16.11.05

"O Edifício da Verdade" (5)

Apanhou um táxi, tendo por destino a casa do editor. A festa de aniversário do seu casamento, o segundo, por sinal. Não tinha muito prazer na celebração. Mas o homem era uma peça deveras importante e, de maneira alguma, poderia fazer‑lhe uma desfeita. Decerto encontrar‑se‑ia com a concorrência, com muita gente oca e, sentindo‑se desenquadrado e sem trabalho pela frente, lá iria acabar por beber mais do que seria aconselhado.
Eram oito e um quarto quando tocou à campainha. Um empregado de ocasião, muito prestável, abriu‑lhe a porta, recebendo‑o e ficando‑lhe com o sobretudo. Ainda não estava muita gente. No salão, quatro casais e um grupo de três jovens moças já bebericavam alguns aperitivos. Conhecia‑os de outras festas, as mesmas poses, as mesmas bebidas. Felizmente viu Carlos Morais, o editor, acompanhado da bela esposa Cláudia. Estavam de pé, muito bem vestidos, escondendo excelentemente que já caminhavam para lá dos cinquenta.
Cumprimentou‑os, felicitou‑os e, a título de presente, entregou a Carlos o CD-ROM.
‑ Parabéns. Aceita como prenda. Se te der tanto dinheiro como o último, será a prenda mais valiosa de hoje. Também o mandei por e-mail para o teu endereço na editora.
‑ Obrigado. Vou pôr isto a imprimir. Talvez ainda o comece a ler hoje.
‑ Não faças isso. Esse é para começar e acabar logo de seguida. Não dou tempo para respirar. E, aliás, acho que hoje deverás ter outras coisas para, fazer na cama para além de ler, não?
Riram ambos perante Cláudia que corara ligeiramente, mas não evitara um sorriso cúmplice. Faltava pouco para o enfadonho jantar. A noite ia ser longa. Muito longa.
Para o jantar, o grupo foi reduzido. Vinte pessoas à volta de uma mesa em que se serviram as melhores iguarias preparadas por requintadas mãos, e em que o nível cultural foi extraordinariamente baixo. Vitor odiava estas ocasiões. Odiava as formalidades e odiava o vácuo intelectual que o rodeava. Sempre grande apreciador de conteúdos, desprezava o superficial. Por isso se sentia mal nas festividades da chamada alta sociedade. Uma alta sociedade frágil, construída no dinheiro, inundada pelo novo riquismo consumista, e incapaz de uma única criação cultural.
Já estavam longe os tempos em que tentara mudar alguma coisa. Mas depois de por várias vezes se sentir alvo de chacota e incompreendido ao tentar originar conversas dignas de tal qualificação, desistiu, passando a ser mais um peixe a seguir a corrente. Não se tornara um deles, mas também não faria mais nada para os contrariar. Arrumara‑se na sociedade. E apenas não renunciava àquelas provações por delas depender. Não tinha o estatuto de génio incompreendido para se poder alienar do meio que o alimentava e por isso, sem prazer, mas com um objectivo, deixava-se arrastar pelos ventos áridos.
Depois de um jantar em que fez questão de consumir uma boa quantidade dos excelentes vinhos servidos, encostou‑se a um canto do salão bebericando um Porto enquanto assistia à entrada, pelo lado oposto, daqueles que foram convidados apenas para a festa. Era de um mau gosto terrível. Juntava gente que, na mesma noite, sabia ter tido um tratamento diferente. Amigos de primeira, e amigos de segunda. Os senhores e a plebe.
Esperava sinceramente ver alguém do seu agrado. Via caras angustiantes. Via ex‑amigos. Via pessoas que lhe vinham falar, mas das quais queria distância. Via mulheres com as quais cometera erros. Via esposas com as quais enganara os maridos que agora as levavam pelo braço. E no meio de tanta gente era incapaz de encontrar sobre o que escrever, tal era a falsidade que o rodeava.
Sentiu um prazer incontrolável quando viu entrar o seu amigo e companheiro Diogo. Este, assim que se livrou dos aniversariantes, encaminhou‑se para Vitor com um enorme sorriso.
Diogo era um arquitecto com algum renome apesar dos seus trinta e três anos posto que tinha um estilo muito próprio no seu trabalho que já lhe ia dando destaque e reconhecimento. Em pessoa, também não seguia as convenções e era dos poucos que não estava formalmente vestido. Envergava umas calças de fazenda preta, sobre umas grossas botas de Inverno, assim como uma camisola de gola alta negra e um blazer da mesma côr, mas com uns leves traços de um vermelho morto que desenhavam um quadriculado largo. Cabelo curto, barba pequena apenas à volta da boca e no queixo, óculos ovalados pequenos, sem aros e hastes quase invisíveis de tão finas. Não obstante a simplicidade das escolhas, era incrível como sobressaía do vulgar se bem que, se assim o desejasse, conseguiria passar despercebido.
‑ Vitor, grande escritor, como vai isso?
‑ Menos mal, menos mal. E contigo arquitecto de prédios para demolir? ‑ retribuiu enquanto trocavam um caloroso abraço.
‑ Óptimo, óptimo. Já não te via vai para um par de meses.
‑ Estive enclausurado a acabar o último conto de fadas. Aliás, cheguei a ir um mês para os Açores para acelerar o trabalho.
‑ Açores? Bem, bem... Eu fiquei por cá. Acabei agora uma sede de empresa, daqueles edifícios que ninguém gosta, a não ser quem os criou.
‑ Mais uma torre branca?
‑ Exactamente. Vou agora gozar um mês de férias. Queres vir?
‑ Também mereço. Mas..., e aquela moça, a Mariana?
‑ Já era. Sabes como é..., nunca consigo aguentá‑las mais que um ano... Por isso é que podíamos ir juntos. Partir para o engate. Suponho que ainda não encontraste a mulher, pois não? - entoou com gozo.
‑ Não. Nem de perto.
‑ Estás a ir pelo mau caminho. Faz como eu. Se ela existir, encontrar‑te‑á.
‑ Vamos a ver, vamos a... Olha lá, ‑ disse mudando o tom, - ­aquele não é o Marcello?
Diogo virou‑se e assentiu:
‑ Sim, ele, a irmã e uma tipa que não conheço. ‑ quando voltou a olhar para Vitor, viu‑o concentrado na desconhecida.
‑ Não... aquilo não, Vitor. Nem sonhes com ela. Não é mulher para ti. Encontrarás muito melhor.
- E porque dizes isso com tanta segurança?
- Ela está com o Marcello, não está? – deixou no ar.
(continua)

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