30.3.06

"O Edifício da Verdade" (20)

Ofegante. A sua respiração ofegante, o bater do coração descontrolado. Vitor continuou a correr. O silêncio permitia ouvir todos os seus movimentos. Os sapatos no empedrado escorregadio, nas poças. O silêncio apenas violado pelos seus sons. Sons que o rodeavam com uma intensidade brutal. Quem era aquele tipo? Porque o seguia? Parecia‑lhe conhecido. Parecia‑lhe um assassino.
"Merda de nevoeiro!" Continuava a correr sem ver bem para onde. Passo ritmado, constante. Boa fuga. Não sabia porquê, mas tinha que fugir dele. Olhou por cima do ombro e não viu nada. Só brumas. Só humidade.
Quando se virou para a frente sentiu o impacto. Os faróis mal se viam, mas a frente do carro era bem sólida. Apanhou o pancadão, rebolou sobre o capot e caiu para o asfalto. Deixou‑se ficar imóvel.
Uma mulher saiu do carro, num momento em que a visibilidade melhorava consideravelmente. Para além da côr do cabelo, nada tinha a ver com todas as outras mulheres que enfrentara nessa noite. Era alta, tinha uma expressão simpática. Boca pequena, olhos grandes por detrás de uns óculos largos. Usava um rabo de cavalo muito bem cuidado.
Debruçou‑se sobre o escritor:
‑ Desculpe, não o vi... Está bem?
Vitor contou os ossos. Mexeu‑se devagar, sentindo todos os músculos, todas as articulações, todos os membros.
‑ Acho que sim... ‑ sacudiu a cabeça, como se estivesse a aclarar as ideias.
‑ Sente‑se aqui um pouco. ‑ levantou‑o e ajudou‑o a sentar‑se no automóvel, um Mercedes muito confortável ‑ Quer um gole? – ofereceu de uma pequena garrafa que tirou do porta-luvas.
- Obrigado. – bebeu um pouco. Gin. – Acabou… - informou enquanto devolveu a garrafa.
- Venha até minha casa. Tenho lá mais. Além de merecer, quero ter a certeza de que está bem. Mas que ideia a sua, vir a correr assim numa noite de nevoeiro sem sequer procurar se vêm carros.
Vitor acomodou‑se, baixando um pouco o banco. Ela arrancou com um chiar de pneus. O escritor fechou os olhos. Mais chiar de pneus. Motor a alta rotação. Sentiu o carro a fugir de traseira.
Reajustou o banco e olhou para a estrada. E olhou para ela. A mulher estava bem bebida, reparou então. E conduzia como uma louca por ruas desertas que não reconhecia. Agarrou a pega da porta e fez força com os pés como se isso travasse a corrida desenfreada. Agora o tema da conversa era a ecologia. A ecologia? Como fora ela buscar o assunto?
A visibilidade aumentara. Adiante via-se bem uma rotunda. Tinham que parar para ceder a prioridade, tanto mais que enquanto se aproximavam uma carrinha de mercadorias branca entrou na rotunda e começou a dar voltas sucessivas ao redondel. O Mercedes estacou.
- Ah, queres brincadeira? – perguntou retoricamente a sua condutora. Com um chiar de pneus entrou na rotunda… em sentido contrário. Acelerou fundo.
O escritor gritou um “não” que saiu das suas entranhas mais profundas. Ambas as viaturas aceleraram em direcção a um ponto comum. Vitor assegurou-se que o cinto estava apertado e rezou para que o Mercedes tivesse air-bag para o passageiro.
À última hora, mas mesmo no último instante, desviaram-se os dois, um para cada lado, uma das rodas do Mercedes batendo com força no lancil do passeio central.
- Louca!!! Pare com isso. Trave que eu quero sair.
- Calma, estava tudo sob controlo.
- Como controlo!? Você está bêbeda! Imagine que se desviavam os dois para o mesmo lado?
- Não seja merdas! Tenha lá calma. Eu vou mais devagar.
No momento em que começava a chover ela baixou a velocidade para uns saudáveis 60 quilómetros por hora. Ligou o limpa pára-brisas. Calou-se. Por uns instantes o silêncio oprimiu o ambiente. Vitor pensava furiosamente em qualquer coisa para dizer enquanto relaxava, largava a porta e respirava mais lentamente. E pedia para que ela dissesse qualquer coisa. O silêncio era constrangedor. Ouvia-se apenas a chuva que se tornava intensa, e o chiar das escovas no pára-brisas.
Novo cruzamento. Este com STOP. Ela pára. As escovas param. Uma cortina de água enche o vidro.
‑ Parece que temos problemas...
‑ O que se passa? ‑ perguntou o escritor, a voz a fugir‑lhe após o prolongado silêncio.
‑ As escovas estão a encravar. Veja se consegue dar‑lhes um empurrão.
Vitor abriu o vidro, esticou o braço e empurrou a escova do seu lado. Ambas avançaram mas, no regresso, voltaram a parar. O escritor puxou. Nova volta. Nova paragem.
‑ Vamos tentar continuar assim. Eu não moro longe. ‑ dito isto, arrancou. Lá fora chovia. Vitor, de braço estendido, ora empurrava ora puxava uma escova teimosa. A chuva gélida magoava‑lhe a carne. O sangue custava a passar. Os dedos adormeciam‑lhe. A estrada alargara. De um momento para o outro pareceu‑lhe estar em Tomar.
À frente, um vulto. Era um homem. Algo dentro de si o fez ficar alerta. Empurra, puxa. Empurra, puxa. Aquele era o homem. Sim, lá estava ele à chuva, com o seu pato na lapela a reluzir... Empurra, puxa. Empurra, puxa. Viu uma estrada à direita. Num repente, puxou o volante àquela que o atropelara. O cama reclamou, mas fez a curva.
‑ Obrigado. Ia distraída e já não virava. Como sabia que morava aqui?
A estupefacção substituiu a resposta. Empurra, puxa. Empurra, puxa.. Seguiram mais uns minutos e chegaram. Vitor não sentia o braço direito. Os dedos não fechavam. Espirrou.
(continua)

