14.6.05

"Vidas" (17)

DESEJOS

Por detrás dos óculos escuros, sem mexer a cabeça, mirou de esguelha a mulher que se sentara à sua frente. Com cuidado, prazer e lentidão, absorveu o olhar esverdeado, o cabelo negro, a tez escura. Reteve aquele movimento da língua a humedecer os lábios, atiçando-lhes o fogo.
Julgando não ser notado, passeou pelo relevo exposto do seio redondo, circulou pelo umbigo e demorou-se nas coxas de ébano que a mini-mini-saia era incapaz de conter.
Ergueu os olhos enquanto, num gesto largo, rodou a cabeça cruzando o seu olhar com o dela. Aí se fixou. Durante segundos que demoraram horas, olhou no fundo daqueles discos de esmeralda e tentou sondar a mente de tão bela mulher.
Em vão.
*
Havia dois dias que a sua colega lhe falava muito afectuosamente. As palavras vinham sempre acompanhadas de gestos, de carícias, afagos. O olhar era quente. As palavras dúbias. “Ah!, como saber o que ela quer? Como seria bom tê-la. Mas como posso arriscar? Se ela me negar nem este calorzinho aproveito.”
*
No regresso a casa, aquela loira que quase todos os dias viaja na mesma carruagem. Já se olharam tantas vezes. Ele sabe, quase de certeza, que ela tem presente a sua existência. A forma como se olham deveria ser proibida. Porém, a angústia de não saber o que ela pensava deprimia-o e aconselhava-o ao silêncio.
*
À noite, ao deitar-se, revendo as mulheres que consigo se cruzavam, desejou: “Oh!, como gostava de ouvir aquilo que os outros pensam”.
*
Rotina. O despertador liga o rádio. Ouve as primeiras notícias do dia. Levanta-se, arranja-se, come. À janela da cozinha vê passar, lá fora, a caminho da escola, duas raparigas, quase mulheres: as saias curtas, as camisolas apertadas, os seios vibrantes... Sorriu por ter um início de dia tão prometedor.
No elevador viu a vizinha. Uma tipa magríssima, só ossos, cor pálida, pêlos por todo o lado. Enquanto desciam bufou e evitou olhá-la.
“Paneleiro! Se quisesses deixava que me comesses toda.”
A porta abriu-se e, enquanto saía, perguntava se seria verdade aquilo que ouvira. Como poderia a sua vizinha dizer aquilo? Até se sentia envergonhado.
Na rua, as pessoas estavam mais barulhentas que de costume. Um rumor cavo, oco, ouvia-se por todo o lado. Viu duas mulheres giras e mirou-as. Quando por si passaram ouviu distintamente: “Olha para este palhaço! A babar-se assim ainda escorrega.”
Só na estação se apercebeu. Ouvia os pensamentos de quem o rodeava. Com uma alegria ímpar sentou-se no comboio e mirou aquelas caras sombrias de quem vai para o matadouro. Mirou e ouviu:
“Hoje vou sair mais cedo... O chefe que se lixe.”
Outro:
“Se apanho o sacana que me riscou o carro...”
Aquela:
“Estou farta daquele gajo... hoje vou por tudo em pratos limpos...”
“...uma vez que não há marcadores seguros, deverão ser determinadas diferentes normas de acordo com os protocolos...”
“... alface, tomates..., e batatas, é isso, batatas para cozer.”
“...santificado seja o Vosso nome...”
“... Já me estreei, já me estreei, já não sou virgem... Eh, eh, eh!, tenho que contar isto a alguém”
“Espero que o picas não apareça antes de Oeiras, senão estou feito.”
“Cento e sessenta contos, menos trinta dá cento e trinta. Ora a prestação é de...”
*
Quanto menos queria, mais pensamentos ouvia. Já não necessitava de fixar-se nas pessoas para escutar. Os pensamentos delas é que se fixavam no seu consciente. O silêncio passou a ser uma miragem. A vida passou a ser vivida como se estivesse constantemente dentro de um estádio de futebol. Gritos, berros, gargalhadas, choro, dor.
* * *
Após dois dias de buscas, um barco de pesca da Trafaria recolheu o corpo que a Marinha procurava. Enquanto caía, vindo do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, ouviu trabalhadores a pensar na vida, agora que as obras estavam a acabar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tenho andado a ler aqui as "vidas".
Pensa publicar se é que já não o fizeste.
Bom fim de semana,
r.