27.2.06

Homicídios e a expiação da culpa

Depois dos Globos de Ouro, dos Bafta, e na aproximação aos Óscares, a febre do cinema continua. A minha febre, diga-se. De tal forma que este fim-de-semana fui ver mais dois dos nomeados, filmes recentes que têm sido alvo das mais diversas apreciações.
Comecei pelo
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de Steven Spielberg. Mudado o estilo, mantém-se a vontade de fazer filmes que marquem as consciências de quem os vê. Basta lembrar o Império do Sol, o A lista de Schindler ou Em Busca do Soldado Ryan, com diferentes olhares sobre uma realidade já muito batida no cinema. Nesses filmes senti algo de diferente e fui tocado pela visão do realizador.
Em Munich isso não aconteceu. O filme é, sem dúvida, bom tecnicamente. Mas há qualquer coisa que deixa a desejar. Em meu entender a abordagem ao tema deixa-se cair numa série de clichés, de ideias feitas. A parte da discussão do problema está encoberta pela acção, e quando emerge vem vestida de conversa de café. Não há profundidade. Não vi o filme como "tendencioso", para o lado israelita ou palestiniano, mas sim navegando em águas do politicamente correcto, evitando por isso explorar as fracturas temáticas relevantes.
Comparado com o Syriana, Munich deixa a desejar. E tinha tudo para ser melhor.
Ainda assim, recomenda-se o seu visionamento. Aliás, um filme tem que ser mesmo, mesmo mau para avisar que não vale a pena ir vê-lo. Naturalmente, não chegámos a tanto com o último filme de Spielberg.
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O meu comentário ao segundo filme vai ser parco. Porque o fui ver na sessão das 00h 30m, o que foi um erro. Porque o filme roda calmamente, com muita ponderação, a um passo lento nada estimulante para quem está com sono. E, por isso, não consegui dedicar a melhor atenção ao filme. No fim, saí com a sensação que havia falhas pelo ritmo demasiado lento, sendo que as pessoas que estavam comigo diziam o contrário, mostrando-se muito satisfeitas com o filme. Acho que quem estava lento era mesmo eu. Por isso, o melhor é aproveitaro KingKard e ir vê-lo de novo, para poder fazer justiça ao filme
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Pensando bem, a dor do escritor que se propõe romancear uma realidade, à qual se une emocionalmente e que nunca mais termina para poder encerrar a obra está muito bem retratada. Mas, repito, é melhor não falar mais. Vejam por vós, que eu pretendo fazê-lo de novo.

24.2.06

Desafiado

Foi a Noite quem me lançou o repto.
Porém, desde já faço aqui a minha declaração de renúncia ao fenómeno das pirâmides, o que acontecerá neste caso. Recuso-me a colocar as "regras" do jogo e a desafiar mais cinco bloguistas (até porque não conheço os suficientes para tanto). Eu sou daqueles tipos que não reenvia mensagens, não entra em pirâmides, ou seja, não perpetua as iniciativas, sejam elas maldosas ou inocentes de um desconhecido com tempo a mais. Um desafio como este teria, normalmente, um único destino: o lixo, o vazio.
Contudo, a sua proveniência merece respeito e deixa-me algo irrequieto. Depois de ler os estranhos hábitos da Noite, quis de imediato revelar os meus.
Por isso, respondo ao repto lançado desde Macau, desta forma:
Contar
Desde que não esteja distraído a conversar com alguém, ou a ver algo em particular, sou incapaz de subir umas escadas sem, a dado momento, começar a contar os degraus. Ainda que já o tenha feito vezes sem conta e saiba de cor o número de degraus existentes.
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Abrir
Quando compro o jornal detesto que alguém o comece a ler antes de mim. Ou que, se o fizer, me "desmonte" o jornal ou mo deixe desalinhado. Adoro pegar no jornal ainda todo composto, e retirar os suplementos, organizá-los e correr as páginas virgens. Tenho que ser eu a abrir o jornal.
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Acumular
De há algum tempo para cá apercebi-me que ando a acumular CDs, DVDs e livros sem os ler/ver (os CDs oiço-os logo, mas depois passam-se meses até pegar de novo no disco). Antigamente não era assim. O DVD era visto de imediato. O livro lido o mais rapidamente possível. O disco ouvido vezes sem conta, umas atrás das outras. Agora sinto uma compulsiva necessidade de comprar este ou aquele para os ter. Apenas para os ter. Hei-de ter tempo para os consumir, digo. Mas tenho livros e DVDs há já anos sem alguma vez os ter lido ou visto. E tenho CDs que não oiço há anos. Só porque os quero ter. Acumular.
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Marcar
Quando compro um livro, um CD ou um DVD tenho que, rapidamente, os marcar. Nome e data. A partir daí sei que é meu. E mais tarde olho e penso "Ena, já tenho este há tanto tempo".
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Comandar
Quando estou frente à televisão tenho que ter o comando comigo. Se estou na casa de outra pessoa fico eléctrico por não ter o domínio do comando. Em casa, à menor interrupção do programa que estou a ver, tenho que saltitar pelos canais, a uma velocidade furiosa, apenas para ver o que está a dar, ou o que estou a perder. Basta que a imagem apareça um ou dois segundos. Por isso, quando é outra pessoa a fazer o zapping, fico doido com a lentidão com que o faz, e o tempo perdido a olhar para programas que não me interessam e que, por isso, não poderão interessar a mais alguém.
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Aqui não ponho as regras do desafio.
Nem desafio mais alguém.
Não leves a mal, Noite. Pelo menos ficas a conhecer as minhas manias, encobertas pela designação de Hábitos Estranhos.

