29.3.13

Lixo V

Marília acordou quando o despertador tocou, eram quatro e meia da manhã. Ao seu lado a cama fria recordava que o marido, enfermeiro, estava ainda ao serviço e só chegaria lá para as dez da manhã. Esperava, sinceramente, que hoje a vizinha não se lembrasse de fazer barulho para que ele pudesse descansar calmamente.
Para não lhe dar desculpa alguma, tratou de se preparar caminhando sobre as meias e evitando qualquer ruído brusco. Quase em silêncio lavou a cara, os dentes, penteou-se, vestiu a roupa que tinha preparada. Aqueceu o café da véspera e bebeu-o com umas bolachas. Calçou os sapatos junto à porta de saída e trancou-a devagar para que a fechadura não desse os habituais estalidos que ecoavam pelas escadas do prédio. 
A noite ainda estava instalada. Caminhou rápida, pelo ar frio, atravessando o bairro até à paragem do autocarro. Esperou pela carreira nocturna que chegou pouco depois. Sabia que se a perdesse teria que aguardar meia hora por outra passagem, pelo que preferia chegar dez minutos antes a arriscar a chegada um minuto depois.
A viagem até à estação ainda demorava vinte minutos, muito por culpa das inúmeras voltas que dava, passando por outros bairros pobres da periferia. Ainda assim conseguia apanhar sempre o primeiro comboio do dia que a deixaria junto ao emprego, a não mais de cinco minutos de passos pausados.
Eram seis da manhã quando o segurança lhe abriu as portas e encontrou a sua parceira de trabalho, já com a bata alaranjada. Rapidamente se lhe juntou e iniciou a limpeza dos quatro pisos da empresa. Até às nove aspiravam, limpavam o pó, as casas de banho, a loiça da direcção, e recolhiam o lixo de cada um dos caixotes.
Ah, o lixo de cada um... As histórias que contava.
Marília sabia mais de cada uma das sessenta e duas pessoas que ali trabalhavam do que qualquer uma delas sabia do seu colega mais próximo.
Só não fazia a ideia do que poderia fazer com tamanha informação.

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