27.3.06

Assim se dança

A Companhia Nacional de Bailado exibe três grandes nomes da dança contemporânea no Teatro Camões, com três coreografias espectaculares sob todos os pontos de vista. As interpretações são seguras e vistosas, os figurinos encantadores, a cenografia simples mas imaginativa, a iluminação mais do que eficaz, essencial.
Assim,
de Mauro BIGONZETTI - Kasimir's Colours
de Jirí KYLIÁN - Return to a Strange Land
e de Nacho DUATO - Por vos Muero.
Ainda os podem ver em Março, dia 31 às 21:00 e Abril, dia 1 às 21:00 e dia 2 às 16:00.
Se tiverem cartão FNAC o desconto é de 50%.

Vingança e terrorismo

A mensagem está entrelaçada na reflexão que o filme nos propicia sobre a legitimidade do terrorismo. E questiona se a vingança é argumento, sentimento, bastante para o justificar.
Todos temos presentes as mágoas do terrorismo de génese árabe emergente do conflito no Médio Oriente. E como a mensagem que se veicula relativamente ao mesmo se traduz muitas vezes na simples retaliação por agressões atribuídas aos seus inimigos. Que por sua vez justificam os seus actos em prévias acções terroristas, numa clara pescadinha de rabo na boca.
Mas temos igualmente presentes as acções de grupos terroristas de génese política, normalmente nos extremos da esquerda ou da direita, com agendas políticas não civilizacionais ou culturais. E nem estes conseguem atrair simpatias na esmagadora maioria da sociedade.
Se andarmos um pouco para trás na história encontramos a famosa Resistência francesa à ocupação do seu país pela Alemanha Nazi. O que era a Resistência, senão um grupo terrorista, instituído para derrubar um regime político (fantoche, nas mãos do ocupante)?
É isto que este filme aborda metaforicamente, transpondo para a tela uma obra de BD, desenhada nos tempos de governo do Reino Unido pela Sra. Tatcher. É legítimo o terrorismo se o Governo não governa para os seus cidadãos?
A história e a concepção gráfica da BD são uma base sólida e não se confundem com outros universos de «Super-Heróis», vingadores ou defensores da paz.
O trabalho dos irmãos Wachowski (Matrix) propiciou um argumento fiel, na adaptação da história e do cenário. A realização, nas mãos de James McTeigue é algo frágil, pouco imaginativa para um universo tão cheio que pedia maior criatividade. No entanto, com a matéria-prima ao seu dispôr era dificil estragar tudo. Por isso, nem tudo se perde. A começar pela segura interpretação de Natalie Portman
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e do homem da máscara
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Se ainda não sabem quem é o actor, eu também não o digo. Tentem reconhecer-lhe a voz.
Não é um filme imperdível. Também não é um desperdício de dinheiro. É cinema. Mais cinema a beber na infindável criatividade da BD, posto que cada vez mais parece impossível criar de raiz histórias fantásticas para a tela.
Assim, posso dizer que gostei... mas não fiquei deslumbrado.

