18.5.06

"O Edifício da Verdade" - (26)

O porteiro era enorme. Carrancudo, grandes manápulas nuns braços curtos e musculados que tinha cruzados no peito sobredimensionado. Cabelo à escovinha, brinco numa orelha, óculos escuros. Vestia um fato negro com uma camisa vermelha apertada até ao último botão. Foi directo:
‑ O que é que quer? ‑ o hálito fétido sentiu‑se vindo de cima, tal era a sua altura.
‑ Bem,... quero entrar?
‑ O que é que o faz pensar que o deixo entrar?
‑ Bem, aqui não entram todos os que quiserem?
‑ Optimista! Aqui só entra quem tem cartão, ou está na lista dos convidados.
‑ Mas isto não é o Inferno?
‑ Claro que é o INFERNO, a discoteca mais quente das redondezas.
‑ Não, o Inferno mesmo.
‑ O INFERNO MESMO não conheço. Aqui perto só mesmo o CÉU.
‑ Espera lá! Onde estamos?
‑ ‘Tás a brincar comigo? Olha que não é com essas merdas que te deixo entrar.
‑ Calma, calma. Deixa‑me passar, vá lá...
‑ Não! Não tens cartão, não estás na lista, estás sózinho, muito mal vestido... Nem penses.
‑ Então não há lugar para mim no Inferno?
‑ Por enquanto não. Não estás preparado. Agora sai daqui que espantas os clientes.
A conversa não ia mais longe. Vitor decidiu tentar o Céu. Por exclusão de partes teria lá lugar.
O porteiro era igualzinho. À excepção da camisa, azul néon, do brinco que primava pela ausência e do hálito que em vez de fétido era mentolado.
‑ Onde pensas que vais?
‑ Posso entrar no Céu?
‑ Não!
‑ Porquê?
‑ Porque não. ‑ este conseguia ser mais antipático e parecer mais estúpido que o outro.
‑ Deixe‑me lá entrar.
‑ Já disse que não!
‑ Então diga‑me ao menos porquê...
‑ Não aceitamos paneleiros no CÉU.
Vitor compreendeu o equívoco:
‑ Mas, eu não sou roto. A t‑shirt nem é minha.
‑ Mas faz questão de a usar.
Vitor despiu a camisola que dizia "I’m gay" em vermelho.
‑ E agora?
‑ Não é o hábito que faz o monge.
‑ Isso era válido quando eu a tinha vestida.
‑ Mas não argumentou.
‑ Isto é de loucos. O Inferno não me quis. O Céu rejeita‑me. Porquê?
‑ Não és carne nem peixe. Não és santo nem diabo. Não és nada. Zero.
‑ Zero!?, eu ?
‑ Desampara‑me a loja. Estás a assustar‑me os cientes a sério.
Vitor recuou. Caminhou pela areia até um ponto sombrio, algures entre as duas discotecas. Sentou‑se no chão de pernas cruzadas.
Que raiva! Apetecia‑lhe espancar os porteiros. Mas nem que fosse três o conseguiria. Cerrou os dentes. Cerrou os punhos. Cerrou os olhos. Contraiu‑se todo. E gritou!
AAAAAHHHHHHHHH!!!
O som gutural perdeu‑se na imensidão que o rodeava. Aos poucos relaxou. Ergueu as pálpebras. As discotecas CÉU e INFERNO pareciam mais afastadas. Em frente descortinou um casinhoto. Largo, baixo, em pedra maciça, telhado de madeira... sombrio.
O escritor ergueu‑se e caminhou para a porta. Sentiu chegar a hora da verdade.
(continua)

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