1.4.13

Saco azul

Vinte e oito anos, dois meses e doze dias.
Vinte oito anos, dois meses e doze dias. Arredondados para trinta e seis meses de indemnização. O ordenado de três anos a somar ao subsídio de desemprego. Com cinquenta anos de idade estava longe de poder aspirar à reforma. Com cinquenta anos de idade estava longe de poder encontrar emprego para as suas habilitações.
Vinte e oito anos a tratar dos salários dos colegas. Chegaram a ser quase seiscentos, nos anos áureos da fábrica. Todos os dias saíam dezenas de camiões carregados de mobília para correr as estradas de Norte a Sul.
Depois vieram as Moviflores. Depois vieram os Ikeas. Depois as pessoas deixaram de comprar as mobílias que a "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." produzia há mais de quarenta anos.
Ainda conhecera o Sr. Armindo. Quando fora contratado para a firma foi entrevistado por ele. Não havia quem admissão sem passar pelo seu gabinete e ter uma conversa de um bom quarto de hora. Do chefe ao aprendiz. Todos iam conhecer o patrão, dar-se a conhecer e ouvir as regras fundamentais da empresa. "Aqui somos uma família"; "Quando um de nós tem problemas, todos têm problemas"; "Se alguém precisa de ajuda, alguém tem que ajudar"; "A firma são as pessoas que nela trabalham"; "Uma firma com pessoal descontente é uma firma doente".
Não se podia queixar, é certo, pois o homem levava à letra aquilo que afirmava. 
Qando morreu, levou ao cemitério uma romaria de mais de um milhar de pessoas, entre empregados de então, antigos empregados, os seus familiares, os parceiros de negócio bem como  qualquer pessoa lá da terra com um negócio, ciente que apenas existia porque os trabalhadores da "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." tinham dinheiro para gastar.
Quando morreu o Sr. Armindo deixou dois filhos educados segundo os seus padrões. Nunca puseram em causa o futuro da empresa, trabalharam em conjunto e honraram o património  e memória do pai. Mas cedo começaram a remar contra a maré. O virar do milénio marcou a entrada na espiral descendente do negócio.
Hoje, ao tentar vender a "família" a um investidor estrangeiro, os dois irmãos procuraram consultadoria e a resposta foi a mesma de sempre: se querem tornar o negócio apetecível, têm que emagrecer os custos, reduzir a massa salarial, os empregados. 
Chegara a sua vez. Apesar de tudo, preferia ir-se embora agora, negociando a indemnização com quem ainda tinha preocupações com os empregados e não apenas com as receitas da empresa. Ia embora ciente de que dali a dois ou três anos dificilmente estaria melhor. Ao sair, com mais uma vintena de colegas, deixava a "Armindo Oliveira e Filhos, Lda." com cento e cinquenta funcionários. A ameaça de  maior automatização anunciava que aqueles números ainda iriam ser cortados, logo que os novos donos fizessem entrar o prometido capital para dar o "salto tecnológico" na fabricação de mobília. Falava-se de um contrato com a IKEA que garantiria o futuro da empresa.
A empresa poderia continuar. A família já não.
Enquanto juntava os seus pertences reparou na ironia extrema de os estar a enfiar num dos muito práticos sacos azuis da empresa sueca. Iria caber tudo num único saco. Vinte e oito anos num saco.
Olhou em volta e sentiu um nó na garganta por largar o local onde passou a maior parte da sua vida. Engoliu em seco e caminhou para a porta. A sua secretária vazia marcava o ponto de viragem. A partir de hoje havia mais postos de trabalho desocupados do que aqueles que ainda tinham alguém para pegar ao serviço.
Eram sete e meia da manhã, e partia antes que os antigos colegas chegassem. Não queria despedidas nem sentimentalismos. Haveria lugar para isso todos os dias quando se encontrassem na rua, já que a vila inteira falava, a toda a hora da grande empresa que os sustentara durante uma vida.
Virou costas ao escritório e caminhou cabisbaixo até ao seu carro, enfiando na bagageira o saco azul.

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