Vitor Cardoso estivera a pé até perto do meio‑dia. Mais de dezoito horas seguidas de trabalho para poder entregar um novo romance ao exigente editor. As cinco horas de sono que conseguiu gozar souberam‑lhe a pouco, mas teve que se levantar. Apesar de ser já um escritor com sucesso, não podia evitar uma série de compromissos. O próprio sucesso impossibilitava-lhe outra opção. A festa desse dia era um desses compromissos, tanto mais que lá entregaria o original da sua nova criação.
De volta ao quarto, ergueu de uma só vez o estore, deixando entrar o sol poente que amarelava sobre as paredes. Cerrou os olhos perante a agressão brilhante que o cobriu e abriu a janela para deixar entrar o ar frio. Sentiu uma corrente de energia positiva. Lá fora, nem uma nuvem, nem um farrapo maculava o céu azul.
Vitor vivia num apartamento pendurado ao abrigo das muralhas do Castelo de S. Jorge, em Lisboa. Apreciou, pois, o Tejo sulcado por cacilheiros frenéticos no seu vai‑e‑vem diário. Apreciou as vizinhas que, lá em baixo, conversavam em voz alta de janela para janela. Apreciou a passarada que iniciava o recolher às escassas árvores que lhes serviam de lar. Apreciou o som de um eléctrico e da campaínha que fez soar enquanto rolava uma ruas abaixo. E sentiu um amargo de boca quando viu um casal que namorava num canto da rua, junto de umas escadas antigas.
Nunca encontrara alguém que justificasse um desejo perene, estável, e nem sabia porquê. Não se fazia de esquisito, excêntrico ou desagradável, mas todas as relações passadas foram efémeras e nunca o marcaram. Por isso, Vitor, com trinta e cinco anos a completar dentro de dois dias, era um homem só. Um homem sem mulher, e quase sem amigos de verdade. Um homem que só se tinha a si.
(continua)
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