21.3.06

"O Edifício da Verdade" (19)

Virou na esquina mais próxima. As ruas não tinham ninguém. Os seus eram os únicos passos que ecoavam na madrugada. Ao longo dos passeios, estranhamente, eram raros os carros estacionados, separados por poças pouco profundas. O alcatrão molhado reflectia a luz amarela dos candeeiros públicos excessivamente espaçados. Nas fachadas, luzes difusas tremiam atrás de estores e cortinas. Cheirava a chuva de Primavera, daquelas que fazem a terra crescer. Viu o rio. Viu a ponte D. Luis. Estava no Porto.
Aquilo não era o Porto. Não podia ser. Faltava a Sé. Faltavam as barracas dos vendedores da Ribeira. Faltava a gente. Faltava o espírito.
‑ Estás perdido. ‑ a voz quente e sensual sobressaltou‑o.
‑ Sim. ‑ admitiu enquanto se virava. Mirou‑a de alto a baixo. Era baixa, cabelo comprido até à cintura, loiro. Cara doce. Não tinha muitas curvas. O peito era decerto pequeno. A cintura estreita, as ancas largas. Não vinha vestida de maneira a revelar o seu corpo, mas parecia ser mulher com argumentos suficientes para enfeitiçar um homem, mesmo exigente. Emanava carinho e simpatia, bem como alguma fragilidade interior. Como se para ela, por muito boa que tentasse ser, a vida fosse madrasta. Como se facilmente baixasse os braços perante as contrariedades, sendo por isso levada ao desespero, às acções impensadas que acarretam um arrependimento posterior.
‑ És de cá? ‑ perguntou ela. O sotaque não era muito carregado, mas era suficiente para a enquadrar na cidade invicta.
‑ Creio que não. Onde é "cá"?
‑ Queres vir comigo? ‑ a resposta foi intencionalmente evitada.
‑ Para onde? Porquê?
‑ Queres ajuda? ‑ as questões sucediam‑se sem resposta.
‑ Sim. Talvez...
‑ Eu ajudo‑te. Se tu me ajudares.
‑ O que preciso de fazer?
Estendeu‑lhe a mão macia e quente.
‑ Vem. ‑ disse com uma firmeza adocicada.
Vitor seguiu‑a. Braços que se cruzaram. Vitor seguiu‑a. Vitor já estava por tudo. A mão dela passou pela sua cintura. A dele caiu-­lhe sobre os ombros. Vitor seguiu‑a. Até à porta, de uma das pequenas casas.
Entraram. O ambiente era acolhedor. Pouco espaço havia. Uma única divisão, com cama, mesa, sofá e kitchenette. Uma porta dava seguramente acesso à casa de banho. A janela sem cortinas mostrava a rua toda. Apesar de reduzida, a casa era um espelho daquela mulher. O cuidado com que as pequenas coisas estavam distribuídas denotava que nada ali fora deixado ao acaso. No fundo era a ordem exterior como compensação para a desordem interior. Só tarde demais Vitor percebeu isso.
‑ Queres ajudar‑me?
‑ Qual é o teu problema? ‑ perguntou o escritor.
‑ Não sei bem como to dizer... ‑ começou ela. De costas para ele despiu o blusão de cabedal que envergava. Não tinha nada por baixo. ‑ Acho que o meu mal é mesmo carência afectiva.
Avançou para ele.
A noite galopava na insanidade do irreal. Vitor já não se espantava por aquilo que só os seus personagens tinham direito a viver. O inusitado apetecido e simultaneamente assustador alimentavam o espírito aventureiro que apenas nos sonhos se tornava grande. Aceitando como inevtáveis as situações à medida que se sucediam, abraçou o mundo onírico. Desta feita, semi‑sencostado ao balcão que dava para a pequena cozinha, sentiu aquele corpo nu através da sua roupa. Os pequenos seios espetaram‑lhe o coração. Sentiu uma mão a desapertar a camisa amarrotada.
‑ Satisfaz‑me.
Outrora diria sim sem pensar. Porquê hesitar agora? Porque não uma noite de sexo? Sim, porque não? Olhou pela janela. Lá fora começava a choviscar. Sentiu-lhe o corpo quente.
‑ Está bem. ‑ beijou‑a. A loira desconhecida afastou‑se dois passos e desapertou as calças de ganga. Tirou‑as, ficando como a natureza a criou. Vitor olhou pela janela.
NÃO!!!
Calças de ganga. Sapatos de couro, clássicos, com atacadores. Camisa preta. Blazer informal verde, com um pato dourado a esvoaçar na lapela. Olhos verdes, frios. Nariz aquilino. Barba por fazer. Caminhava compassadamente. Na sua direcção.
Novamente o medo. O medo não! O pavor. Largou a correr porta fora, sem se ralar com a recém‑conhecida que o desejara. Esta, nua, seguiu‑o para a chuva, exibindo‑se para ninguém, numa ridícula tentativa para o suster. Vitor, com uma passada muito maior, afastou‑se num instante. Ela caiu de joelhos e começou a chorar, os punhos fechados a bater numa poça. Nem assim cumprira o seu desejo. A chuva miudinha a cair sobre a pele muito branca. O cabelo escondendo a face e as lágrimas perdidas. O seguidor ignorou‑a, passando no seu ritmo, como se não existisse. Vitor já ia longe, penetrando na bruma.
(continua)

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