14.11.05

"O Edifício da Verdade" (4)

Sete horas. O sol já quase não se via, o que levara a temperatura a descer para a escala do frio. Doze de Outubro. Céu limpo. Acentuado arrefecimento nocturno.
Saíu de fato escuro e um laço ao pescoço. O sobretudo protegê‑lo‑ia do vento e do frio que caminhavam juntos vindos do mar. Desceu a pé as ruas estreitas daquela parte velha da cidade, encaminhando‑se para o rio. Seguiria ao longo deste até ao Cais‑do‑Sodré, onde apanharia o comboio.
Apesar de todo dinheiro que ganhava, Vitor não tinha carro e evitava conduzir. Decidira ser radical no momento em que quase se matou. Ia a caminho dos trinta quando bateu com o seu BMW a mais de duzentos quilómetros por hora. Ia bêbado, e não se lembra de nada a não ser de acordar no hospital. Sentiu-se então perante a necessidade de escolher, um dilema. Ou deixava de beber ou de conduzir.
Na sua vida, o álcool tinha marcado as grandes viragens. Tivera as melhores ideias sobre os efeitos do álcool. Conhecera e perdera as melhores mulheres sob os efeitos do álcool. Apertou a não ao Presidente da República sob os efeitos do álcool. E por causa do álcool, seu amigo inseparável, deixou de conduzir.
Não tinha medo de andar a pé. Nunca fora assaltado e acreditava que nunca o seria. Além do mais, gostava de andar junto com as pessoas, junto com a mole humana. Gostava de olhar alguém e imaginar quem seria, como seria. E se a ideia lhe agradasse, de imediato puxava do papel e escrevia o que lhe vinha à mente. Assim criava os seus personagens.
Era‑lhe por demais agradável moldar aqueles que o rodeavam. Trabalhá‑los a gosto, dando vida a imagens que nos são indiferentes. Quantas vezes nos cruzamos com as mesmas pessoas, aquelas que todos os dias nos acompanham nos transportes públicos? Quantas vezes desejamos saber quem são? O que são?
Para Vitor era diferente. Andar de comboio, de autocarro, de metro, não era rotina. Era uma viagem à fonte da criação. Uma investida ao reino da matéria‑prima. Para ele as pessoas nunca eram as mesmas. E nunca ficavam vazias pois que, apesar de com elas nunca comunicar, acabava sempre por as encher, as completar. Aquela velhinha de ar triste? Está desolada por o neto se ter deixado envolver pelo mundo da droga. Aquela jovem com ar sonhador? Descobriu que vai ser mãe dentro de meses. Aquele velho rabujento? Um autêntico Scrooge português. O jovem com olhos frios? Procura coragem para fazer frente àquele que o explora. Ou não! Ou algo completamente diferente!
No fundo era isto. Os transportes públicos um dos lugares mais férteis em matéria‑prima. Gente feia, gente bonita. Gente rica, gente pobre. De tudo se vê. Do pedinte ao jovem empresário. Da matrona à senhora de bem. Crianças, velhos, toda a gente acaba por andar de transportes públicos. E as conversas? Como era, delicioso ouvir uma conversa alheia e buscar nela uma ideia nova. E cortar o que se acha mal. Refazer, reescrever, elaborar, cortar, meter, dominar tudo e todos...
O poder...
Tocou levemente no CD que levava no bolso do casaco. Ali estava a sua última criação. Idealizara toda a trama enquanto olhava para dois casais de jovens que alegremente conversavam num café. Esses jovens, que não conhecia de lado nenhum, mas que no seu espírito criara e dominara, eram os seus personagens. Às vezes pensava se porventura essas pessoas, caso lessem os seus livros, se reconheceriam. A forma era a mesma. O conteúdo, esse, só por sorte coincidiria.
Sentou‑se no comboio, olhando, absorvendo. Adorava a viagem até Cascais. Aguardou o seu começo entre gente que passava. Que escolhia criteriosamente o seu lugar, enquanto o podia fazer. Com o aproximar da partida, aumentam os passos, numa correria frenética, desenfreada. A furiosa luta por um lugar sentado.
Tuuut... Um apito. Um estremeção. Fecham‑se as portas. Solavancos. Movimento. A composição, bamboleando‑se de agulha em agulha, demora a chegar à linha principal. Suavemente, aceleramos.
Santos é uma paragem breve. Porto de Lisboa. Em tons de laranja mortiço, sujo e gasto. Uma parede dos primórdios do século feita de tijolos pequenos, compactos. Porto de Lisboa. Barcos atracados. Sempre sós, sem movimento. Descansando entre viagens, ao sabor das insalubres águas do Tejo.
Alcântara. Nova Paragem. Novo arranque. Ocupam‑se os últimos lugares. Não fora a hora de ponta e teria Vitor presenciado o curioso ritual pelo qual as pessoas se evitam. Ocupam o lugar que resta vago, na esperança de que ninguém o queira tomar. Mas não a esta hora. Não há lugares que o permitam. Por muito má que seja a companhia, não é suficiente para afastar o desejo por um lugar sentado.
A viagem ganha rotina. O comboio acelera e avança uniformemente linha fora. Nuns breves trinta minutos chega a Cascais. Trinta minutos que chegam para tornar o dia em noite.
(continua)

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