Perdeu algum tempo a ajeitar os enfeites na árvore de Natal. Após a confusão da véspera, alguns tinham sido deslocados, outros mergulhado até às lages de tijoleira, outros ainda pendurados em figuras de equilíbrio precário e audacioso. Depois, estendeu na mesa uma toalha com motivos natalícios, alisando os vincos que o ferro de engomar aprimorara.
Da cozinha trouxe a loiça que milimetricamente dispôs: um prato, três copos, um talher de peixe, outro de carne, outro ainda para as sobremesas. Passou às iguarias. Do forno libertou um naco de carne perfumada que inundou ainda mais a casa ávida de agitação. O aroma manter-se-ia por muito tempo. Da grelha no fogão saiu uma divinal posta de bacalhau assado que se reuniu a umas deliciosas batatas na travessa reservada para o efeito. Com eficácia regou-os com o azeite quente e alho.
Levou tudo para a mesa. E regressou à cozinha de onde levou ainda uma mousse de chocolate, um bolo-rei, uma terrina de sonhos, outra de fatias douradas. Não faltaram as broas, nem as filhós. Não faltou igualmente o vinho, e o espumante que manteve no balde de gelo que lhe oferecera a mãe, quinze anos antes, durante os preparativos para o casamento que nunca se realizou.
Atiçou o lume na lareira que aquecia a sala. Contemplou o silêncio do negro exterior, numa altura em que quase toda a gente dava início à Consoada. Mudou o CD que rodava na aparelhagem, elegendo Louis Armstrong para a acompanhar na refeição. Sentou-se.
Enquanto olhava a comida à sua frente, a solidão atropelou-a, e um soluço encontrou na garganta o nó que a impedia de engolir. Encheu o copo e levou-o aos lábios. Decerto repetiria o gesto muitas vezes, durante aquela noite.
Por cima da poderosa voz que a alta fidelidade reproduzia, ouviu gritos. Gritos de dor, de raiva, de ódio, de incompreensão... Mais uma vez os seus vizinhos bulhavam, tornando a noite de Natal igual a tantas outras.
Por momentos, preferiu ser a sua vizinha, estar a ser espancada, só para ter a certeza que alguém sabia que existia, e que não era um mero avatar.
Chegou a casa já alegre. O lanche de Natal na Companhia tinha sido melhor que o habitual, e depois ainda fora celebrar com os colegas mais íntimos, aqueles com quem, na marisqueira, discutia o futebol e as gajas. Mas a desgraçada da mulher só lhe infernizava o juízo.
- Bonito estado, o teu. - foram as primeiras palavras que ouviu assim que pôs pé em casa.
- ‘Qu’é, que queres? Um homem já não pode ir celebrar o Natal com os amigos?
- Vai tomar um banho e vestir-te em condições. Os teus pais devem estar a chegar e os meus saíram agora de casa.
Resmungou qualquer coisa e encaminhou-se para o quarto. A mulher recolheu ao “seu lugar natural” como costumava dizer, a fim de verificar o andamento da ceia. Ele inverteu a marcha e rumou à sala. Abandonou-se no sofá, começando a passar pelos canais todos da TV Cabo. Quarenta e tal canais, incluindo os pagos e quase todos a dar imagens de Natal. Já não podia ver neve, estrelas, bolas, vermelho, verde... por falar em vermelho e verde, estava a dar uma retrospectiva da carreira dos clubes portugueses nas competições Europeias. Ficou a ver.
- Então não foste tomar banho?
- Deixa-me!, chata.
- Chata?!, eu? Oh meu grande lanzão!, tu não comeces a armar-te em parvo!
O tom de voz passou de imediato aos gritos com que acostumaram a vizinhança.
- Vai p’rá cozinha, galinha.
- Levanta-te imediatamente e não faças fitas hoje.
- Deixa-me, estou a ver a bola.
Ela agarrou-lhe um braço e tentou erguê-lo. Com a outra mão ele esbofeteou-a. Um grito agudo e a mulher caiu no chão. Enquanto ele a erguia para lhe bater mais, ela pensou na vizinha que nunca se casara e que decerto viveria feliz por não ter quem a maltratasse assim.
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