as águas exigiam seguir o seu livre curso e a fria humidade dificultava a sua manutenção no meu interior. Eram sete menos dez da manhã quando corri os fechos do igloo e saí para o nevoeiro que emergia das águas paradas da curva de rio.
Já era dia claro, uma vez que o mês era Agosto. Uma calma sentia-se no silêncio que nem a natureza perturbava. Não havia vento, não havia barulhos de pássaros, ou rãs, ou qualquer outra coisa.
Luz, nevoeiro, silêncio, frio.
Calcei as sandálias húmidas que, se ficassem ali mais uns dias teriam dado origem a uma “sandaleira” para florescer todas as Primaveras, e encaminhei-me para as instalações sanitárias.
Eram longe, e sabia que cheiravam mal. Passei pelo meio de várias tendas, subindo os socalcos por entre roncos e suspiros de quem dormia protegido por paredes de nylon e cordas esticadas.
Cheguei, aliviei-me e saí.
O sol das sete da manhã violara a neblina que em bancos se refugiara na superfície das águas de verde manchadas. Atrás de mim, a estrada silenciosa. À frente, o verde das copas, do rio. Por todo o lado os postes.
Já repararam que, para o interior, os postes são em forma de cruz? Pelo menos ali eram todos. Electricidade ou telefone: a mesma configuração. Dez metros em altura cruzados por um barrote onde os fios se acoitam.
Acreditem ou não, em todos os postes que a minha vista alcançava estava um homem pendurado, crucificado.
Vinte e três mortos, disseram os jornais. Vinte e três homens nus, crucificados, amordaçados e com os órgãos genitais escondidos no meio das pernas que se fechavam não deixando que para a frente viesse o que à frente pertencia.
Fiquei abismado, boquiaberto e chamei por ajuda, por alguém que avisasse alguém que avisasse a polícia.
O que custou mais foi voltar para a tenda, para contar à minha mulher e, enquanto corria os fechos, olhar para o lado e ver, à porta da tenda delas, um martelo e uma caixa de pregos de grandes dimensões, junto com um rolo usado de fita adesiva igual à que amordaçava os pendurados.
A polícia veio. Elas já não estavam na tenda. Tudo ficou para trás, excepto os guias do “Expresso”.
Ainda não as apanharam, já lá vão quatro meses.
E há tanto Portugal para conhecer, segundo os guias...