19.4.13

Carol

Abriu pesadamente os olhos, ainda o despertador não tinha ligado o rádio. O corpo antecipava a rotina e, minutos antes da hora marcada, devolvia-o à vida. Ainda não conseguira focar com rigor na luz azulada que entrava pela janela, anunciando mais um dia frio, e já na sua mente se faziam ouvir as palavras que o iriam acompanhar durante a jornada. "Oh, Carol, I am but a fool / Darling, I love you tho' you treat me cruel"
Não sabia de onde vinha tal música, nem se lembrava da última vez que a escutara verdadeiramente. O certo é que ali estavam elas, aquelas palavras que iria repetir até à exaustão, coladas ao consciente, rasgando a sua presença e impondo-se pela força.
"Oh, Carol...", continuou a ouvir quando a rádio começou a emitir as notícias das sete da manhã.
"Oh, Carol...", trauteou no chuveiro, aproveitando a ressonância dos azulejos..
"Oh, Carol...", mastigou a torrada e sorveu o café.
Todo o dia, a toda a hora, lá estava Carol. Ouviu rádio, onde passaram mil e uma músicas, mas nenhuma superou os acordes que vibravam repetidamente e em silêncio. Mesmo sem querer, por vezes, deixava fugir em voz alta um "Oh, Carol...", tentando logo perceber se alguém dera por de tamanho deslize, logo tentando disfarçar.

No regresso a casa, já no autocarro, reparou na mulher magra, de sapatos vermelhos, que se sentava num dos bancos protegidos por um vidro, junto à porta da saída. Conseguiu perceber as suas pernas compridas, sensuais e demorou o olhar nos ombros expostos, de tez leitosa. Ruiva, amplos olhos cinzentos, sardas modestas. O cabelo comprido, apanhado, não escondia o estreito pescoço que inclinou quando os seus olhares se cruzaram. Embaraçado, desviou os olhos. Quando de novo focou nela, viu-a olhá-lo abertamente, sem reservas ou pudor.
Ao aproximar-se da saída, sentiu aquela impressionante mulher levantar-se e avançar até estar a seu lado, inundando-o com um perfume doce e frutado. Cedeu a passagem para que caminhasse à sua frente, aproveitando que os seus passos navegavam na mesma direcção para continuar a contemplar a forma ligeira, quase dançante, como se equilibrava nos saltos altos e progredia no passeio de calçada portuguesa.
"Oh, Carol..."
Mantendo o ritmo, seguiu-a. Ficou, contudo, embaraçado quando ela rodou a cabeça para trás e, entre duas passadas, o olhou directamente. Por não querer passar por seguidor obcecado, parou momentaneamente à porta da florista que antecedia o seu prédio, como se se concentrasse nas plantas expostas na rua. Quando arrancou de novo, já não a viu em lado algum.
Quatro passos depois abriu a porta do prédio e, de imediato, a do correio. Sem nada para recolher avançou para o elevador reencontrando aí a ruiva de pele branca à espera da cabina do ascensor. 
Olharam-se e sorriram, retribuindo mutuamente da simpatia espontânea.
Não  resistiu e meteu conversa.
- Boa noite... Mora por aqui?
- Foi. Me mudei faz uma semana. Estou no 4.º C. E você?
- 5.º C. Já cá estou vai para dez anos. Bem-vinda!
- 'Brigada.
- José Farinha.
- Carol. - cantou com o seu sotaque brasileiro. - Muito prazer.

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