22.2.06

20.2.06

Dose dupla

Fazendo render o KingKard este fim de semana fui ver dois filmes (e só não fui ver o Münich porque me faltou tempo para aquelas três horas de filme).
Assim, na sexta-feira entrei na sala de cinema sem grandes expectativas no filme, apenas interessado em ocupar o fim da tarde com as coloridas imagens projectadas na tela, com acção q.b. e sem que me fosse exigido pensar muito.
Não só consegui isso como acabei surpreendido com este filme
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Walk the Line, do realizador James Mangold, cujo nome ouvi pela primeira vez.
Não sendo apreciador da música de Johnny Cash, nem sequer conhecendo pormenores da sua biografia, encarei o filme com a surpresa de não saber qual o seu fim, tanto mais que àquela hora ainda fora poupado pelas críticas dos jornais, cada vez mais reveladoras da emoção do desconhecido que se esconde em cada película.
A surpresa foi, por isso, agradável. A construção do filme, não linear cronologicamente, recorrendo a diversas analepses é fácil de seguir mas confere à obra uma consistência admirável. Como admiráveis são as interpretações de Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon, a brilhar num elenco seguro capaz de recriar a época louca da génese da música rock.
Não é um filme extraordinário. Mas está suficientemente acima da média para justificar a ida ao cinema. Depois de ter visto os outros filmes, aqueles de visionamento obrigatório.
E se conseguirem sair da sala sem vir a entoar uns versos como "it burns, burns, burns, the ring of fire", ou o "I shot a man in Reno, just to see him die" é porque, efectivamente, não gostara do espectáculo.
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Diferente foi a aposta de sábado. Agora navegamos em águas mais complicadas. Estamos perante a conspiração, os duplos sentidos, as duplas faces dos protagonistas, os que usam e os que são usados, as vítimas e os predadores, tudo com um móbil: o dinheiro. E como este não aparece do nada a sua fonte é o ouro negro em vias de extinção. Falo de Syriana.
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Obra de cariz marcadamente político, realizada pelo argumentista de "Trafic", Stephen Gaghan que repete o estilo da escrita na exposição do "tráfico" de influências que está por trás do mundo do petróleo. A história exige atenção do princípio ao fim, a fazer lembrar os filmes de espionagem britânicos, e está filmada com uma mão segura e um olhar que busca a beleza sem perder a crueza da realidade.
George Clooney mostra todos os seus dotes de grande actor, bem acompanhado que está por um elenco experiente que passeia por locais de filmagem soberbamente escolhidos.
A história não deixa perguntas por responder, não questiona a realidade. Exibe-a, escudada na ficção. No fundo sabemos que é assim que as coisas acontecem. Só que evitamos pensar nisso.
Este filme espelha bem o relevo que o cinema pode ter, sem alarmismos e sem se quedar pelo fantástico da imaginação. Recomendo-o vivamente. E, se não puderem ir vê-lo ao cinema, não deixem de o ver logo que o apanhem no cada vez mais rápido mercado do DVD.

16.2.06

"O Edifício da Verdade" (16)

Vitor avança a passo, tentando recuperar a respiração. Dirige-se para a música, um bater ritmado que vem da esquerda. Entra numa rua conhecida, num ambiente estranho. Duas casas iluminadas de néon estão abertas ao público. Daquela da direita, que mais parece uma árvore de Natal, sai o som de discoteca, com techno ou rave ou lá o que é essa merda que desconhece. Do lado esquerdo consegue ouvir algo mais calmo, quase um sussurro por baixo da barulhenta vizinhança. Vitor escolhe este estabelecimento.
Porta aberta, nenhum gorila à vista, avança a direito. Vestíbulo. A música é agora perfeitamente audível. Blues, do mais puro e genuíno. Buddy Guy, de certeza. Entra para a sala principal.
Choque!!! Foram dois os responsáveis pela preplexidade e pela sensação de desconforto. Não havia um único branco na sala. No ambiente fumarento só via negros bem dispostos. E no pequeno palco, um grupo tocava. Era tão parecido com Buddy Guy ... mas não era ele.
E de um momento para o outro, silêncio. Os músicos pararam, as conversas pararam, cem cabeças viraram-se para a entrada, onde pendiam duas pesadas e empoeiradas cortinas vermelhas. Duzentos olhos cravados nele. Duzentos olhos de um ambiente que só se espera encontrar em Chicago ou Memphis, ou outra terra americana.
Sentiu-se desconfortável, deslocado, a mais. Engoliu em seco.
Virou-se. Atrás de si um negro com a altura de “Magic” Johnson, a largura de Joe Frazer e a cara de King-Kong, fê-lo repensar a estratégia. Lembrou-se de que não tinha um tostão. As conversas voltaram. A música recomeçou. Don't know which way to go.
Sem perceber como ou porquê sentiu-se a caminhar até ao balcão onde encostou o estômago.
- Ora, então o que é que vai ser? - o empregado de meia idade era quase careca. Tinha um sorriso largo com o qual exibia o seu belo marfim. Antes de Vitor poder responder, continuou:
- Ah!, não quer nada. Pois, não tem dinheiro. Foi pena ter sido assaltado.
- Como ... Como é que sabe isso?
- Sei muitas coisas. Atrás do balcão vê-se muito e ouve-se ainda mais. Gostou das gémeas?
- Como gostei? Assaltam-me, agridem-me, quase me violam ...
- Quase?
- Sim, quase!
- Não o obrigaram a ... ?
- Não. Agarraram-me no coiso e, pimba!, K.O.
- Afinal sei muito, mas não sei tudo. É estranho ...
- O que é estranho?
‑ Algo que vai para além da sua compreensão. Aliás, até vai para além da minha. Você é diferente. Entra, no “Blue Condition”, não chega a ser violado pelas gémeas...
‑ O que é que se passa? Onde estou?
‑ Você ama a Isabel?
‑ Não, eu não a... ‑ pausa de estupefacção, ‑ Acho melhor ir embora.
‑ Não. Fique. Ainda não terminou a sua passagem por aqui.
‑ Aqui... o que é “aqui”?
‑ Por agora, “aqui” é apenas o “Blue Condition”. Joga poker?
‑ Sim. Mas só quando tenho dinheiro, sabe. Sem ele não costumam deixar‑me jogar.
‑ Venha dai.
Seguiu o negro de avental branco, deixando-se levar pelo insólito da sua condição. Aquela careca luzidia indicou a passagem para uma pequena sala separada por uma cortina. No momento em que entrou para um espaço com o ar ainda mais viciado, o guitarrista iniciou um fenomenal solo. A guitarra chorou a dôr que Vitor sentira nos últimos dias.
Uma mesa de pano verde. Quatro jogadores. Uma cadeira vazia. Negros de várias idades e vários níveis de vida. Quem dava as cartas tinha um chapéu chegado para trás e bastante ouro. Aneis, fios, pulseiras. Foi ele, o único que não fumava, quem falou:
‑ Já chegou atrasado. Era suposto ter entrado na mão anterior.
‑ Eu?! – disse o peixe de boca aberta.
‑ Sim. Mas agora não interessa. Sente‑se.
O escritor sentou‑se no lugar vago. Para não alimentar o equívoco foi logo anunciando:
‑ Eu não estou a perceber nada, mas desde já aviso que não tenho dinheiro para apostar.
