30.3.06

"O Edifício da Verdade" (20)

Ofegante. A sua respiração ofegante, o bater do coração descontrolado. Vitor continuou a correr. O silêncio permitia ouvir todos os seus movimentos. Os sapatos no empedrado escorregadio, nas poças. O silêncio apenas violado pelos seus sons. Sons que o rodeavam com uma intensidade brutal. Quem era aquele tipo? Porque o seguia? Parecia‑lhe conhecido. Parecia‑lhe um assassino.
"Merda de nevoeiro!" Continuava a correr sem ver bem para onde. Passo ritmado, constante. Boa fuga. Não sabia porquê, mas tinha que fugir dele. Olhou por cima do ombro e não viu nada. Só brumas. Só humidade.
Quando se virou para a frente sentiu o impacto. Os faróis mal se viam, mas a frente do carro era bem sólida. Apanhou o pancadão, rebolou sobre o capot e caiu para o asfalto. Deixou‑se ficar imóvel.
Uma mulher saiu do carro, num momento em que a visibilidade melhorava consideravelmente. Para além da côr do cabelo, nada tinha a ver com todas as outras mulheres que enfrentara nessa noite. Era alta, tinha uma expressão simpática. Boca pequena, olhos grandes por detrás de uns óculos largos. Usava um rabo de cavalo muito bem cuidado.
Debruçou‑se sobre o escritor:
‑ Desculpe, não o vi... Está bem?
Vitor contou os ossos. Mexeu‑se devagar, sentindo todos os músculos, todas as articulações, todos os membros.
‑ Acho que sim... ‑ sacudiu a cabeça, como se estivesse a aclarar as ideias.
‑ Sente‑se aqui um pouco. ‑ levantou‑o e ajudou‑o a sentar‑se no automóvel, um Mercedes muito confortável ‑ Quer um gole? – ofereceu de uma pequena garrafa que tirou do porta-luvas.
- Obrigado. – bebeu um pouco. Gin. – Acabou… - informou enquanto devolveu a garrafa.
- Venha até minha casa. Tenho lá mais. Além de merecer, quero ter a certeza de que está bem. Mas que ideia a sua, vir a correr assim numa noite de nevoeiro sem sequer procurar se vêm carros.
Vitor acomodou‑se, baixando um pouco o banco. Ela arrancou com um chiar de pneus. O escritor fechou os olhos. Mais chiar de pneus. Motor a alta rotação. Sentiu o carro a fugir de traseira.
Reajustou o banco e olhou para a estrada. E olhou para ela. A mulher estava bem bebida, reparou então. E conduzia como uma louca por ruas desertas que não reconhecia. Agarrou a pega da porta e fez força com os pés como se isso travasse a corrida desenfreada. Agora o tema da conversa era a ecologia. A ecologia? Como fora ela buscar o assunto?
A visibilidade aumentara. Adiante via-se bem uma rotunda. Tinham que parar para ceder a prioridade, tanto mais que enquanto se aproximavam uma carrinha de mercadorias branca entrou na rotunda e começou a dar voltas sucessivas ao redondel. O Mercedes estacou.
- Ah, queres brincadeira? – perguntou retoricamente a sua condutora. Com um chiar de pneus entrou na rotunda… em sentido contrário. Acelerou fundo.
O escritor gritou um “não” que saiu das suas entranhas mais profundas. Ambas as viaturas aceleraram em direcção a um ponto comum. Vitor assegurou-se que o cinto estava apertado e rezou para que o Mercedes tivesse air-bag para o passageiro.
À última hora, mas mesmo no último instante, desviaram-se os dois, um para cada lado, uma das rodas do Mercedes batendo com força no lancil do passeio central.
- Louca!!! Pare com isso. Trave que eu quero sair.
- Calma, estava tudo sob controlo.
- Como controlo!? Você está bêbeda! Imagine que se desviavam os dois para o mesmo lado?
- Não seja merdas! Tenha lá calma. Eu vou mais devagar.
No momento em que começava a chover ela baixou a velocidade para uns saudáveis 60 quilómetros por hora. Ligou o limpa pára-brisas. Calou-se. Por uns instantes o silêncio oprimiu o ambiente. Vitor pensava furiosamente em qualquer coisa para dizer enquanto relaxava, largava a porta e respirava mais lentamente. E pedia para que ela dissesse qualquer coisa. O silêncio era constrangedor. Ouvia-se apenas a chuva que se tornava intensa, e o chiar das escovas no pára-brisas.
Novo cruzamento. Este com STOP. Ela pára. As escovas param. Uma cortina de água enche o vidro.
‑ Parece que temos problemas...
‑ O que se passa? ‑ perguntou o escritor, a voz a fugir‑lhe após o prolongado silêncio.
‑ As escovas estão a encravar. Veja se consegue dar‑lhes um empurrão.
Vitor abriu o vidro, esticou o braço e empurrou a escova do seu lado. Ambas avançaram mas, no regresso, voltaram a parar. O escritor puxou. Nova volta. Nova paragem.
‑ Vamos tentar continuar assim. Eu não moro longe. ‑ dito isto, arrancou. Lá fora chovia. Vitor, de braço estendido, ora empurrava ora puxava uma escova teimosa. A chuva gélida magoava‑lhe a carne. O sangue custava a passar. Os dedos adormeciam‑lhe. A estrada alargara. De um momento para o outro pareceu‑lhe estar em Tomar.
À frente, um vulto. Era um homem. Algo dentro de si o fez ficar alerta. Empurra, puxa. Empurra, puxa. Aquele era o homem. Sim, lá estava ele à chuva, com o seu pato na lapela a reluzir... Empurra, puxa. Empurra, puxa. Viu uma estrada à direita. Num repente, puxou o volante àquela que o atropelara. O cama reclamou, mas fez a curva.
‑ Obrigado. Ia distraída e já não virava. Como sabia que morava aqui?
A estupefacção substituiu a resposta. Empurra, puxa. Empurra, puxa.. Seguiram mais uns minutos e chegaram. Vitor não sentia o braço direito. Os dedos não fechavam. Espirrou.
(continua)

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