(continuação)
15
LATIDOS
A chuva caiu durante uma semana sem parar, sem tréguas. Sem tréguas também se mantiveram os habitantes do Monte das Murtas, com um rígido esquema de vigilância com turnos de duas horas, acompanhados pelos incansáveis rafeiros alentejanos. Os cães perceberam o seu papel e nunca mais se afastaram da casa. Mesmo a dormir uma orelha acompanhava todos os sons. À menor suspeita levantavam-se, concentravam-se e, por vezes, ladravam um aviso.
Durante uma semana esperaram que aparecesse alguém do grupo de Horácio Sousa. Mas ninguém subiu o estradão enlameado. Ninguém calcorreou os campos em redor. Aos poucos retomaram o ritmo das tarefas relaxando no sobressalto.
Luis, desconfiado, propôs uma ida ao Monte Branco para saber dos visitantes. Mas foi desencorajado pelo bom-senso que lhe revelaram: se eles por lá ficaram e ainda não apareceram é porque querem ficar sozinhos, disseram-lhe. O argumento era tão válido que acatou a recomendação.
Estavam em finais de Outubro e, assim que a chuva parou, o frio acomodou-se e passou a cobrir as madrugadas de branco. Num desses dias coube a Rita levar as ovelhas à procura de pasto.
O sol brilhava no imaculado céu azul, mas pouco conseguia fazer para aquecer o ar que corria montado num cortante vento gelado. Animado de boa vontade, e farto que estava de nesse dia estar parado, Nuno ofereceu-se após o almoço para a ir procurar com um termo cheio de chá quente.
Antes de sair procurou Rita pelo intercomunicador, pelo que rapidamente a descobriu após uma curta caminhada. Aproveitou como farol os balidos das ovelhas que estavam estranhamente agitadas, apercebendo-se da razão logo que encontrou o pequeno rebanho. A mulher e os animais estavam em apuros pelo que largou a correr em seu auxílio sem sequer pensar.
À volta do pequeno rebanho, oito ou nove cães de pêlo sujo e dente arreganhado apontavam aos lãzudos ovinos. Juntos destes Rita segurava o cajado com as duas mãos como se de um taco de basebol se tratasse.
Imprudentemente, na sua corrida Nuno desatou aos berros captando a atenção dos animais selvagens que por momentos se distraíram das suas presas. Num primeiro momento, inseguros, os cães recuaram ladrando e rosnando, permitindo a Nuno juntar-se a Rita.
- Estás bem?
- Por enquanto. Vamos embora daqui?
- Já pediste ajuda pelo rádio?
- Não... quando apareceram assustei-me e deixei-o cair quando o queria ligar. Nem sei onde está.
- Então vamos tentar sair daqui, mas com calma, a ver se eles nos deixam.
- Não sabia que havia lobos assim.
- Não são lobos, são cães selvagens. Ou antes, que se tornaram selvagens quando foram abandonados pelos seus donos. Quando se foram embora deixaram-nos para trás e eles juntaram-se em matilha. Vivem no mato, morrem muitos, mas sobrevivem os mais fortes. E num instante se tornam selvagens. O Marvão não estava contigo?
- Não. Hoje não trouxe nenhum dos cães. Como não ia para muito longe... Vamos voltar?
- Tentemos. Dá-me o teu cajado.
Ao primeiro chamamento as ovelhas assustadas responderam de imediato arrancando para casa. Porém, de imediato aumentaram os latidos e os cães, que se tinham reorganizado, por certo decidiram que compensaria tentar o ataque. Vinham agora todos juntos, por trás, decididos a apanhar uma vítima.
- Continua a correr e a chamar as ovelhas. – gritou Nuno.
- O que é que vais fazer?
- Vou fazê-los parar.
Ao verem Nuno parado, de cajado erguido, confrontando-os os cães voltaram a hesitar e pararam. A medo foram fazendo pequenos avanços.
Nuno quedou-se imóvel, calculando o tamanho do cajado e procurando o macho alfa da matilha. Era notório que um dos cães, um castanho de pêlo comprido, era o comandante das tropas caninas, pois avançava primeiro e mais que os outros, mostrando-se mais forte e afoito.