‑ Eu sei. Acredita em almas? ‑ o interlocutor era o mesmo, perante o ar fechado e submisso dos outros três jogadores.
‑ Essa é boa. Que almas? Almas como?
‑ A ideia de alma eterna. A que Deus salva e o Diabo compra.
‑ Não! Não acredito.
‑ Então aposte a sua.
‑ Acabei de dizer que não acredito.
‑ Melhor. Se perder, perde nada.
‑ Não posso perder o que não tenho, é verdade. Mas não posso apostar o que não existe.
‑ Tem medo?
‑ Não. Só não faço algo que vá contra as minhas convicções.
‑ Enganar mulheres faz parte das suas convicções?
- …
- Deixe estar. Suponho que não aposta pois no seu íntimo acha que as almas podem existir, eu posso ser o Diabo a querer a sua, e o melhor a fazer é jogar pelo seguro.
- Não é nada disso. Se pusesse as coisas nesses termos, as probabilidades apontariam para uma condenação, independentemente de negócios com o Diabo.
- Então está bem. Vitor Cardoso não quer apostar a alma que não tem. Quer jogar o relógio de luxo que não funciona?
- O que está do outro lado?
- Algo que ganhei há pouco. - debaixo da mesa saíu uma carteira que Vitor sem esforço reconheceu como sendo a sua.
- E eles? - apontou para os outro três.
- Não jogam. - a voz veio das suas costas; era o barman.
- Feito.
- Venha um baralho novo. Quer baralhar ou dar?
- Tanto faz.
- Então, faça ambos, por favor.
Uma mulata loira, com uma curta mini-saia, trouxe as cartas.
Os collants negros faziam realçar as pernas de tal forma que Vitor se excitou só de a ver. Os seios apertados num generoso decote eram absolutamente grandes.
Relógio e carteira no meio da mesa. Vitor iniciou a tarefa de baralhar os rectângulos de plástico. As cartas estalaram sob os seus dedos, entrelaçando-se, misturando-se. Obra do acaso.
A loira voltou. Whisky para o negro. Vodka limão para ele.
- A bebida é por conta da casa. E este é para dar sorte. - inclinou-se sobre ele e beijou-o. Um beijo forte, lábios nos lábios. A língua quente encontrou a dele e enrolou-se. Suave e ardentemente, soltou-o. Saíu da sala. Vitor respirou fundo.
Acabou de misturar as cartas. Deu duas a cada um. Não viu as suas.
- Não é preciso parar. As apostas estão feitas ..
Assim era. Completou a distribuição. Levantou as suas cinco cartas. Lentamente foi descobrindo o jogo. Sete de ouros. Nove de espadas. Ás de copas. Sete de paus. Sete de copas. Com muita calma ergueu os olhos.
O adversário sorria largo. Reparou que tinha um dente de ouro. Vitor viu-o beber um trago do seu whisky.
‑ Eu quero uma! ‑ disse com voz átona, monocórdica.
‑ Eu duas. ‑ "Uma. Ele ou tem dois pares ou quase sequência. Eu estou a tentar o poquer. Vamos com calma". ‑ conteve a expressão facial e levantou a primeira, carta. Ás de espadas. MERDA! !, deitara fora outro ás. Respirou fundo e levantou a ponta da outra. Sete de espadas.
Uma alegria inundou‑o. O estômago gritou. As carnes sentiram a passagem de uma corrente de energia. Baixou a cabeça para que os seus olhos não anunciassem a vitória.
‑ Escusa de tentar esconder a alegria, senhor Vitor. Aqui não há lugar a blufs. Está, tudo apostado. Limite‑se a mostrar. Eu paguei para ver.
Vitor riu. Permitiu que os seus lábios rasgassem um sorriso de orelha a orelha. Uma a uma, baixou as suas cartas. Primeiro o ás.
‑ Poquer!
A expressão do negro permaneceu inalterada. Apenas disse, após uma pausa:
‑ Você é um tipo ponderado. Outros já teriam avançado gulosamente para o bolo. Fez bem em esperar.
De uma vez só, baixou o seu jogo. Copas, copas, copas, copas e mais copas. Flush. Vitor esquecera‑se da hipótese de flush.
Sentiu‑se derrotado, mas não regateou. Não fez figuras tristes. Bebeu o seu vodka de uma vez só e saiu. Chegou à rua num instante. Pelo caminho reconheceu os acordes que vinham do palco. Damn right I got the blues.
(continua)

