1.2.06

"O Edifício da Verdade" (13)


II


Finais de Novembro. O quarto desarrumado. Livros espalhados, alguns entreabertos. Folhas de papel manuscritas amarrotadas por todo o lado. No computador, o monitor exibe uma folha em branco. Por mais que se esforce, Vitor é incapaz de continuar a escrever.
Não tem sequer conseguido viver bem. Sente‑se desenquadrado, melancólico, com os horários trocados. Vive de noite, dorme de dia, alimenta‑se mal, à base de comida encomendada, ou congelada. Cinco minutos no micro-ondas e já está. Acompanha com cerveja, com vodka, com whisky... algum vinho. Não está permanentemente embriagado, mas também já não se recorda de estar perfeitamente sóbrio.
Vitor sente‑se oprimido, como se uma mão invisível o agarrasse e apertasse constantemente. Como uma marioneta nas mãos do seu manipulador, Vítor é agora incapaz de criar, de ir para além do desejo, da desconhecida força que o controla.
Lá no canto, ao lado da cama, o relógio marca 17:58. O corpo estendido começa a rebolar, a tremer, a esticar‑se... Vitor acorda, a garganta seca do álcool, a cabeça dorida com a melancolia.
Uma hora depois sai de casa. A pé como de costume, desce até à Baixa. Come um hamburguer e caminha junto ao rio. No bolso do blusão, o leitor portátil de CD vai tocando os Madredeus. O escritor absorve a voz de Teresa Salgueiro que lhe vibra nos ouvidos, clara, cristalina... A gravação foi feita ali perto, em concerto no Coliseu.
O dia, aliás, o fim do dia, continua húmido. No ar, uma camada de nevoeiro torna a cidade sombria e fria: em Lisboa é comum assistir a um tempo assim, mas pela manhã. Normalmente, por alturas do meio‑dia, costuma abrir. Hoje não foi assim, e a cidade encontra‑se envolta num manto branco, não muito espesso, mas deveras incómodo.
Cais das Colunas. Dia de semana, fim de tarde. Sentado no muro, fica por ali algum tempo a ver o corropio de pessoas que, condicionadas pela labuta diária, uma luta que mais não é que a actualização de um dia de caça para o homem pré‑histórico, pessoas que, dizia, correm para os barcos na ânsia de poder chegar mais cedo ao lar. Barcos que chegam quase vazios. Filas de gente tal filas de formigas. Entram. A linha de água desce, desce, desce... Já cheio, manobra preguiçosamente e parte rumo à outra margem. Barcos que chegam, barcos que partem. Constantemente. Com o cair da noite, o sulcar das poluídas águas do Tejo torna‑se muito mais bonito. São castelos de luz que viajam. Luz que apenas permite descortinar a esteira de espuma suja engolida pela bruma que os cacilheiros deixam ao cumprir a sua tarefa.
"São voltas, ai amor, são voltas...", canta a Teresa.
O nevoeiro aumenta. A Lua, que ainda há pouco tentava com desespero tornar‑se visível, foi agora completamente obliterada. O nevoeiro aumenta. O tráfego diminui. Cada vez se sentem menos as pessoas e os carros. E os barcos. O nevoeiro aumenta. Mesmo a luz dos candeeiros é agora difusa, incapaz sequer de fazer sombra. O nevoeiro aumenta.
A meio do "Fado do Mindelo" o CD pára. O escritor pragueja, por ter sido imprevidente deixando acabar a carga das pilhas. O nevoeiro aumenta.
Do outro bolso do blusão tira uma garrafinha metálica e bebe um pouco de vodka. O nevoeiro aumenta. Sente‑se a aquecer. Estar ali parado, com o traseiro na pedra fria, enregelara‑o até aos ossos.
Silêncio. Nevoeiro. Silêncio. Nem carros, nem barcos, nem pessoas, nem sequer o murmurar do rio com as suas pequenas ondas a bater na margem. Silêncio. Um silêncio constrangedor. Sobrenatural, mesmo.

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