24.3.06

Repetiu há pouco tempo na RTP Memória

a cidade é para fazer dinheiro
e se tu és um tipo inteiro vais passar um mau bocado
vais ver o que custa não ser ouvido
no meio de tanto homem vendido em silêncio comprado

quem és tu, zé gato?
o que é que te faz correr pelos cantos mais sujos desta terra
tu já deves saber que mesmo quando vences batalhas
estás longe de acabar com a guerra
quem és tu, zé gato?

mas tu és teimoso como um burro
vai na luva ou vem a murro
nada te faz desistir

a luta é de vida ou de morte
mas a consciência é mais forte
e não te deixa fugir

quem és tu, zé gato?
o que é que te faz correr pelos cantos mais sujos desta terra
tu já deves saber que mesmo quando vences batalhas
estás longe de acabar com a guerra
quem és tu, zé gato?

és mais um caso de solidão
porque afinal poucos são
os que se entendem contigo

e às vezes é num marginal
que vais encontrar, encontrar a tal
compreensão de amigo

quem és tu, zé gato?
o que é que te faz correr pelos cantos mais sujos desta terra
tu já deves saber que mesmo quando vences batalhas
estás longe de acabar com a guerra
quem és tu, zé gato?

21.3.06

"O Edifício da Verdade" (19)

Virou na esquina mais próxima. As ruas não tinham ninguém. Os seus eram os únicos passos que ecoavam na madrugada. Ao longo dos passeios, estranhamente, eram raros os carros estacionados, separados por poças pouco profundas. O alcatrão molhado reflectia a luz amarela dos candeeiros públicos excessivamente espaçados. Nas fachadas, luzes difusas tremiam atrás de estores e cortinas. Cheirava a chuva de Primavera, daquelas que fazem a terra crescer. Viu o rio. Viu a ponte D. Luis. Estava no Porto.
Aquilo não era o Porto. Não podia ser. Faltava a Sé. Faltavam as barracas dos vendedores da Ribeira. Faltava a gente. Faltava o espírito.
‑ Estás perdido. ‑ a voz quente e sensual sobressaltou‑o.
‑ Sim. ‑ admitiu enquanto se virava. Mirou‑a de alto a baixo. Era baixa, cabelo comprido até à cintura, loiro. Cara doce. Não tinha muitas curvas. O peito era decerto pequeno. A cintura estreita, as ancas largas. Não vinha vestida de maneira a revelar o seu corpo, mas parecia ser mulher com argumentos suficientes para enfeitiçar um homem, mesmo exigente. Emanava carinho e simpatia, bem como alguma fragilidade interior. Como se para ela, por muito boa que tentasse ser, a vida fosse madrasta. Como se facilmente baixasse os braços perante as contrariedades, sendo por isso levada ao desespero, às acções impensadas que acarretam um arrependimento posterior.
‑ És de cá? ‑ perguntou ela. O sotaque não era muito carregado, mas era suficiente para a enquadrar na cidade invicta.
‑ Creio que não. Onde é "cá"?
‑ Queres vir comigo? ‑ a resposta foi intencionalmente evitada.
‑ Para onde? Porquê?
‑ Queres ajuda? ‑ as questões sucediam‑se sem resposta.
‑ Sim. Talvez...
‑ Eu ajudo‑te. Se tu me ajudares.
‑ O que preciso de fazer?
Estendeu‑lhe a mão macia e quente.
‑ Vem. ‑ disse com uma firmeza adocicada.
Vitor seguiu‑a. Braços que se cruzaram. Vitor seguiu‑a. Vitor já estava por tudo. A mão dela passou pela sua cintura. A dele caiu-­lhe sobre os ombros. Vitor seguiu‑a. Até à porta, de uma das pequenas casas.
Entraram. O ambiente era acolhedor. Pouco espaço havia. Uma única divisão, com cama, mesa, sofá e kitchenette. Uma porta dava seguramente acesso à casa de banho. A janela sem cortinas mostrava a rua toda. Apesar de reduzida, a casa era um espelho daquela mulher. O cuidado com que as pequenas coisas estavam distribuídas denotava que nada ali fora deixado ao acaso. No fundo era a ordem exterior como compensação para a desordem interior. Só tarde demais Vitor percebeu isso.
‑ Queres ajudar‑me?
‑ Qual é o teu problema? ‑ perguntou o escritor.
‑ Não sei bem como to dizer... ‑ começou ela. De costas para ele despiu o blusão de cabedal que envergava. Não tinha nada por baixo. ‑ Acho que o meu mal é mesmo carência afectiva.
Avançou para ele.
A noite galopava na insanidade do irreal. Vitor já não se espantava por aquilo que só os seus personagens tinham direito a viver. O inusitado apetecido e simultaneamente assustador alimentavam o espírito aventureiro que apenas nos sonhos se tornava grande. Aceitando como inevtáveis as situações à medida que se sucediam, abraçou o mundo onírico. Desta feita, semi‑sencostado ao balcão que dava para a pequena cozinha, sentiu aquele corpo nu através da sua roupa. Os pequenos seios espetaram‑lhe o coração. Sentiu uma mão a desapertar a camisa amarrotada.
‑ Satisfaz‑me.
Outrora diria sim sem pensar. Porquê hesitar agora? Porque não uma noite de sexo? Sim, porque não? Olhou pela janela. Lá fora começava a choviscar. Sentiu-lhe o corpo quente.
‑ Está bem. ‑ beijou‑a. A loira desconhecida afastou‑se dois passos e desapertou as calças de ganga. Tirou‑as, ficando como a natureza a criou. Vitor olhou pela janela.
NÃO!!!
Calças de ganga. Sapatos de couro, clássicos, com atacadores. Camisa preta. Blazer informal verde, com um pato dourado a esvoaçar na lapela. Olhos verdes, frios. Nariz aquilino. Barba por fazer. Caminhava compassadamente. Na sua direcção.
Novamente o medo. O medo não! O pavor. Largou a correr porta fora, sem se ralar com a recém‑conhecida que o desejara. Esta, nua, seguiu‑o para a chuva, exibindo‑se para ninguém, numa ridícula tentativa para o suster. Vitor, com uma passada muito maior, afastou‑se num instante. Ela caiu de joelhos e começou a chorar, os punhos fechados a bater numa poça. Nem assim cumprira o seu desejo. A chuva miudinha a cair sobre a pele muito branca. O cabelo escondendo a face e as lágrimas perdidas. O seguidor ignorou‑a, passando no seu ritmo, como se não existisse. Vitor já ia longe, penetrando na bruma.
(continua)

20.3.06

Violência

A violência é o tema, e revela-se ao longo do filme de forma crua e muito bem filmada. Partindo de uma realidade pacata, pacífica e enfadonha, a trama evoluiu para um registo de exposição de um passado de violência (uma das leituras na tradução do título original) que se repercute na vida actual dos personagens principais, surpreendidos com o desenrolar dos acontecimentos. A perturbação causada pelos estranhos vindos de fora veio para ficar e com ela há que aprender a lidar.
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A premissa é, sem dúvida, boa. O elenco está à altura. E na realização temos este senhor
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David Cronenberg, com provas dadas. Contudo...
Mais uma vez lembro que neste blog não pretendo fazer críticas a filmes, mas apenas comentários. Comentários que revelam aquilo que senti com o filme. E com este "A history of violence" fiquei um pouco desapontado. Estava à espera de mais, de um golpe de asa brilhante, uma surpresa, um encanto. E não foi assim.
Este filme está bem construído, mas sinto-o dirigido para uma audiência formatada pelo cinema comercial norte-americano. Aliás, numa sala com muita gente, foi engraçado reparar na reacção programada que respondia a certos estímulos, rindo em uníssono quando o realizador queria, ou agitando-se na cadeira quando chegara o momento para tanto. Por isso, acaba por ser previsível o desenrolar da trama.
Fica, no entanto, mais uma vez o elogio para a forma como a violência (as agressões, as mortes) são filmadas, muito para além do registo "mainstream", sem cair na gratuitidade do "gore".
O filme deve ser visto. Porém, com tantos grandes filmes em exibição, não é a primeira escolha.

16.3.06

"O Edifício da Verdade" (18)

‑ Olha...
Voltou‑se. A loira deprimida tinha saído atrás dele, e falava­‑lhe. Não era muito baixa, tinha vinte e poucos anos, cabelos curtos, cara redonda, olhos verdes, tez clara... Muito bonita.
‑ Sim?
‑ Estive a ouvir a conversa lá dentro. Pareces alguém com um sonho desfeito.
‑ Talvez. Ou apenas esquecido.
‑ Queres ficar um pouco comigo? Se calhar até temos algo para partilhar... para nos enriquecer.
‑ ... Sim, está bem. Eu sou o Vitor Cardoso.
‑ Veronique.
‑ Francesa?
‑ Não. Ascendentes luxemburgueses. Mas nasci cá. Por isso não procures um sotaque. Nunca o tive.
‑ Vamos sentar‑nos ali, nos bancos do miradouro?
‑ É melhor não. Sabes como é... assaltos, e esta estúpida humidade. Nem chove nem deixa de chover.
‑ Então vamos para onde? Ao Grego não podemos voltar.
‑ Vem comigo. Vamos para minha casa.
Era perto. Uma pequena vivenda cor de tijolo, com jardim ressequido e descuidado. Sentaram‑se num sofá antigo, coçado. Ela nem lhe ofereceu uma bebida. Apenas o desafiou para falar, mantendo um silêncio perturbador. Vitor cedeu passados uns minutos duranteos quais conseguiu ouvir os grilos que inundavam a noite exterior. E falou daqueles últimos momentos por que passara. Correndo o risco de passar por louco, contou tudo. Do nevoeiro a Cascais. Tudo. Falou durante minutos sem fim, perante o olhar atento de Veronique, que nunca o interrompeu.
‑ És capaz de acreditar nisto?
Mais um silêncio interminável. Ela parecia ser incapaz de falar. Por fim, com uma voz quente e decidida, avançou.
‑ Gosto de ti, Vitor Cardoso.
‑ Suspeitava. A menos que costumes trazer desconhecidos de quem não gostas cá para casa.
‑ Não é isso. Gosto mesmo de ti.
Ele segurou‑lhe a mão. Estava tão quente, ao contrário das suas palmas geladas. Aproximaram‑se. Muito. Vitor arriscou um beijo. Veronique esquivou‑se, apoiou a cabeça no ombro do escritor. Ele apertou o abraço. Assim ficaram incontáveis minutos, até que, parecendo ter vencido algum medo, ela beijou‑o levemente. Depois com mais intensidade. As palavras havia muito tinham morrido. Agora só mesmo suspiros para apanhar os grilos.
Passado um pouco, Vitor começou a desapertar‑lhe a blusa Depois o soutien. Afagou‑lhe os seios. Beijou‑os. Deixou‑se conduzir sem sequer pensar. Um rito natural, instintivo, animal.
Investiu para o cinto. Ela afastou‑lhe a mão irrequita. Insistiu, tentou os botões das calças de ganga com uma persistência de polvo.
- PÁRA!!! ‑ berrou a loira.
Assustado, afastou‑se. De pé em frente a uma Veronique semi‑despida.
‑ Pára! Nada do que é fácil merece ser amado! Sai! Sai! Sai! ‑ foi gritando.
Estupefacto, e qual peixe na corrente, saiu. Estava outra vez na rua. Noutra rua completamente diferente.
(continua)