13.2.06

Este Fim-de-Semana

Este fim de semana começou muito bem, na noite de 6ª feira. Aconteceu no CCB, e foi (só) o melhor concerto de Jazz a que já assisti. Falo do concerto de Brad Mehldau Trio, com três músicos de qualidade superior, aliás, insuperável. Um concerto com mais de duas horas e meia de música (três encores perante uma sala cheia) interpretada de forma sublime. Para quem estava lá à frente (cadeiras de orquestra) ver de perto as mãos, as expressões, toda a linguagem corporal daqueles senhores leva-me a dizer que não há melhor que aquilo. Falo de música fabulosa, de jazz de primeira linha.
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A produção do evento esteve a cargo da produtora Incubadora D'Artes, uma lufada de ar fresco na produção de concertos de jazz responsável pelos melhores que têm ocorrido desde 2004. Brad Mehldau foi o primeiro artista que trouxeram a Portugal, então na aula Magna. Foi considerado um dos melhores concertos desse ano de 2004 e, provavelmente por isso, o CCB esgotou num instante assim que este concerto foi posto à venda.
Que mais posso dizer? Apenas, Obrigado, Tiago Angelino.
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Sábado, aproveitando o maravilhoso dia que esteve, e vivendo em Lisboa, perto de tudo, fui passear a pé. Andei, e andei, e andei, gozando o sol e calor que lançou no esquecimento o frio e a neve de há dias. Acabei a ver este filme
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Brokeback Mountain, Ang Lee.
O filme é, sem dúvida, muito bom. Não pelo tema propagado aos sete ventos da homosexualidade, apenas uma necessidade para haver história. Um tema cada vez, e bem, menos chocante. O filme é muito bom pela excelente participação dos seus intervenientes. Ang Lee volta a mostrar a calma e sensibilidade que tem mostrado ao longo da sua filmografia, assentando o seu trabalho num cuidada e irrepreensível fotografia que nos transporta para aquele ambiente frio.
Depois, depois, o filme tem interpretações extraordinárias. Não só os principais Jake Gyllenhaal e Heath Ledger estão irrepreensíveis, como todos os outros actores secundários. O filme encanta por aquilo que não mostra, não diz, pelos silêncios e olhares que tudo revelam sem que seja preciso ser óbvio ou gratuito.
Acompanhar vinte martirizados anos daqueles dois personagens é algo que se faz com prazer, e justifica em pleno o preço dos bilhetes.
Já agora, sabiam que os cinemas da Medeia subiram o preço do bilhete para € 5,20? Está cada vez mais caro ir ver um filme, hem? Eu, por mim, continuo a beneficiar do KingKard. Assim, nem me apercebo de pagar o cinema e dá gozo ir à sala e não pagar o bilhete.
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Finalmente, acordo no domingo com a história dos "heróis" ingleses no Iraque.
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Quando vi as imagens na televisão, ao som dos masturbatórios comentários do naturalmente demente operador de câmara fiquei muito esclarecido.
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Há gente que nunca, mas mesmo nunca, deveria ser colocada numa posição de poder, actuando em grupo e de armas na mão. Infelizmente essa gente consegue ir para o exército e juntar-se para mostrar o seu melhor. Se tivessem ficado em Londres, provavelmente andavam a fazer o mesmo ao fim de semana durante os jogos de futebol. Só espero que os identifiquem e, assim a título de exemplo e de justiça, os ponham em prisão militar durante uns anitos.

9.2.06

"O Edifício da Verdade" (15)

Acordou. Com um arrepio. Era natural. Não tinha mais consigo o seu quente blusão de penas, e a noite continuava fria e húmida. O nevoeiro, porém, era muito menos denso, e já era possível ver até uma boa distância. E foi isso que o preocupou. Parecia estar no sítio em que fora assaltado, mas também parecia que não. Enquanto compunha as calças desapertadas analisou a sua situação.
Do lado esquerdo o rio continuava preguiçosamente. À direita, o jardim do Passeio Ribeirinho era o mesmo. Mas em frente não via o cais do ferry‑boat, nem sequer as bilheteiras, cafés e toda essa panóplia de construções. Para trás, árvores. Árvores?!, ali, junto ao Tejo? Árvores grandes, frondosas, num aglomerado florestal. Não seria agora, pela noite, que enveredaria por ali. Sentou‑se para pensar.
Passos. Vinham da floresta. Levantou‑se sem saber bem porquê. Medo. É isso. Vitor tem medo. E tudo porque não compreende onde está, como está, porque está.
Viu‑o. Surgiu do meio da nebelina, qual D. Sebastião, o Desejado. Apesar da distância, apesar das más condições de visibilidade, viu‑o tão claramente. Como se a imagem tivesse sido cuspida para o seu cérebro e lá tivesse ficado agarrada.
Viu‑o. Era um tipo magro, seco, estatura média... Cabelo escuro, ligeiramente encaracolado, penteado para trás. Sobrancelhas crespas sobre uns olhos verdes, lindos, irreais, frios... Nariz aquilino, barba por fazer sobre faces duras, salientando os ossos faciais. Era incrível como se apercebia daqueles pormenores todos... Vinha vestido com uma camisa preta e um casaco informal verde. Numa das lapelas deste, um pato dourado voava para o Inverno. Calças de ganga e sapatos clássicos de atacadores completavam o personagem.
Ritmo. Andava ritmadamente. A trajectória apontava, sem sombra de dúvida para o escritor. Os braços caídos ao longo do corpo, punhos fechados. O nevoeiro a seus pés. Uma expressão imperturbável, granítica. Lábios cerrados, olhos friamente inexpressivos. Uma expressão do Inferno.
Medo! O medo continuava. O facto de ter visto o homem tão claramente, quando ele estava tão longe, ainda o assustou mais. O coração acelerou. Um nó na garganta. As mãos suaram. Os olhos piscaram, na esperança de afastar a visão. A incapacidade de raciocínio. Aquilo já não era medo. Aquilo era um inexplicado pavor.
Fuga. Pôs‑se em fuga. Correu na direcção contrária, para um Cais do Sodré que não encontrou. Disparou pelo negrume enevoado e não olhou para trás. Correu durante uma onírica eternidade. A respiração ofegante. Incontrolável.
Luz. Uma praça. Parece familiar. Agora sim, espreita sobre o ombro. Não vê nada nem ninguém. Suspira. Reconhece a Praça Duque da Terceira, junto da estação do Cais do Sodré, como quem vai para a Rua do Alecrim. Esta está lá. Mas..., não pode ser. Do lado direito falta muita coisa. Não está lá a Rua do Arsenal. A Ribeira das Naus não passa de um estreito caminho de terra. No meio da praça, árvores. Os semáforos estão todos vermelhos! Mesmo aqueles que não vê, tem a certeza. Não há carros. Não há gente.
Mas há música. Vem dali. Dali da frente.
(continua)

