(continuação)
17
EM VIAGEM
Durante semanas a chuva irregular e o frio gélido desencorajaram qualquer aventura fora de portas. Porém, a animação no interior da casa espelhava a motivação que os novos projectos tinham inspirado.
Todos participavam, ou queriam participar, como arquitectos, engenheiros e mestres de obra das novas habitações. Na casa principal ficariam apenas a viver Luis e Inês num quarto, Vasco e Luisa noutro, Pedro e Nuno, cada um, num dos pequenos quartos, ficando o restante a servir como escritório. Mário, Rita e as suas filhas ganhariam um novo abrigo, o maior, com dois quartos e uma zona comum de permeio. Mais dois seriam construídos, um para Patrícia e outro para Susana e Jorge.
Como bungalows de um parque de campismo nasceriam assim três novas casas, pouco mais que espaços para dormir e estar com privacidade.
Com ansiedade esperaram que o barómetro subisse e, com uma temperatura menos agreste, os convidasse a sair para o céu azul. Já estavam no final de Janeiro quando isso aconteceu, dois meses tinham passado desde o ataque dos cães selvagens.
- Será sensato saírem todos ao mesmo tempo? – era Rita quem expressava o seu receio.
- Não creio que haja problemas. O Vasco e o Luis vão apenas ali ao Monte Branco num instante. De bicicleta é meia-hora de viagem para ir e vir, pedalando devagarinho. Se lá estiverem os tipos que vimos em Outubro será só o tempo de uma conversa. – sossegou o seu marido.
- A divisão de tarefas é segura? Vais bem a Estremoz?
- Já discutimos isso. O Luis e o Vasco vão ao Monte Branco porque são os mais velhos e experientes para poder avaliar a situação e fazer diplomacia se necessário. O Pedro fica convosco, para não ficarem apenas as mulheres em casa, sem quem as proteja. – riu.
- Sexista! – apelidou Rita com ar de gozo.
- Sim, mas é preferível isso e sentir-vos seguras. A todas vós, em particular a ti e às miúdas. E aqui entre nós, só estou a ver o Pedro ou a Inês a guerrear. Tu não tens fibra bélica.
- Lutarei como for possível, se precisar. Mas não me estou a ver a disparar armas... isso ainda não.
- Vês?... Enquanto isso eu vou com o Jorge e o Nuno a Estremoz. Somos os mais jovens e fortes, - disse fazendo o gesto de quem está a fazer músculo, - para poder carregar a carroça que o boi puxará. Além do mais, eu sou o único com a experiência para reconhecer o que valerá a pena trazer e o que será lixo. Não te preocupes. Em três dias estarei de volta.
- Tenham cuidado. – disse abraçando o marido.
Nos preparativos para a partida um grupo reuniu-se a aparelhar o boi à carroça. Um pouco afastados, Vasco e o seu filho falavam com Luis e Pedro.
- Uma vez que ficas cá, já sabes, Pedro... nunca acontece nada mas se for preciso as duas G-3 estão debaixo da minha cama. Tu e a Inês podem, e devem, usá-las se for preciso.
- Não vai ser. Passaram-se muitos anos desde que usei um canhão daqueles e garanto-te que não vai ser agora que vou voltar a disparar uma G-3. – passou a mão ossuda pelo cabelo branco que cobria, farto, a sua cabeça. Tinha, como de costume, a barba por fazer, também ela espreitando grisalha à volta da boca pequena. Os olhos brilhantes, escuros, refugiavam-se encovados, mas sorriam tanto como os lábios sempre esticados. Pedro era o mais baixo de todos os homens do grupo, e exibia uma magreza confrangedora, resultado do esforço físico a que estava a ser sujeito e ao qual ainda não se habituara.
- Mas se for preciso...
- Claro, Luis, se for preciso sabes que podes contar comigo. Espero.
- Gostava que fosses mais seguro.
