16.2.06

"O Edifício da Verdade" (16)

Vitor avança a passo, tentando recuperar a respiração. Dirige-se para a música, um bater ritmado que vem da esquerda. Entra numa rua conhecida, num ambiente estranho. Duas casas iluminadas de néon estão abertas ao público. Daquela da direita, que mais parece uma árvore de Natal, sai o som de discoteca, com techno ou rave ou lá o que é essa merda que desconhece. Do lado esquerdo consegue ouvir algo mais calmo, quase um sussurro por baixo da barulhenta vizinhança. Vitor escolhe este estabelecimento.
Porta aberta, nenhum gorila à vista, avança a direito. Vestíbulo. A música é agora perfeitamente audível. Blues, do mais puro e genuíno. Buddy Guy, de certeza. Entra para a sala principal.
Choque!!! Foram dois os responsáveis pela preplexidade e pela sensação de desconforto. Não havia um único branco na sala. No ambiente fumarento só via negros bem dispostos. E no pequeno palco, um grupo tocava. Era tão parecido com Buddy Guy ... mas não era ele.
E de um momento para o outro, silêncio. Os músicos pararam, as conversas pararam, cem cabeças viraram-se para a entrada, onde pendiam duas pesadas e empoeiradas cortinas vermelhas. Duzentos olhos cravados nele. Duzentos olhos de um ambiente que só se espera encontrar em Chicago ou Memphis, ou outra terra americana.
Sentiu-se desconfortável, deslocado, a mais. Engoliu em seco.
Virou-se. Atrás de si um negro com a altura de “Magic” Johnson, a largura de Joe Frazer e a cara de King-Kong, fê-lo repensar a estratégia. Lembrou-se de que não tinha um tostão. As conversas voltaram. A música recomeçou. Don't know which way to go.
Sem perceber como ou porquê sentiu-se a caminhar até ao balcão onde encostou o estômago.
- Ora, então o que é que vai ser? - o empregado de meia idade era quase careca. Tinha um sorriso largo com o qual exibia o seu belo marfim. Antes de Vitor poder responder, continuou:
- Ah!, não quer nada. Pois, não tem dinheiro. Foi pena ter sido assaltado.
- Como ... Como é que sabe isso?
- Sei muitas coisas. Atrás do balcão vê-se muito e ouve-se ainda mais. Gostou das gémeas?
- Como gostei? Assaltam-me, agridem-me, quase me violam ...
- Quase?
- Sim, quase!
- Não o obrigaram a ... ?
- Não. Agarraram-me no coiso e, pimba!, K.O.
- Afinal sei muito, mas não sei tudo. É estranho ...
- O que é estranho?
‑ Algo que vai para além da sua compreensão. Aliás, até vai para além da minha. Você é diferente. Entra, no “Blue Condition”, não chega a ser violado pelas gémeas...
‑ O que é que se passa? Onde estou?
‑ Você ama a Isabel?
‑ Não, eu não a... ‑ pausa de estupefacção, ‑ Acho melhor ir embora.
‑ Não. Fique. Ainda não terminou a sua passagem por aqui.
‑ Aqui... o que é “aqui”?
‑ Por agora, “aqui” é apenas o “Blue Condition”. Joga poker?
‑ Sim. Mas só quando tenho dinheiro, sabe. Sem ele não costumam deixar‑me jogar.
‑ Venha dai.
Seguiu o negro de avental branco, deixando-se levar pelo insólito da sua condição. Aquela careca luzidia indicou a passagem para uma pequena sala separada por uma cortina. No momento em que entrou para um espaço com o ar ainda mais viciado, o guitarrista iniciou um fenomenal solo. A guitarra chorou a dôr que Vitor sentira nos últimos dias.
Uma mesa de pano verde. Quatro jogadores. Uma cadeira vazia. Negros de várias idades e vários níveis de vida. Quem dava as cartas tinha um chapéu chegado para trás e bastante ouro. Aneis, fios, pulseiras. Foi ele, o único que não fumava, quem falou:
‑ Já chegou atrasado. Era suposto ter entrado na mão anterior.
‑ Eu?! – disse o peixe de boca aberta.
‑ Sim. Mas agora não interessa. Sente‑se.
O escritor sentou‑se no lugar vago. Para não alimentar o equívoco foi logo anunciando:
‑ Eu não estou a perceber nada, mas desde já aviso que não tenho dinheiro para apostar.