8.2.06

Tempos de mudança

Já se sentem mudanças acentuadas. Depois da neve há poucos dias, garanto-vos que o Inverno está a chegar ao fim. Está frio, é certo, mas muito menos. O sol aparece mais cedo e já se aguenta até uma hora decente.
Mas a real mudança sente-se na bicharada. Nas traseiras do meu prédio gatas com o cio animam noites e dias consecutivos. Quando atravesso pela manhãzinha a Gulbenkian oiço a passarada em loucura, doidas danças e cantares de acasalamento. Melros pulam uns atrás dos outros, bailando, rodopiando, tentando cativar as fêmeas, autênticos imans para machos desesperados. Aves pequenas revelam cantares surpreendentes, novos, rendilhados.
Em menos de um fósforo estaremos na Primavera. E dentro em pouco já estamos à procura do fato de banho. Acreditem que é verdade, e não apenas um mal reprimido desejo meu.

7.2.06

CHEGA!

Estou farto da questão dos cartoons dinamarqueses.
Não acredita o Ocidente em valores como a liberdade de expressão? Então, digam-me lá qual é o problema disto
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ou disto
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Meus amigos, podem até não gostar do que vêem (a começar pelo facto de não terem os cartoons qualquer piada), mas daí a encetar actos de violência gratuita vai um passo intolerável. Digam lá que isto dos cartoons foi só uma desculpa estúpida para incendiar os ânimos?
Também muita gente não gostou do cartoon do António do Papa com um preservativo no nariz. Ou das brutais declarações de Sinead O'Connor. Ou de muitas obras de arte contemporânea. Mas ninguém começou guerras ou queimou embaixadas por isso.
Por isso, irritam-me as vozes ocidentais que dizem que se calhar se foi longe demais. A publicação foi feita em países onde a livre escolha política e religiosa é um direito adquirido. Neste caso não é o Ocidente que deve ceder ao Islão, temente e subserviente. É o Islão que tem que compreender a diferença de civilização e não impôr a uma sociedade cujos valores são totalmente diferentes os seus padrões de decência.
Se quiserem ver os restantes cartoons (todos com um humor muito nórdico), espreitem
aqui.
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6.2.06

"O Edifício da Verdade" (14)

Vitor levanta‑se. Decidiu ir até ao Pavilhão Chinês, ali ao Príncipe Real. Costuma frequentá‑lo. Por vezes só para beber, outras para jogar um pouco de snooker. Hoje quer mesmo as duas coisas. No meio do espesso nevoeiro, inicia a caminhada. Tem tempo. Aliás, tempo não lhe falta. E são‑lhe úteis estes passeios solitários. Ajudam a pensar. Decide seguir junto ao rio até ao Cais do Sodré. Subirá depois pela Rua do Alecrim...
Tão enebriado ficara que, mesmo sem ter o disco a tocar, continua a ouvir a voz de Teresa Salgueiro a cantar como só ela sabe. A música segue‑o, não sai da cabeça... "Eu fui contigo ao Inferno /Fomos ao fundo do mar".
O isolamento torna-se desconfortável. Algo incentiva a desconfiança. Não se cruza com ninguém. Não ouve nada do mundo real. Só os seus passos no pavimento, rugindo com a areia que pisam. Areia. Não é habitual encontrar‑se areia no Passeio Ribeirinho.
Uma gargalhada. Veio dali da frente. É nitidamente de mulher. Vindas por entre a névoa, duas gémeas bloqueam‑lhe o caminho. São duas jovens loiras, altas, encorpadas, de grandes seios e ancas largas. As saias curtas permitem ver pernas bem moldadas pelas meias de nylon pretas. Não são bonitas no rosto, mas os seus corpos assemelham‑se a verdadeiras máquinas de sexo. Ambas usam óculos.
‑ Boa noite, cavalheiro... ‑ diz uma gargalhando enquanto a outra prossegue.
‑ ... Tem lume que nos arranje?
‑ Não, lamento.
‑ E já agora... ‑ começa uma.
‑ ... Que horas são? ‑ parecem incapazes de dizer uma frase completa. O que uma começa a outra termina. Vitor olha para o relógio. Está parado nas oito horas e oito minutos. Bate‑lhe ao de leve com um dedo.
‑ Merda! Desculpem, mas este aqui decidiu parar. ‑ uma das gémeas põe‑se a andar para trás de si. É essa quem começa a frase que a irmã terminará:
‑ Isso é uma pena. Assim vamos ter...
‑ ... Que o assaltar para termos alguma compensação.
‑ É muito feio não ter...
‑ ... Nem lume, nem horas para partilhar connosco.
Assaltar?! Não, Vitor não acredita. Duas raparigas de vinte e poucos anos querem assaltá‑lo? Ele que se gabava de nunca ter sido sequer abordado para tal efeito?
‑ Nem pensem! ‑ diz dando dois passos em direcção à gémea que ficara à sua frente.
‑ Não tentes fugir...
‑ ... Que nós não te deixamos.
Pára novamente. Sente no pescoço a respiração quente de uma das gémeas. Volta‑se rápido, disposto a passar à violência, mas é de imediato projectado pelo ar caindo de costas. A gémea cai‑lhe em cima. Fica numa posição caricata. Ao sentar‑se praticamente sobre o seu pescoço, a saia subiu completamente. Mesmo à sua frente está o sexo dela, mostrando-se por entre o cinto de ligas, sem qualquer peça que o cubra.
Sente o cheiro que, não sendo agradável, é definitivamente erótico. Mas algo o preocupa mais. O indicador direito dela, com uma unha grotesca, ameaça um dos seus olhos. Basta uma rápida investida para o cegar. Opta pela imobilidade.
‑ Vais ficar quietinho...
‑ ... Enquanto eu te despojo do que está a mais. – riem em tom ordinário. Sente as mãos da outra irmã a tirar‑lhe o leitor portátil de CD, a vasculhar outros bolsos... Aquela que o imobiliza ainda se chegou mais para a frente, aproximando a sua fome da vontade de comer. Ele sente‑se crescer.
Umas mãos começam a entrar nos apertados bolsos da frente das calças de ganga.
‑ Sabes que ele...
- Está com tesão. Sim, sei. E tu...
- Posso aproveitar. Está bem.
As mãos desapertam‑lhe o cinto. Continuam e abrem o fecho das calças. Uma delas entra por debaixo das cuecas e agarra‑o firme. Essa gémea fala:
‑ Já podes.
A irmã, que positivamente se senta na sua cara, veloz como um raio, ergue um punho e soca‑o. Cai na inconsciência.
(continua)

Orfão

Numa cidade de Lisboa orfã do inesquecível Ballet Gulbenkian impõe-se ver que ofertas existem no ballet contemporâneo. O espaço deixado pelo BG está avidamente à espera de ser ocupado. Mas não será tarefa fácil.
Este fim de semana fui ver o espectáculo do Lisboa Ballet Contemporâneo, exibido no Teatro Camões.
Foi bom, e não foi.
Habituado à oleada máquina do BG deparei-me com um espectáculo espartilhado na evidente falta de meios para suportar maior criatividade. Nomeadamente ao nível da iluminação, um dos pontos que mais me impressionava nas coreografias do BG.
Por outro lado a companhia de bailado é composta por bailarinos muito novos e, por isso, com notórias imprecisões e inseguranças. Nada que o tempo não colmate, tanto mais que foi evidente a qualidade existente. Ainda assim, num elenco de nove bailarinos apenas, notam-se algumas disparidades em termos de performance.
Quanto aos bailados exibidos, e sem pretensões de crítica, porque nada percebo disto, limitando-me a ser sentencioso com base no meu gosto, tivemos quatro coreografias: de Gagik Ismailian ("Ela... Veronika!", em estreia mundial), de Benvindo Fonseca ("Renacê" e "Castañeda") e de Barbara Griggi ("Dreamland"). Tudo gente que esteve ligada ao BG.
O meu favorito foi mesmo o Dreamland, com música de Tom Waits e dançado por um par.
Ao mesmo nível o Renacê, dancado pelo Benvindo Fonseca, bailarino cujos 41 anos determinam um rigor, uma qualidade e uma expressividade extraordinários. E que canta...
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Ela... Verónica é uma boa coreografia (tirando uma parte, falada, que me incomodou), mas que exige muito mais trabalho, rodagem, para olear as tais imprecisões muito visíveis.
Castañeda foi, para mim, o mais fraco, apenas porque me fez lembrar, do princípio ao fim, aqueles bailados RTP, sabem, dos programas infindáveis, chatos e sem sal.
Precisa-se mais bailado contemporâneo. E criatividade para superar as dificuldades económicas das pequenas companhias, por contraste ao saudoso BG.