O cajado voou no espaço com um movimento circular rápido e preciso, atingindo o focinho do cão castanho. A pancada, forte e vibrante, rasgou um lenho na cabeça do bicho que ganiu aflito de dor e surpresa, incapaz que fora de se desviar a tempo. Todos os outros ladraram em sua defesa mas não ousaram avançar.
Nuno recuou. Sempre sem virar as costas à matilha foi caminhando às arrecuas para o monte. Por cima do ombro viu Rita ganhar um confortável avanço com as ovelhas trotando a seu lado em direcção aos curros. Porém, recuar foi visto por dois dos cães como um sinal de insegurança, pelo que logo se aproximaram.
Nuno escolheu o maior e desferiu nova pancada. Mais latidos e sangue. Mas como o cajado teve que abrandar o seu movimento, o outro cão abocanhou-o e puxou-o. Com um esticão Nuno reaveu o pau, mas então pensou que tudo aquilo tinha sido uma má ideia.
Cansados dos insucessos, mas crentes da fragilidade do oponente os cães decidiram avançar todos ao mesmo tempo. Abocanharam-lhe as calças, as pernas, e tentaram derrubá-lo enfrentando o pau que Nuno agitava vigorosamente sem cessar desferindo violentas pancadas causando dor e desorientação nos animais. Era, contudo, vã a resistência, porque o número e a determinação dos cães selvagens lograram derrubar o rapaz, avançando imparáveis de dentes arreganhados para a cabeça e o pescoço que Nuno tentou desesperadamente proteger entrelaçando as mãos na nuca e ajoelhando-se todo encolhido.
Os latidos, a saliva, a dor da carne rasgada pararam no instante em que ouviu dois disparos rápidos, um atrás do outro. Nuno ouviu junto a si o som oco do chumbo a embater em duas carcaças que se quedaram de imediato, prontas para morrer. Os cães que sobravam largaram em fuga mas mais três tiros abateram outros tantos canídeos.
Com a arma apontada Vasco não desperdiçara um único cartucho. Célere chegou ao filho que a custo se erguia. Ajudou-o a voltar.
- Lamento, Luisa.
- Mas, de certeza?
- Fizemos tudo o que podíamos, mas já não há como voltar atrás.
- Estou cá faz sete anos.
- O critério de escolha foi esse mesmo: o tempo de serviço neste Hospital. À Luisa calhou a fava. É a última das dispensadas.
- Despedidas.
- Como?
- Despedidas. Usem o raio da palavra. Deixem-se de eufemismos.
- Desculpe... Vai ver que sem dificuldade arranja trabalho noutro hospital, ou numa clínica. Só podemos dar-lhe as melhores referências.
- Que não chegam para me manter a trabalhar. Nos dias de hoje deve haver seguramente muitos hospitais à procura de enfermeiras de bloco operatório. – ironizou.
- Lamento, Luisa.
- Eu também.
- A cada dia que passa sinto que o nosso pequeno paraíso comunitário se vai desfazendo. Primeiro os estranhos. Agora os cães. A chuva e o frio.
- Quanto ao frio e à chuva vais ter que te habituar. Aqui terás sempre pouca Primavera e pouco Outono. Sem aviso, sem preparação saltarás do Verão para o Inverno e vice-versa. É o Alentejo, Mário. Agora quanto ao resto...
- Por este andar temos que construir uma paliçada à volta do monte? Viver numa fortaleza?
Luis respondeu.
- Temos é que aprender a viver com as coisas. A vida nem sempre foi fácil para os homens. Sempre tivemos ameaças naturais. Lobos, outros predadores e rivais sempre estiveram nessa lista. Por isso é que nasceram as comunidades e as armas.
“Nós temos que nos adaptar para estarmos preparados para reagir a estas adversidades. Agora que temos conhecimento de que andam aí estes cães selvagens tomaremos as devidas medidas.
- E fazemos o quê?
