25.4.13

O "Montanha"

Sabe-se agora que nunca foi conhecido pelo seu nome próprio. Num momento de infeliz falta de inspiração, os pais baptizaram-no de Plácido Sebastião Pequeno Casal.
Assim que começou a frequentar a escola, as outras crianças, com a sua cruel frontalidade, encontraram formas de deturpar os seus nomes e apelidos irritando-o com alcunhas depressivas. Nomes que se propagavam como fogo em mato seco e, de um dia para o outro, tinha a escola em uníssono a usar a última e ofensiva moda.
Contudo, teve sorte nos genes. Cresceu rapidamente, sempre à frente dos colegas, sempre maior, sempre mais forte. Vai daí, começou a cobrar o fim dessas alcunhas, oferecendo uns sopapos como garantia. Apesar de não poder combater a escola toda, tinha a inteligência de escolher os confrontos mais frutuosos. Os gozões, aqueles que arrastavam o peso da popularidade, eram as suas vítimas de eleição. Nada melhor que pôr um deles a chorar para transmitir a mensagem no recreio. 
Enfrentava, porém, um problema. Tanto esforço não seria compensado, ou credível, se começassem a tratá-lo por qualquer um dos seus nomes. Foi então que ele próprio escolheu a alcunha pela qual queria ser conhecido. E ainda não chegara à quarta classe já toda a gente sabia quem era o "Montanha". 
"Montanha".
De início estranhou, mas rapidamente viu a lógica e o poder do nome. Plácido estava sempre uns centímetros e uns quilos acima da média. Era grande. Era forte. Assustava. Nada melhor que "Montanha" para ser conhecido. E o único que se lembrou de o tratar por "Montanha de merda" foi ao dentista de urgência para reparar a perda de três dentes, dois deles definitivos.
O "Montanha" teve um percurso difícil. Tanto crescimento físico, tanto empenho no emprego da força, trouxeram-lhe limitações escolares lá pelo oitavo e nono anos durante os quais andou a marcar passo. Tinha dezasseis quando abandonou a escola sem sequer completar o nono ano. Mas o seu pai achou que estava mais do que na altura de por a trabalhar aquele corpo que já passava por vinte. O "Montanha" foi para a empresa de mudanças do tio e começou a dar-se com novos amigos, todos mais velhos e experientes. Amigos que o apresentaram ao haxixe e, mais tarde, à sua companheira cocaína.
Foi por essa altura que num círculo mais restrito o "Montanha" passou a ser conhecido pelo "Dedos". Tinha o irritante hábito de estalar os dedos constantemente. Tinha também o dom de, durante as mudanças, com subtis passes de mágica, fazer desaparecer este ou aquele bem que, depois, era rapidamente convertido em vício. Juntas as duas habilidades, a alcunha surgiu com naturalidade. 
Depois da tropa, onde o tratavam pelo apelido propiciando piadas às quais reagia a quente, ganhando com isso alguns dias de prisão disciplinar, "Montanha" regressou com uma nova paixão: as armas. Recusou voltar a trabalhar com o tio e juntou-se a um grupo com o qual ocupou uma casa desabitada. Os pais passaram a vê-lo apenas uma ou duas vezes por mês e, para seu desgosto, sempre que dele tinham notícias as mesmas estavam longe de ser boas.
A polícia tomou-o debaixo de olho e aos vinte e quatro o Juiz, apesar de ser a primeira condenação, não hesitou em dar-lhe três anos de prisão efectiva, impressionado que ficou com as fotografias da cara amassada da vítima e dos tiros disparados contra três polícias.
Cumpriu dois anos e regressou ao activo, permitindo-se  um novo nome. A montanha fumegava agora a duas mãos, graças ao par de pistolas Smith&Wesson de 9mm que encontrou ao assaltar a casa de um militar. Nunca mais as largou, assim como à nova alcunha. Por todo o lado se passou a ouvir falar do "Pistolas".
O "Pistolas" ganhou fama e a Polícia empenhou-se em fazer-lhe a folha. Acumulavam-se zaragatas, espancamentos, tiroteios... Ele e o seu grupo estavam cada vez mais eficazes a entrar em casas e limpar o recheio mais valioso. Se alguém aparecia pela frente não hesitavam em bater ou disparar.
Contudo, o "Pistolas" aprendera mais em dois anos de prisão que em onze anos de escola e trouxera um "mestrado" em artes de rua, estratégia e técnicas para não deixar provas. Tinha uma linha de escoamento dos bens adquiridos e nunca lidava directamente com os receptadores. O seu tamanho, força, fama e as duas pistolas desencorajavam os delatores.
Ainda assim, sabemos todos muito bem que não há nada que dure para sempre. A sorte do "Pistolas" acabou no dia em que pisou os calos ao Comandante Carriço, oficial da GNR que toda a gente chamava de "Carraça".
Longe de ser um exemplo de integridade, "Carraça" estava uns degraus acima na cadeia alimentar. E jogava tanto pelo lado da lei como pelo campo da clandestinidade. Por isso, no dia em que o "Pistolas" e o seu grupo foram à sua casa, limparam um ror de dinheiro e valores, e abateram o cão de guarda, fiel amigo de sete anos, "Carraça" decidiu acabar de vez com aquela rês. E, jurou-o, não iria dar trabalho aos Tribunais. Não iria ficar à espera que um Juiz aplicasse a lei e permitisse que, em poucos anos, aquele meliante retornasse às ruas.
Vai daí, "Carraça" pôs os seus homens da GNR em campo para investigar, acossar, encurralar o "Pistolas". E encarregou os seus outros homens para, no final, não deixarem o "Pistolas" ser apanhado pela Guarda. Pelo menos em condições de ser julgado.
Aconteceu tudo numa madrugada quente de Verão. "Pistolas" e seu grupo entraram numa vivenda lá para os lados de Azeitão, em plena Serra da Arrábida. À saída, nas estreitas estradas de terra, a GNR esperava o grupo. Houve tiros e perseguições e foram todos capturados. Todos excepto o "Pistolas" que conseguiu acelerar de encontro à barreira que lhe cortava o caminho e passar incólume aos vários tiros que contra si foram disparados. 
Seguindo pelas estradas costeiras, esclareceram as notícias que perdeu o controlo do veículo e caiu por uma falésia. Pelo menos essa foi a versão do Cabo e do Soldado da GNR que primeiro chegaram ao local.
Sem meios nem perícia para acompanhar o ritmo do fugitivo, tinham ficado para trás no velho jipe temendo mesmo perder definitivamente o rasto do "Pistolas". Mas à luz de apenas um farol de um Mitsubishi Pajero estava um homem que lhes fez sinal e se limitou a dizer: "Ia a passar e vi um carro a voar pela falésia abaixo".
Nenhuma das perguntas que o Soldado queria fazer, nomeadamente o porquê daquelas marcas de colisão no Mitsubishi, teve oportunidade de ser respondida pois o Cabo foi rápido a agradecer e dispensar a "testemunha". Nem sequer dela fez constar no relatório.  
Nos últimos momentos, quando as rodas giravam livres pelo ar, as pistolas calaram-se, os dedos partiram-se, a montanha ruiu. E Plácido Sebastião Pequeno Casal encontrou o seu fim no fundo de uma falésia, enquanto fugia da polícia, ganhando a imortalidade nas histórias que ainda hoje se contam sobre si.

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