13.3.06

Crash - Colisão

As pessoas vão à procura da colisão só para interagirem umas com as outras. Esta é uma das ideias deste fantástico filme
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A conquista do Óscar para melhor filme permitiu-lhe um segundo fôlego e assim consegui encontrá-lo novamente nas salas de cinema por onde passara numa má altura. E em boa hora assim aconteceu.
Com um casting apurado, vemos os personagens evoluir em tramas paralelas que aqui e ali se entrecruzam, mostrando o cadinho cultural que é Los Angeles. Porém, ao contrário daquilo que estamos habituados a ver, e sabemos acontecer, em N. Y., onde por entre os prédios as divisões culturais se esbatem integrando-se o indivíduo na urbe, L.A. é uma cidade dividida. Brancos ricos, brancos pobres, negros ricos, negros pobres, hispânicos, orientais, iranianos (que não árabes), cada qual segue o seu caminho, invejando ou ignorando aqueles por quem passa, com preocupações diferentes, visões diferentes, e sem sequer interagirem voluntariamente.
Daí a colisão. Apenas com a colisão os personagens parecem viver. Seja tal colisão o resultado de um acidente rodoviário, de um roubo, de um furto, de uma discussão, de uma morte, um destino.
A trama evolui consistente, coerente, filmada por mão segura e criativa. As interpretações estão todas ao mesmo nível: bom.
E assim se faz um vencedor dos Óscares, que este ano não tiveram medo de premiar uma obra polémica. É que o tema abordado pelo filme não foi tratado com branqueamento, mas sim de forma crua porém imaginativa.
Não só é um filme a ver, a não perder, como o julgo mesmo obrigatório.

10.3.06

"Anos '80 - 80 Memórias" (42)

Numa altura em que algumas mentalidades economicistas apontam a instalação de uma central nuclear como o futuro energético para Portugal, não posso deixar de recordar uma luta vivida em força nos anos '80.
Quem é que não teve um um emblema ou autocolante para pôr ao peito com o sol sorridente, à vezes de óculos escuros ou a piscar um olho, e a dizer «Nuclear? Não obrigado».
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Havia quem os colecionasse nas diversas línguas mundiais, e estavam à vista por todo o lado.
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E os mais antigos, ainda a pensar atómico e não nuclear
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Depois...
Depois veio Chernobyl e durante uns tempos a energia nuclear ficou na gaveta. Nada de projectos novos, argumentando-se ser necessário desenvolver novas tecnologias, novos mecanismos de segurança.
E enquanto se discute o fim do petróleo continuam a funcionar centrais construídas há quarenta anos. Os países mais pobres tentam desenvolver os seus programas nucleares, sempre com o estigma do potencial bélico que pode ser criado em simultâneo. E em Portugal fala-se numa central nuclear.
Acho que já era tempo de compreender que a energia nuclear a que devemos recorrer é aquela que emana do Sol que nos alumia. Que há mais energia neste planeta para aproveitar e com menos risco. Eólica. Geotérmica. Das marés.
Nuclear? Não obrigado.

9.3.06

Diferenças

Há pouco senti algo de diferente. Não sabia bem o que era. Algo no ar... não sei.
Passado um pouco apercebi-me o que era. A partir de agora tenho de habituar-me a falar do Presidente Cavaco.
Custa um pouquinho.

Adeus, Ali Farka Touré

Faleceu anteontem Ali Farka Touré.
Tive o privilégio de o ver actuar no ano passado em Monsanto. Já na altura a doença o consumia. Ainda assim foi fantástico.
Fica-nos a sua música. E a memória de um homem fiel às suas raízes.

Adeus, e até à próxima.

Jorge Sampaio está de saída. Chega Cavaco à presidência da República.
Ao fim de 10 anos Sampaio não ficará mal visto. Contudo parte do eleitorado nacional nunca deixará de o ver como o PR que pôs fim a um governo com maioria parlamentar.
No campo da Justiça, fez ao longo dos seus mandatos dos melhores, mais pertinentes e mais exactos discursos sobre a matéria. Produziu também as declarações mais despropositadas, infundadas e polémicas, especialmente sempre que era envolvido em matérias jurisdicionais, ou estava na berlinda o PS ou seus reputados elementos.
Para findar ficou-se por uma infundada e absurda afirmação relativa ao cúmulo jurídico, popular no meio prisional em que a proferiu mas completamente escusada.
Foi o típico exemplo de «dar uma no cravo e outra na ferradura», perdendo excelentes oportunidades para assegurar aquilo que era preciso dar à Justiça: paz, e grandes reformas, estruturadas, capazes de ultrapassar os quadros mentais assumidos há mais de 30 anos.
Adeus, Sampaio.
Seja bem-vindo, Sr. Cavaco. Veja lá, e não nos deixe ficar mal.