‑ Eu sei. Acredita em almas? ‑ o interlocutor era o mesmo, perante o ar fechado e submisso dos outros três jogadores.
‑ Essa é boa. Que almas? Almas como?
‑ A ideia de alma eterna. A que Deus salva e o Diabo compra.
‑ Não! Não acredito.
‑ Então aposte a sua.
‑ Acabei de dizer que não acredito.
‑ Melhor. Se perder, perde nada.
‑ Não posso perder o que não tenho, é verdade. Mas não posso apostar o que não existe.
‑ Tem medo?
‑ Não. Só não faço algo que vá contra as minhas convicções.
‑ Enganar mulheres faz parte das suas convicções?
- …
- Deixe estar. Suponho que não aposta pois no seu íntimo acha que as almas podem existir, eu posso ser o Diabo a querer a sua, e o melhor a fazer é jogar pelo seguro.
- Não é nada disso. Se pusesse as coisas nesses termos, as probabilidades apontariam para uma condenação, independentemente de negócios com o Diabo.
- Então está bem. Vitor Cardoso não quer apostar a alma que não tem. Quer jogar o relógio de luxo que não funciona?
- O que está do outro lado?
- Algo que ganhei há pouco. - debaixo da mesa saíu uma carteira que Vitor sem esforço reconheceu como sendo a sua.
- E eles? - apontou para os outro três.
- Não jogam. - a voz veio das suas costas; era o barman.
- Feito.
- Venha um baralho novo. Quer baralhar ou dar?
- Tanto faz.
- Então, faça ambos, por favor.
Uma mulata loira, com uma curta mini-saia, trouxe as cartas.
Os collants negros faziam realçar as pernas de tal forma que Vitor se excitou só de a ver. Os seios apertados num generoso decote eram absolutamente grandes.
Relógio e carteira no meio da mesa. Vitor iniciou a tarefa de baralhar os rectângulos de plástico. As cartas estalaram sob os seus dedos, entrelaçando-se, misturando-se. Obra do acaso.
A loira voltou. Whisky para o negro. Vodka limão para ele.
- A bebida é por conta da casa. E este é para dar sorte. - inclinou-se sobre ele e beijou-o. Um beijo forte, lábios nos lábios. A língua quente encontrou a dele e enrolou-se. Suave e ardentemente, soltou-o. Saíu da sala. Vitor respirou fundo.
Acabou de misturar as cartas. Deu duas a cada um. Não viu as suas.
- Não é preciso parar. As apostas estão feitas ..
Assim era. Completou a distribuição. Levantou as suas cinco cartas. Lentamente foi descobrindo o jogo. Sete de ouros. Nove de espadas. Ás de copas. Sete de paus. Sete de copas. Com muita calma ergueu os olhos.
O adversário sorria largo. Reparou que tinha um dente de ouro. Vitor viu-o beber um trago do seu whisky.
‑ Eu quero uma! ‑ disse com voz átona, monocórdica.
‑ Eu duas. ‑ "Uma. Ele ou tem dois pares ou quase sequência. Eu estou a tentar o poquer. Vamos com calma". ‑ conteve a expressão facial e levantou a primeira, carta. Ás de espadas. MERDA! !, deitara fora outro ás. Respirou fundo e levantou a ponta da outra. Sete de espadas.
Uma alegria inundou‑o. O estômago gritou. As carnes sentiram a passagem de uma corrente de energia. Baixou a cabeça para que os seus olhos não anunciassem a vitória.
‑ Escusa de tentar esconder a alegria, senhor Vitor. Aqui não há lugar a blufs. Está, tudo apostado. Limite‑se a mostrar. Eu paguei para ver.
Vitor riu. Permitiu que os seus lábios rasgassem um sorriso de orelha a orelha. Uma a uma, baixou as suas cartas. Primeiro o ás.
‑ Poquer!
A expressão do negro permaneceu inalterada. Apenas disse, após uma pausa:
‑ Você é um tipo ponderado. Outros já teriam avançado gulosamente para o bolo. Fez bem em esperar.
De uma vez só, baixou o seu jogo. Copas, copas, copas, copas e mais copas. Flush. Vitor esquecera‑se da hipótese de flush.
Sentiu‑se derrotado, mas não regateou. Não fez figuras tristes. Bebeu o seu vodka de uma vez só e saiu. Chegou à rua num instante. Pelo caminho reconheceu os acordes que vinham do palco. Damn right I got the blues.
(continua)

Sem comentários: