10.5.06

"Edifício da Verdade" (24)

Passos. Novamente os mesmos. O mesmo. O tipo que não o largava. Vitor, sempre sem pensar, começou a fugir. Os passos
aceleraram. Desta vez o sujeito corria atrás dele. Começou uma desenfreada e alucinante corrida pelas ruas estreitas.
Toc, toc, toc, toc ... passos incessantes a um ritmo infernal.
Respiração ofegante. Coração a disparar. Cérebro a tentar funcionar.
De onde é que o reconhecia? Vitor tinha a certeza de saber quem ele era. Sentia-o.
Vitor não era um homem religioso. Sempre desprezara a fraqueza das religiões. As suas contradições e falhas de lógica. Talvez por falta de Fé. Ou se A tem, ou não. Vitor não A tinha, por certo, e fugia a sete pés dos cultos.
Contudo, ao virar a esquina, na corrida contra o homem misterioso, aquele adro atraiu o escritor. Aquele crucifixo sobre a porta, a luz das velas no interior. A paz.
Entrou na igreja, deixando de imediato de ouvir os passos que o secundavam. Habituou os olhos à penumbra. Algo o fazia crer que tinha que agir. Entrar para ficar parado estava fora de questão. Avançou na escuridão, pelo meio dos bancos, em direcção ao parco altar. Recordou Joseph K.
Deambulou pela igreja, analisou as figuras. Estátuas, iluminuras, vitrais, relevos. Havia de tudo. Até que deu de caras com o confessionário. Pequeno, de madeira escura, frio, mas ao mesmo tempo reconfortante, vá lá saber-se porquê. Estacou a observá-lo.
- Podes entrar. - voz macia, de homem, vinda do lugar do padre.
- Mas ... , eu nem sou católico.
- Não faz mal, meu filho.
- Nem sequer acredito em Deus.
- Isso já não sei. Se calhar até acreditas e não o sabes. Lembra-te de Sócrates. Talvez precises de O encontrar. De te encontrar.
Relutante, o escritor ponderou as alternativas e, sem mais delongas, sentou-se no confessionário. Por momentos, pensou que deveria estar ajoelhado.
- Já pagaste?
- Pagar?
- Sim, meu filho. Para estares aqui tens que pagar a Deus.
‑ Pagar a Deus?
‑ Em dinheiro.
‑ Mas eu não tenho nenhum...
‑ Então assina a nota de dívida. ‑ na parede do confessionário, por debaixo da rede ocultadora, abriu‑se uma gaveta, como as das estações de serviço nocturnas. Um papel e uma caneta. Vitor assinou sem ler.
‑ Agora podes começar. De que foges, meu filho?
‑ Não sei ao certo. Creio que de tudo isto, e de uma pessoa em especial.
‑ Pessoa em especial?
‑ Sim, há um tipo que me persegue. É tétrico e apavora‑me.
‑ E quem é ele?
‑ Não sei. Aliás..., sei... mas... não sei!
‑ Ai! ‑ disse o pároco num tom arreliado, ‑ Que é que queres dizer com essa conversa?
‑ No meu intímo conheço‑o. O meu sub‑consciente avisa‑me contra ele, com uma força que só pode ter saído de uma experiência pretérita. Não é nenhum pressentimento, nenhum sexto sentido. É muito mais real.
‑ Mas não o consegues identificar?
‑ Exacto.
‑ És baptizado?
‑ Como?
‑ És baptizado? ‑ a pergunta soara deslocada.
‑ Sim. Os meus pais assim o quiseram. Mas é curioso, sempre que me perguntam isso eu costumo alegar que, na altura, chorei. Como se fizesse uma declaração de rejeição na inocência do meu primeiro ano de vida.
‑ Não és religioso. ‑ não era uma, pergunta. O tom afirmativo era evidente.
‑ Não.
‑ Acreditas ao menos em Deus?
‑ Não.
‑ Então, porque vieste aqui?
‑ Porque era a única porta aberta.
‑ Quem sabe se a religião não é isso mesmo? A única porta aberta para muitos. ‑ houve uma pausa. Depois o homem do clero continuou, ‑ Voltando a esse homem, deixo‑te uma pista. Se ele é assim, é por tua causa. Foste tu quem o fez assim.
‑ Eu!? Como assim?
‑ Busca no teu íntimo.
‑ Estou farto de o fazer, mas não consigo resultados.
‑ Pensa em ti, em algo que te está muito perto. CONHECE‑TE A TI MESMO.
‑ Mas...
‑ Acabou. O teu dinheiro não dá para mais. Se quiseres continuar tens que assinar nova nota de dívida.
Foi então que Vitor se apercebeu de que aquilo era uma charada. Nunca estivera na posição de procurar conforto na igreja. Nunca acreditara em Deus ou nos ditos "Seus representantes". Nunca encontrara pingo de lógica em dar dinheiro a um deus, especialmente quando este é omnipotente. E agora vira‑se a dar força aos argumentos que sempre contestara.
Depois de ter contradito a sua posição quanto à prostituição, depois de ter contradito a sua posição quanto à religião, Vitor confirmou o desconhecimento da sua própria pessoa.
"CONHECE‑TE A TI MESMO"
Saiu do confessionário. A meio da igreja, a caminho da saída, olhou para trás. Viu sair do outro lado da caixa das confissões o homem misterioso de quem fugira toda a noite. Vestia batina branca, com os devidos paramentos. Com um sorriso frio, olhou‑o através de uns olhos gélidos.
Vitor abandonou o local com calma. Mas muito intrigado.
(continua)

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