7.3.06

"O Edifício da Verdade" - (17)


Saiu para a rua. A discoteca de néon não está mais ali. Aliás, nada mais está ali. Aquilo já não é Lisboa. Se é que alguma vez o fora.
Um sentimento, algo vindo do fundo do seu âmago animal, gritava‑lhe "Cascais! Cascais!", mas não parecia Cascais. E até parecia. A baía..., a zona velha. Só havia uma maneira de verificar.
Entrou para uma cabina telefónica, marcou o serviço de chamadas a pagar no destinatário, e pediu o número de Diogo.
‑ Desculpe, mas esse número não existe. ‑ respondeu solicita a telefonista.
‑ Como não existe?
‑ Não existe. Não foi atribuído. Tem a certeza de que é este o número que deseja?
‑ Tenho... Olhe, desculpe lá, mas já agora tente este outro. - ditou o seu próprio número.
Após um breve silêncio, a resposta num tom embaraçado:
‑ Não está a brincar comigo, pois não?
‑ Não! Porquê? O que é que se passa?
‑ Esse número foi desligado há dois meses por falta de pagamento.
Abandonou o aparelho, intrigado com o que se estava a passar. Parecia ter entrado no mundo de Rod Serling. Conseguia mesmo ouvi‑lo dizer: "You're now entering... the twilight zone. "
Como estar parado de nada adiantava, começou a caminhar pelo empedrado ribeirinho. Não via vivalma. Para criar ambiente só mesmo o som do mar a enrolar na areia. Pequenas vagas, compassadas, constantes. Uma brisa transportava um estranho odor a maresia. Mar, diesel, peixe, putrefacção... No céu, nem uma estrela. As nuvens mantinham um tecto compacto.
Lá ao longe, em lâmpadas de néon, desenhavam‑se as letras que indicavam vida: "O GREGO ‑ Bar ". Como tinha gente, decidiu arriscar.
Entrou, sentindo a indiferença dos presentes. Para além do empregado de balcão que se esmerava na limpeza de um copo, só mais um casal desaguisado, um bêbedo e uma loira deprimida, de olhos inchados.
O balcão repousava à sua direita, comprido, de madeira clara, ocupando toda uma parede. Tinha uma série de copos pendurados e no fundo espelhos espreitavam por entre uma série de garrafas "expostas para consumo da casa", e um conjunto de bandeiras e insignias académicas. Uma rosa vermelha, de plástico, encontrava‑se lá. Estava cheia de pó, esquecida entre tudo o resto. Algo arrasta o escritor até aos longínquos tempos da Faculdade de Direito.
Olhou para o barman que levantou a cabeça dirigindo‑lhe uma atenção forçada. Com algum espanto reconheceu-o, um antigo colega de faculdade, alguém a quem já chamou amigo.
‑ Ricardo?!
‑ Como?..., sabe o meu nome?
‑ Ricardo... Não te lembras de mim? Vitor... Vitor Cardoso!
‑ Vitor. De onde o deveria conhecer?'
‑ Foda‑se, Ricardo, da Fe‑Dê‑La!!
‑ De Direito?
‑ Sim. Lembras‑te do Nuno Figueiras?
‑ Claro!
‑ E não te lembras de mim?
‑ Olha lá... Nem penses que me enrolas. Daqui não levas nada à borla. Tás com sede bebe água do mar.
‑ Eh, pá, não quero nada disso... Só estou um pouco perdido.
‑ Não queres beber?
‑ Não! Mas dava‑me jeito uma ajuda.
‑ Claro! Dinheiro. Vai p'ró caralho. Põe‑te com merdas e eu ponho‑te na rua…
‑ Na rua... eh, pá, ... Lembra‑te do passado!
‑ Qual passado? Eu nem sei quem tu és. Da FDL, das centenas de pessoas que comigo falaram, já têm sorte os poucos com quem ainda me dou.
‑ Então, ... e os laços, o passado?
‑ O passado... É passado. O que me interessa é o agora. E agora... põe‑te daqui para fora ou consome qualquer coisa.
‑ Eh, pá ...Lembra‑te de tudo o que passámos juntos. Estou a cagar‑me para a ajuda... Só queria que te lembrasses.
‑ E eu queria mesmo que parasses com essas merdas.
‑ Mas...
‑ CALA‑TE!!! Quem te disse que eu quero recordar? Quem te disse que para mim o passado interessa? A mim não! Eu não sou desses que vai a jantares todos os anos. Eu vivo para o futuro.
‑ Mas o passado tem o seu valor.
‑ O passado "teve" o seu valor. Agora já passou. Se restam memórias já é bastante mau. As memórias são um peso. Peso morto. Peso que nos carrega. Algo de que temos de nos libertar se queremos ir em frente.
‑ Mas então lembras‑te?
‑ Não. Não me lembro. Não quero lembrar‑me. Quero‑te daqui para fora. E já. ‑ virou‑lhe as costas e caminhou para a outra ponta do bar.
Vitor esticou‑se e pegou a empoeirada rosa vermelha. Dirigiu­-se para a saída soprando carinhosamente as pétalas, limpando o esquecimento que caía sobre um sonho comum, avivando juras que tinha deixado adormecer. Sentiu um nó na garganta. Ergueu os olhos para o horizonte, focando um navio que ao longe flutuava. Luzes na noite. Luz.
(continua)

6.3.06

Boa Sorte

Não percam este filme
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Não percam a oportunidade de ver um filme de hoje, filmado no melhor preto e branco de ontem. Como seria possível, a cores, ver imagens como esta?
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O filme relata uma história de há 50 anos com uma actualidade impressionante. Numa altura de caça às bruxas comunistas os Estados Unidos discutiram as liberdades individuais. Hoje, com o Patriot Act (renovado há dias apesar de tudo o que já se passou) a nação fica adormecida perante as iniquidades de um Estado que esquece os valores que defende ao pôr em prática a luta pela sua defesa. Pelo meio discute-se a televisão e o discurso é digno de envergonhar a televisão actual e a todos os que dela se alimentam.
A diferença de há 50 anos é tão grande como do preto e branco para a cor. Da máquina de escrever para o computador. Da integridade para a fidelidade cega. Dos princípios para a dependência.
George Clooney confirma-se como um realizador de mão segura. O texto é muito bom. E a interpretação de todos seguríssima. Destaca-se este senhor
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David Strathairn, pela sua presença e voz. Perfeito a preto e branco.
Não levou este filme nenhum dos óscares principais (nem sei se levou algum). Mas não precisa disso para ser dos melhores filmes do ano.
Uma palavra para a banda sonora: excelente. Com Dianne Reeves a actuar como cantora de Jazz. Não deve ter custado nada a interpretação.

3.3.06

Eurominas


Assim se vê como é eficiente o julgamento político das comissões parlamentares. Alguém acredita que uma estrutura de natureza exclusivamente política tem credibilidade na busca pela verdade?
Mais uma vez o parlamento e uma sua comissão, desta feita com maioria PS, procede ao branqueamento dos factos. Se assim não fosse o caso Eurominas teria sido, pelo menos, “investigado” pela comissão com a profundidade desejada pelos representantes dos demais partidos.
Não tendo sido assim, restam-nos conclusões viciadas pela disciplina partidária.
Palhaçadas.

2.3.06

Variedades em tempo de guerra

Se há filmes em que o casting é determinante para o seu sucesso, este Mrs. Henderson é um deles.
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A dupla Judi Dench e Bob Hoskins

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é perfeita no ritmo, na interactividade, na dinâmica demonstrativa da qualidade de quem representa há anos, e sabe como fazê-lo muito bem. No elenco encontramos ainda Kelly Reilly, de quem falei aqui a propósito de “As Bonecas Russas”, cuja intensidade da representação apenas é igualada pela beleza que expõe na tela.
O filme de Stephen Frears está muito bem construído. Passeando pela comédia com um cheirinho a drama, retrata tempos interessantes, anteriores e contemporâneos da 2ª Guerra Mundial, expondo-nos uma Londres conservadora exposta à evolução e à destruição, sempre com as contradições britânicas à flor da pele. E é baseado em factos verídicos. Vibrante na cor, na música, na excitação, este é um filme bem disposto, mas não fútil. Uma boa aposta para aliviar o tom pesado das últimas estreias, assentes em pesadas questões políticas ou consumidoras paixões (sejam de amor ou de trabalho).
Mrs. Henderson é, definitivamente, um produto de cinema, para o cinema, sem ter caído nos erros da produção “fast-food” americana.