- Desculpa lá, mas não está no meu sangue esse teu espírito bélico. Mas fica descansado, porque ainda recordo o que aprendi há quase trinta anos. E o meu sentido de auto-preservação é grande e estende-se a todos os que comigo estão. Em todo o caso vocês estarão de volta à hora de almoço.
- Nuno, - apelou o seu pai, - eu e o Luis decidimos que tu levarás uma das Glock.
- Porquê?
- Porque vocês podem precisar.
- Sim, mas porquê eu? Sou o mais novo do grupo...
- Mas o mais calmo e determinado, - explicou Luis – o que é fundamental. O Jorge é demasiado exaltado, instável, pelo que me custa confiar-lhe uma arma. E duvido que o Mário consiga disparar qualquer arma ou acertar no que quer que seja.
“Confio em ti, que apenas a usarás se for mesmo preciso e que, nesse caso, a usarás bem.
- Guarda-a na tua mochila e não digas que a tens.
- Bolas, pai, não consigo compreender essa desconfiança. De onde vem tal coisa?
- Quanto menor for o acesso às armas, mais segura será a nossa vida. Aprende isso.
- Vocês levam a caçadeira? – perguntou Pedro.
- E a outra pistola. Aquele grupo estava armado, pelo que não custa nada ir com cautela.
- Tenham cuidado.
- Vamos todos ter cuidado, o.k.? – finalizou Vasco.
No dia em que o grupo de Horácio Sousa abordou o Monte das Murtas, Jorge mostrou toda a surpresa ao saber da existência das duas pistolas. Quando os ânimos acalmaram, reclamou a sua ignorância e exigiu saber que armas havia e onde estavam interpelando Luis. Este, quase instintivamente, omitiu as G-3. Quem delas conhecia logo se apercebeu disso, mas respeitou a sua decisão e alinhou no seu segredo. Só mais tarde Luis confidenciou a Pedro ter aquelas duas armas em seu poder.
Quando naquela manhã se preparavam para partir, Jorge abordou Luis para lhe pedir uma pistola.
- Vejo que levam a caçadeira convosco. Eu deveria levar uma das pistolas.
- Porquê?
- Porque somos três, vamos para longe, e seguramente dormiremos fora.
- Não concordo. As armas fazem mais falta aqui, no monte, para se for preciso defender os que cá ficam. Lá fora serão mais um factor de risco.
- Então porque vai o Vasco de caçadeira ao ombro?
- Porque aqueles tipos que vamos à procura estão armados, isso já nós sabemos.
- E se formos assaltados? Eu quero uma pistola, Luis. – o tom era cada vez mais insistente, mostrando-se Jorge preparado para argumentar contra qualquer fundamentação.
- Não levarás a pistola.
- E quem és tu para decidir isso?
- Da última vez que reparei era o dono da casa, do monte, das armas... Vocês não vão precisar de qualquer arma.
- E se nos aparecer alguém pela frente?
- Não aparecerá. Não vais encontrar ninguém com menos de sessenta anos. E se vieste de Lisboa para aqui desarmado decerto sabes como viajar assim.
Jorge ainda abriu a boca, mas não deixou sair qualquer som. Ficou em suspenso por uns instantes mas acabou por virar costas e afastar-se em direcção ao barracão dos animais.
Pouco depois partiam, em passo lento acompanhando a besta de carga.
- Relembra-me lá como é que um tipo como o Jorge apareceu neste nosso grupo. – pediu Luis a Vasco enquanto deslizavam nas bicicletas sobre o estradão de terra, agora muito esburacado com as chuvas desse ano.
- Foi a Luisa quem o conheceu. E lembra-te que aquele episódio na Rússia decerto lhe deixou marcas que o tornam assim excitável. Mas o tipo ainda não fez nada de extraordinário. Estás a exagerar, não? Tu com a idade dele também eras mais impulsivo.
- Talvez... mas não me sinto à vontade com ele... há qualquer coisa no meu íntimo que de diz para não lhe dar armas... até me arrepio com isso, brrr!
- O Jorge quer acesso às armas. Nos dias de hoje isso é perfeitamente legítimo. Já viu muita coisa em Lisboa que justifica os seus receios, já sentiu na pele o que é estar desprotegido. Tens que o compreender. Na posição dele farias o mesmo.
“Justificava-se que falasses com ele a sério sobre as armas, lhe mostrasses as G-3 e o ensinasses a disparar como fizeste com o Nuno. Só tínhamos a ganhar com isso. Precisamos de gente nova e forte para partilhar estas ingratas missões.
Após uns segundos de pedaladas em silêncio, Luis respondeu.
- Talvez tenhas razão.
Continuaram com o ruído característico dos pneus a rolar na terra ainda húmida.
O boi caminhava seguro em passo leve, vazia que estava a carroça que arrastava atrás de si. Para não o sobrecarregar os três homens caminhavam a seu lado, incentivando a besta a avançar sem parar.
Agasalhados com gorros, luvas e cachecóis acompanharam com o olhar os dois ciclistas que desapareciam. Mário mostrou-se determinado.
- Bom, meus amigos, vamos a ver se conseguimos dormir apenas uma noite fora.
- Será possível? – questionou Jorge.
- Se conseguirmos chegar a Estremoz em cerca de seis horas como espero, agora que vamos leves, ainda temos tempo para fazer o levantamento do material, procurá-lo e até recolher algum. Amanhã seria só carregar o resto e partir. Com carga a viagem poderá demorar-nos umas dez horas.
- Eh lá, tanto?
- Sim, Nuno. O boi não fará mais rápido que isso. E é porque quase não temos subidas que se vejam.
- Quanto a irmos leves agora, todos sabemos que isso não se aplica a ti. – riu Jorge.
- Ah, Ah, que piadinha... – Mário exibia uma barriga proeminente, resultado de muitos anos de cerveja, carne e batatas fritas. Apesar da nova dieta vegetariana e dos esforços físicos o terem ajudado a emagrecer um pouco, a falta do stress com que vivera durante anos convidava-o a comer para compensar, e por isso era o mais gordo de todo o grupo. Ainda assim, exibia força como se constatava quando deitava as mãos a qualquer peso para o deslocar. Apesar dos seus trinta e oito anos, apresentava uma careca no alto da cabeça que tentava compensar deixando crescer o resto do cabelo fino. As suas bochechas frequentemente rosavam, como agora, expostas ao frio do caminho.
- Já sabes onde procurar a madeira que precisamos?
- Em Estremoz há dois sítios que creio poderão servir. No início ainda pensei na serração mas aí deverá ter sido o primeiro lugar onde foram buscar madeira para se aquecerem. Resta-nos a velha estação de comboios, que tem uns pavilhões antigos, em madeira boa. E o regimento de cavalaria onde em tempos havia uns pré-fabricados. Aposto seriamente aqui, porque se ainda lá estiverem em condições, poderemos desmontá-los para remontar aqui no monte. Com a vantagem de estarem já preparados com portas e janelas.
- Tenho dúvidas sobre se conseguiremos transportar tudo aqui.
- E tens bem. Não penso conseguir trazer mais do que suficiente para uma das construções. Ao todo teremos que ir a Estremoz numas quatro viagens.
Caminharam em silêncio em direcção ao alcatrão da velha Estrada Nacional nº 245. Ainda antes de sair da terra batida Nuno olhou para trás e notou o monte desaparecido na paisagem. Comentou.
- Como raio aqueles viajantes deram com o monte? Daqui já não se vê nem a casa, nem o barracão... nada.
Olhando para trás Jorge ensaiou uma resposta.
- Devem ter visto o fumo da lareira... só pode ser isso. Ou então aventuraram-se muito fora dos trilhos.
Mais adiante, onde a faixa de terra batida encontrava o alcatrão envelhecido Nuno insistiu.
- Vejam como os arbustos já ameaçam fechar o estradão. Aqui da estrada nacional começa a ser difícil perceber o caminho de terra... Já cá não passava desde a última vez que fui a Estremoz.
“Se calhar devíamos investir nisso.
- Em quê?
- Em dar uma ajuda à natureza e fazer as plantas esconder o estradão. Assim mais dificilmente alguém se lançaria por aqui acima até ao monte.
- Posso até estar a ser paranóico, mas a tua sugestão é muito boa. Toda aquela gente a chegar há dois meses deixou-me inquieto.
- A ti e a toda a gente, Jorge. Depois do que vimos em Lisboa.
- Sim, mas toda a gente sabe que eu já vivi tempos difíceis nos sítios por onde andei em trabalho. Fiz reportagens em clima de guerra, em cidades vítimas de cataclismos naturais, em zonas de terrorismo, e nunca senti isto, tirando naturalmente no meu rapto... mas isso está para lá do concebível.
- Talvez porque, excepto nesse episódio, sabias sempre que tinhas um avião ao alcance de um pedido que te tiraria dali e te devolveria ao conforto e segurança da tua casa.
- Sábias palavras disse o mais novo de nós os três. - concordou Mário, - E hoje apenas podemos chamar casa a este monte que nem nosso é. Se o Monte das Murtas deixar de ser seguro, deixamos de ter porto de abrigo onde encontrar refúgio.
- Talvez essa seja a explicação mais correcta de tão simples que é. – arrematou Jorge espreitando por cima do ombro.
- Avança agora com cuidado. – avisou Vasco em baixa voz, entrecortada pelo ofegar provocado pelo esforço feito no frio.
- Está tudo muito calmo. É melhor não parecer furtivo.
- Tens razão. Mas ir a peito descoberto pode ser tonto.
Estavam já nas imediações do Monte Branco, o qual aparecera no horizonte ainda distante. O silêncio à sua volta coincidia com a imobilidade visível. Nada nem ninguém se mostrava aos olhos dos ciclistas.
Conforme avançaram pedalando aperceberam-se que se acumulavam os indícios de abandono daquele monte. A vegetação invadia os caminhos, não se viam zonas cultivadas, animais ou vestígios de água, tanto mais que o moinho de vento estava travado na ferrugem. À casa faltavam algumas telhas, tinha as portadas todas encerradas e a sardinheira crescia para a entrada.
Parando as bicicletas em frente à construção Vasco concluiu.
- Nem vale a pena chamar por alguém. Aqui não mora ninguém.
- Aqui viviam dois velhotes. O homem morreu vai para quatro anos, depois de levar um coice de uma mula. A mulher, furiosa, deu dois tiros no animal e morreu três semanas depois, dizem que de desgosto.
- Mas depois disso acho que mais ninguém para cá veio. O grupelho de Horácio Santos nem meteu aqui os pés.
- Deveriam preferir ficar connosco. Tinham um monte melhor, já preparado e com muita comida. Aqui tinham trabalho demais. Por onde andarão?
- Não sei... mas de repente fiquei mais incerto quanto à segurança do meu filho.
- Achas?
- Não sei porque razão não vieram para aqui, depois dos termos despachado...
- Se não voltaram ao nosso monte é porque não são perigosos nem mal-intencionados. - interrompeu Luis.
- Passou-se mais de um mês, dois meses, de chuva e frio. Se não estão aqui onde estarão? Não sei se foram para longe se ainda andam por aí.
- Como andam por aí? Tu próprio o disseste, com esta chuva e este frio, ficaram por perto à espera de quê? E em que condições?
- À espera... – começou Vasco como se tivesse sido iluminado, - à espera que saíssemos de casa, que fragilizássemos as nossas defesas. Tu mesmo o referiste, o nosso monte tem recursos muito apetecíveis, e ao darmos aqueles sacos de comida revelámo-los.
- Achas que eles aguentariam dois meses em vigilância?
- Se tivessem ido para outro monte diferente... teriam a certeza que não os encontraríamos aqui.
- Oh, Diabo! E hoje desmobilizámos e separámo-nos.
Com um olhar, arrancaram pedalando forte.
- Como pudemos ser tão estúpidos. - gritou Luis.
- Tem calma. Vais ver que não é nada disso.
Ofegantes, suados e notoriamente cansados chegaram ao Monte das Murtas para o encontrar preguiçando sob o sol que rompia a neblina matinal e estendia uma calma capa sobre o verde fundo. Marvão e Beja estavam pouco activos, e pela sua atitude tinham reconhecido os ciclistas havia muito, pelo que se mantinham deitados à espera de aquecer a humidade da noite. Pedro e Susana, que se dedicavam à diária tarefa de cuidar dos animais viram-nos chegar e, surpreendidos pela rapidez do retorno, foram ao seu encontro.
Uma vez esclarecidos dos receios de Luis e Vasco esclareceram.
- Não creio que isto pudesse estar mais calmo. Nós aqui, a Rita com as miúdas a dar-lhes a aula do dia, a Patrícia e a Luísa lá mais abaixo apanhando umas frutas e a Inês na cozinha. Creio que estão enganados.
- E ainda bem. – completou Susana.
Ainda assim deram uma cuidadosa volta aos arredores, mas não viram vestígios de alguém que fosse. Reunidos todos junto ao alpendre, conferenciaram.
- Ainda não me sinto descansado... já nem é por nós, mas pelos outros três, pelo meu filho.
- Porque não vais com eles? – opinou Luisa para o marido.
O olhar deste encontrou o de Luis e depois o de Inês.
- Vai, - respondeu o primeiro, - vai e leva contigo a caçadeira. Sentir-te-ás mais seguro. E nós também.
- E vocês?
- Nós ficamos bem, não te preocupes connosco.
E assim, dez minutos depois, Vasco partia numa bicicleta, certo que conseguiria apanhá-los rapidamente. Esperava que nada lhes acontecesse, a caminhar como iam ao lado daquele boi, apetitoso naco para barrigas há muito vazias.
No céu, onde a neblina das primeiras horas do dia dera lugar ao azul sem nuvens, um traço branco riscava a perfeição, como se o pintor se tivesse cansado de usar a tinta azul e cortado a tela que se expunha na sua crua cor original.
Foi Mário quem nele primeiro reparou.
- Caramba!, olhem para ali! Um avião. Nem sabia que ainda havia combustível para os fazer voar.
- Incrível. Há já tanto tempo que não via sinais de aviões. – Nuno cobriu os olhos com a sombra da sua mão. – Será que descobriram algum combustível alternativo?
- Não me parece. Claramente que os governos, em especial os mais ricos, têm reservas de gasolina para as suas armas mais mortíferas. Estou certo que aquilo é um avião de guerra. – afirmou Jorge, convicto.
- O que andará por aqui a fazer?
Enquanto partilhavam interrogações de nariz no ar não se aperceberam da bicicleta que rapidamente se aproximou galgando o alcatrão. Apenas o som dos travões chiando os fez regressar à terra, surpresos com a presença de Vasco. À surpresa juntaram apreensão quando este partilhou as notícias que trazia.
Continuaram os quatro, agora mais calados e mais alerta.
-Vamos passar a viver no medo?
A pergunta de Luisa caiu na mesa sem qualquer aviso prévio, interrompendo a sopa que todos partilhavam. O seu olhar ansioso fixou o de Luis que não soube o que responder.
- Pergunto se vamos passar a viver no medo?
- Viveremos como decidirmos viver. – Inês soou optimista e segura.
- Neste momento o meu marido e o meu filho estão longe, caminham armados e eu tenho medo. Tenho que viver assim?
- Há dez anos atrás terias medo que tivessem um acidente na estrada e morressem. Que viesse um tipo fora de mão, ou rebentasse um pneu a alta velocidade. E aprendeste a viver com esse medo. Hoje apenas estás perante um medo diferente. Aprende a viver com ele!
O tom ríspido soou igualmente intolerante. Luis olhou surpreso para a sua mulher. Não estava habituado a ouvi-la falar assim.
Mas os olhos húmidos de Luisa prosseguiram.
- Que raio de vida é esta? Cresci num mundo muito melhor e não fui talhada para estes tempos. Estou farta de ter medo. Tive medo em Lisboa. Corrijo. Estive aterrorizada em Lisboa. Foi aterrorizada que vim para aqui. E neste sítio encontrei calma e paz entre plantas e bichos. Até que toda esta dinâmica e conversas de armas me devolveram o medo
“Tenho medo pelo Nuno, pelo Vasco, que andam por aí em busca de madeira. Tenho medo por nós, - continuou olhando em redor, e reconhecendo nos olhos de Susana uma perfeita empatia com aquilo que dizia, - aqui confinados num monte onde poderemos ser uma fonte de cobiça. Tenho medo por ser a única pessoa a falar nisto.
- Tem calma, Luisa. – o tom de Luis foi igualmente firme. – Durante anos houve gente a morar em montes alentejanos. Velhos e novos, depois da venda da cortiça, ou às vezes mesmo sem qualquer dinheiro, foram roubados, violados, maltratados.
“Durante anos gente morreu na cidade. Ao arrepio de polícias e vizinhos próximos, os jornais noticiavam homicídios, violações, roubos, incêndios, derrocadas.
“Que consolo tinhas então? Saber que se os criminosos fossem apanhados iam malhar com os ossos na prisão? Triste consolo para a vítima. Mas era assim a sociedade. Era assim o mundo melhor em que cresceste. Hoje já não há tribunais. Nem cadeia. Nem polícias. Só podes contar contigo e com os teus. Ser justa mas implacável. Amiga mas cautelosa. E se necessário lutar e defenderes-te. Defenderes o que é teu. – a emoção cresceu na voz de Luis e as palavras ficaram mais contundentes.
“O que resta da nação é um território anarca. Cada grupo, cada gang, organiza-se como entende. Certamente terás democracias, ditaduras, oligarquias, tiranias, matriarcados, triunviratos ou simplesmente hordas selvagens que se submetem ao macho dominante, sempre a ter que resistir ao ataque de pretendentes àquele estatuto.
“Por isso, Luisa, pega no teu medo e faz qualquer coisa com ele, em vez de te lamentares do que tens. Estás inserida num grupo, numa comunidade que vive segundo as regras de convivência de um grupo de amigos com interesses comuns a viver na mesma casa. Entre nós tens que estar segura. Connosco tens que te sentir segura. Porque isto é o melhor que tens, que poderás ter nos dias de hoje.
“Ao invés de partilhares a tua insegurança, com ela contaminando o grupo, acredita nele e a todos nós vem buscar forças para vencer os teus medos.
“O teu filho e o teu marido estão acompanhados por outros dois homens. Estão armados... e o Vasco é o melhor atirador com caçadeira que alguma vez vi. O Nuno sabe disparar uma pistola com segurança e tem um claro discernimento e ponderação. Que mais poderei dizer-te?
“Algo poderá correr mal com eles? Sim. Poderá. Poderá sempre. Até aqui em casa. Mas se me perguntares se lhe vai acontecer algo, a resposta afina pelo diapasão das possibilidades, que são muito pequenas.
O silêncio que se seguiu registou o eco das últimas palavras, à medida que eram rechaçadas ao longo das paredes. À mesa todas as mulheres olhavam a cabeceira onde Luis se sentava, e fixavam os seus olhos emocionados. Rapidamente, como num jogo de ténis, olharam Luisa, na outra ponta da mesa à espera da resposta que nunca aconteceu. Perderam-se então na comida todos os olhares algo embaraçados à espera que se quebrasse a tensão acumulada. Mesmo quando a colher de Luis regressou ao vaivém da tigela à boca o silêncio incómodo pediu para ser rasgado.
- Passam-me uma fatia de pão, se faz favor? – pediu Filipa. Pedro fez-lhe chegar o pão e ela disse, - Já agora, podiam tentar ser menos sérios e mais amigos?
Um riso leve contagiou toda a gente. Alguém introduziu logo um novo tema. A conversa regressou.
(continua)