2.2.06

Anos '80 - 80 memmórias (41)

Um dos ícones cinematográficos dos anos 80, no campo do cinema de humor, é uma série de 5 filmes, hoje indescritível. Com piadas boçais, infantis, escatológicas, de cariz sexual insípido e violência asséptica, estes filmes lograram um êxito assustador. Devo confessá-lo: acho que os vi todos no cinema.
Falo, naturalmente, da Academia de Polícia.
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Vinte e dois anos depois do primeiro filme, vejo os canais de televisão repetirem constantemente as "aventuras" daquela gente. Hoje nem consigo sorrir com o humor. Os filmes envelheceram muito mal, ao contrário das obras dos ZAZ (Top Secret, Onde pára a polícia, Aeroplano) e estão tão datados que surpreende como, na minha adolescência gostava daquelas alarvidades.
Contudo, há que dizê-lo: Academia de polícia foi um marco do humor dos anos 80. Para o melhor e para o pior.

1.2.06

"O Edifício da Verdade" (13)


II


Finais de Novembro. O quarto desarrumado. Livros espalhados, alguns entreabertos. Folhas de papel manuscritas amarrotadas por todo o lado. No computador, o monitor exibe uma folha em branco. Por mais que se esforce, Vitor é incapaz de continuar a escrever.
Não tem sequer conseguido viver bem. Sente‑se desenquadrado, melancólico, com os horários trocados. Vive de noite, dorme de dia, alimenta‑se mal, à base de comida encomendada, ou congelada. Cinco minutos no micro-ondas e já está. Acompanha com cerveja, com vodka, com whisky... algum vinho. Não está permanentemente embriagado, mas também já não se recorda de estar perfeitamente sóbrio.
Vitor sente‑se oprimido, como se uma mão invisível o agarrasse e apertasse constantemente. Como uma marioneta nas mãos do seu manipulador, Vítor é agora incapaz de criar, de ir para além do desejo, da desconhecida força que o controla.
Lá no canto, ao lado da cama, o relógio marca 17:58. O corpo estendido começa a rebolar, a tremer, a esticar‑se... Vitor acorda, a garganta seca do álcool, a cabeça dorida com a melancolia.
Uma hora depois sai de casa. A pé como de costume, desce até à Baixa. Come um hamburguer e caminha junto ao rio. No bolso do blusão, o leitor portátil de CD vai tocando os Madredeus. O escritor absorve a voz de Teresa Salgueiro que lhe vibra nos ouvidos, clara, cristalina... A gravação foi feita ali perto, em concerto no Coliseu.
O dia, aliás, o fim do dia, continua húmido. No ar, uma camada de nevoeiro torna a cidade sombria e fria: em Lisboa é comum assistir a um tempo assim, mas pela manhã. Normalmente, por alturas do meio‑dia, costuma abrir. Hoje não foi assim, e a cidade encontra‑se envolta num manto branco, não muito espesso, mas deveras incómodo.
Cais das Colunas. Dia de semana, fim de tarde. Sentado no muro, fica por ali algum tempo a ver o corropio de pessoas que, condicionadas pela labuta diária, uma luta que mais não é que a actualização de um dia de caça para o homem pré‑histórico, pessoas que, dizia, correm para os barcos na ânsia de poder chegar mais cedo ao lar. Barcos que chegam quase vazios. Filas de gente tal filas de formigas. Entram. A linha de água desce, desce, desce... Já cheio, manobra preguiçosamente e parte rumo à outra margem. Barcos que chegam, barcos que partem. Constantemente. Com o cair da noite, o sulcar das poluídas águas do Tejo torna‑se muito mais bonito. São castelos de luz que viajam. Luz que apenas permite descortinar a esteira de espuma suja engolida pela bruma que os cacilheiros deixam ao cumprir a sua tarefa.
"São voltas, ai amor, são voltas...", canta a Teresa.
O nevoeiro aumenta. A Lua, que ainda há pouco tentava com desespero tornar‑se visível, foi agora completamente obliterada. O nevoeiro aumenta. O tráfego diminui. Cada vez se sentem menos as pessoas e os carros. E os barcos. O nevoeiro aumenta. Mesmo a luz dos candeeiros é agora difusa, incapaz sequer de fazer sombra. O nevoeiro aumenta.
A meio do "Fado do Mindelo" o CD pára. O escritor pragueja, por ter sido imprevidente deixando acabar a carga das pilhas. O nevoeiro aumenta.
Do outro bolso do blusão tira uma garrafinha metálica e bebe um pouco de vodka. O nevoeiro aumenta. Sente‑se a aquecer. Estar ali parado, com o traseiro na pedra fria, enregelara‑o até aos ossos.
Silêncio. Nevoeiro. Silêncio. Nem carros, nem barcos, nem pessoas, nem sequer o murmurar do rio com as suas pequenas ondas a bater na margem. Silêncio. Um silêncio constrangedor. Sobrenatural, mesmo.