9.2.06

"O Edifício da Verdade" (15)

Acordou. Com um arrepio. Era natural. Não tinha mais consigo o seu quente blusão de penas, e a noite continuava fria e húmida. O nevoeiro, porém, era muito menos denso, e já era possível ver até uma boa distância. E foi isso que o preocupou. Parecia estar no sítio em que fora assaltado, mas também parecia que não. Enquanto compunha as calças desapertadas analisou a sua situação.
Do lado esquerdo o rio continuava preguiçosamente. À direita, o jardim do Passeio Ribeirinho era o mesmo. Mas em frente não via o cais do ferry‑boat, nem sequer as bilheteiras, cafés e toda essa panóplia de construções. Para trás, árvores. Árvores?!, ali, junto ao Tejo? Árvores grandes, frondosas, num aglomerado florestal. Não seria agora, pela noite, que enveredaria por ali. Sentou‑se para pensar.
Passos. Vinham da floresta. Levantou‑se sem saber bem porquê. Medo. É isso. Vitor tem medo. E tudo porque não compreende onde está, como está, porque está.
Viu‑o. Surgiu do meio da nebelina, qual D. Sebastião, o Desejado. Apesar da distância, apesar das más condições de visibilidade, viu‑o tão claramente. Como se a imagem tivesse sido cuspida para o seu cérebro e lá tivesse ficado agarrada.
Viu‑o. Era um tipo magro, seco, estatura média... Cabelo escuro, ligeiramente encaracolado, penteado para trás. Sobrancelhas crespas sobre uns olhos verdes, lindos, irreais, frios... Nariz aquilino, barba por fazer sobre faces duras, salientando os ossos faciais. Era incrível como se apercebia daqueles pormenores todos... Vinha vestido com uma camisa preta e um casaco informal verde. Numa das lapelas deste, um pato dourado voava para o Inverno. Calças de ganga e sapatos clássicos de atacadores completavam o personagem.
Ritmo. Andava ritmadamente. A trajectória apontava, sem sombra de dúvida para o escritor. Os braços caídos ao longo do corpo, punhos fechados. O nevoeiro a seus pés. Uma expressão imperturbável, granítica. Lábios cerrados, olhos friamente inexpressivos. Uma expressão do Inferno.
Medo! O medo continuava. O facto de ter visto o homem tão claramente, quando ele estava tão longe, ainda o assustou mais. O coração acelerou. Um nó na garganta. As mãos suaram. Os olhos piscaram, na esperança de afastar a visão. A incapacidade de raciocínio. Aquilo já não era medo. Aquilo era um inexplicado pavor.
Fuga. Pôs‑se em fuga. Correu na direcção contrária, para um Cais do Sodré que não encontrou. Disparou pelo negrume enevoado e não olhou para trás. Correu durante uma onírica eternidade. A respiração ofegante. Incontrolável.
Luz. Uma praça. Parece familiar. Agora sim, espreita sobre o ombro. Não vê nada nem ninguém. Suspira. Reconhece a Praça Duque da Terceira, junto da estação do Cais do Sodré, como quem vai para a Rua do Alecrim. Esta está lá. Mas..., não pode ser. Do lado direito falta muita coisa. Não está lá a Rua do Arsenal. A Ribeira das Naus não passa de um estreito caminho de terra. No meio da praça, árvores. Os semáforos estão todos vermelhos! Mesmo aqueles que não vê, tem a certeza. Não há carros. Não há gente.
Mas há música. Vem dali. Dali da frente.
(continua)

Sem comentários: