7.3.06

"O Edifício da Verdade" - (17)


Saiu para a rua. A discoteca de néon não está mais ali. Aliás, nada mais está ali. Aquilo já não é Lisboa. Se é que alguma vez o fora.
Um sentimento, algo vindo do fundo do seu âmago animal, gritava‑lhe "Cascais! Cascais!", mas não parecia Cascais. E até parecia. A baía..., a zona velha. Só havia uma maneira de verificar.
Entrou para uma cabina telefónica, marcou o serviço de chamadas a pagar no destinatário, e pediu o número de Diogo.
‑ Desculpe, mas esse número não existe. ‑ respondeu solicita a telefonista.
‑ Como não existe?
‑ Não existe. Não foi atribuído. Tem a certeza de que é este o número que deseja?
‑ Tenho... Olhe, desculpe lá, mas já agora tente este outro. - ditou o seu próprio número.
Após um breve silêncio, a resposta num tom embaraçado:
‑ Não está a brincar comigo, pois não?
‑ Não! Porquê? O que é que se passa?
‑ Esse número foi desligado há dois meses por falta de pagamento.
Abandonou o aparelho, intrigado com o que se estava a passar. Parecia ter entrado no mundo de Rod Serling. Conseguia mesmo ouvi‑lo dizer: "You're now entering... the twilight zone. "
Como estar parado de nada adiantava, começou a caminhar pelo empedrado ribeirinho. Não via vivalma. Para criar ambiente só mesmo o som do mar a enrolar na areia. Pequenas vagas, compassadas, constantes. Uma brisa transportava um estranho odor a maresia. Mar, diesel, peixe, putrefacção... No céu, nem uma estrela. As nuvens mantinham um tecto compacto.
Lá ao longe, em lâmpadas de néon, desenhavam‑se as letras que indicavam vida: "O GREGO ‑ Bar ". Como tinha gente, decidiu arriscar.
Entrou, sentindo a indiferença dos presentes. Para além do empregado de balcão que se esmerava na limpeza de um copo, só mais um casal desaguisado, um bêbedo e uma loira deprimida, de olhos inchados.
O balcão repousava à sua direita, comprido, de madeira clara, ocupando toda uma parede. Tinha uma série de copos pendurados e no fundo espelhos espreitavam por entre uma série de garrafas "expostas para consumo da casa", e um conjunto de bandeiras e insignias académicas. Uma rosa vermelha, de plástico, encontrava‑se lá. Estava cheia de pó, esquecida entre tudo o resto. Algo arrasta o escritor até aos longínquos tempos da Faculdade de Direito.
Olhou para o barman que levantou a cabeça dirigindo‑lhe uma atenção forçada. Com algum espanto reconheceu-o, um antigo colega de faculdade, alguém a quem já chamou amigo.
‑ Ricardo?!
‑ Como?..., sabe o meu nome?
‑ Ricardo... Não te lembras de mim? Vitor... Vitor Cardoso!
‑ Vitor. De onde o deveria conhecer?'
‑ Foda‑se, Ricardo, da Fe‑Dê‑La!!
‑ De Direito?
‑ Sim. Lembras‑te do Nuno Figueiras?
‑ Claro!
‑ E não te lembras de mim?
‑ Olha lá... Nem penses que me enrolas. Daqui não levas nada à borla. Tás com sede bebe água do mar.
‑ Eh, pá, não quero nada disso... Só estou um pouco perdido.
‑ Não queres beber?
‑ Não! Mas dava‑me jeito uma ajuda.
‑ Claro! Dinheiro. Vai p'ró caralho. Põe‑te com merdas e eu ponho‑te na rua…
‑ Na rua... eh, pá, ... Lembra‑te do passado!
‑ Qual passado? Eu nem sei quem tu és. Da FDL, das centenas de pessoas que comigo falaram, já têm sorte os poucos com quem ainda me dou.
‑ Então, ... e os laços, o passado?
‑ O passado... É passado. O que me interessa é o agora. E agora... põe‑te daqui para fora ou consome qualquer coisa.
‑ Eh, pá ...Lembra‑te de tudo o que passámos juntos. Estou a cagar‑me para a ajuda... Só queria que te lembrasses.
‑ E eu queria mesmo que parasses com essas merdas.
‑ Mas...
‑ CALA‑TE!!! Quem te disse que eu quero recordar? Quem te disse que para mim o passado interessa? A mim não! Eu não sou desses que vai a jantares todos os anos. Eu vivo para o futuro.
‑ Mas o passado tem o seu valor.
‑ O passado "teve" o seu valor. Agora já passou. Se restam memórias já é bastante mau. As memórias são um peso. Peso morto. Peso que nos carrega. Algo de que temos de nos libertar se queremos ir em frente.
‑ Mas então lembras‑te?
‑ Não. Não me lembro. Não quero lembrar‑me. Quero‑te daqui para fora. E já. ‑ virou‑lhe as costas e caminhou para a outra ponta do bar.
Vitor esticou‑se e pegou a empoeirada rosa vermelha. Dirigiu­-se para a saída soprando carinhosamente as pétalas, limpando o esquecimento que caía sobre um sonho comum, avivando juras que tinha deixado adormecer. Sentiu um nó na garganta. Ergueu os olhos para o horizonte, focando um navio que ao longe flutuava. Luzes na noite. Luz.
(continua)

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