- Em primeiro lugar ficamos unidos e alimentamos o espírito de equipa. – Luis apercebeu-se de estar agora a defender o trabalho de grupo, e a confiança na divisão de tarefas. - E usamos as nossas célulazinhas cinzentas para nos acautelarmos, defendermos, dominarmos. Uma paliçada é uma coisa tonta, medieval. Fisicamente falando, porque não só impede o que está lá fora de entrar como dificulta a quem está no interior de sair. E fecharmos os nossos horizontes será sempre um erro. Bastar-nos-á imaginar tal paliçada, construir mentalmente o nosso forte para impedir o perigo de nele entrar. E para isso temos que esquematizar regras, procedimentos e cuidados a cumprir por todos para que, se confiarmos que cada um faz a sua parte, estaremos seguros.
- Infelizmente não fui preparado para isso. Não me sinto à altura do desafio. Já sinto que vou acumulando um desgaste que não é natural, com o qual nunca vivi. Primeiro foi a vida endurecida da cidade, com os cortes, as carências, as necessidades, o horror de não saber o que fazer às miúdas, à Rita. Como as proteger? Sabia apenas que as minhas filhas nunca iriam gozar aquilo que eu gozei quando era criança, quando cresci.
“Os pais esperam sempre poder dar aos filhos mais do que aquilo que tiveram. Deve ser um atavismo do melhoramento da espécie, por isso é duro ver que vivemos um pico e que estamos em descida, em queda livre, e que apenas o precipício temos para oferecer aos nossos filhos.
- Tens razão. – concordou Luis encolhendo os largos ombros.
- Depois foi a decisão de vir para tua casa e o horror, o desgaste, o stress, a insegurança de toda a viagem. E aqui toda uma vida de trabalho que vai para além dos limites do meu ser, pois que nas minhas obras não era quem fazia o esforço físico. Eu era o general das tropas, mandava e desmandava. Nada como aqui. Mas enquanto tinha paz de espírito e a ilusão da segurança ainda tolerava este cansaço. Neste momento sinto o desgaste acumulado como se me tivesse atingido um malho.
- Quando estive na Marinha fiz recruta e dei recruta. Se uma coisa aprendi nessas experiências foi a conhecer os limites do meu corpo e da minha mente. Estão muito, mas mesmo muito para além daquilo que imaginava. E não apenas eu. Todos os meus camaradas, todos os meus praças descobriram a mesma coisa.
“Dias a fio de marcha, de stress induzido pela incerteza, pela insegurança, pelo perigo, a fome e a sede... A dada altura pensamos que chega, que não queremos mais, que não podemos mais. Só que depois... – fez uma pausa e continuou abrindo muito os olhos cinzentos, - depois somos forçados a arrancar de novo, a socorrer o camarada que ainda está pior que nós, aquele que precisa de nós, e quando damos por isso ultrapassámos aquele cume que julgáramos inultrapassável. E continuamos. Até ao novo desânimo, ao novo cume. Que voltamos a passar. E de novo. E de novo.
“A certa altura olhamos para trás e somamos o que já fizemos. Olhamos para o nosso corpo e vemos o que lhe aconteceu, aquilo a que foi sujeito. Miramos os nossos camaradas e revemo-nos. E, caramba, é então que nos apercebemos de que já aguentámos muito, muito mais do que julgávamos possível, mesmo nas nossas estimativas mais optimistas.
- Eu já fui para além das minhas expectativas.
- Mas podes ir, e seguramente irás, muito mais. Basta-te ter a motivação certa, e tu tens. Tens as tuas filhas, a tua mulher. Por elas farás tanto, muito mais do que aquilo que farias apenas por ti. No mar, deixar-te-ias ir ao fundo. Mas por elas até com as orelhas nadavas para as poderes segurar e salvar.
“Por isso, venham cães ou bandidos, tu estarás aqui com uma caçadeira nas mãos, ou uma pistola, ou um pau, uma pedra para lutar por elas. Mesmo que não durmas há uma semana. Que não comas há uma semana. E serás um verdadeiro animal de batalha.
“Agora, por favor, não mostres esse desânimo às tuas filhas. Elas precisam de um pai rochedo para aguentar os dias maus como o de hoje. Precisam de um pai e de uma mãe que lhes dê a segurança de um porto de abrigo ao qual podem recolher para escapar às tempestades.
LATIDOS
A chuva caiu durante uma semana sem parar, sem tréguas. Sem tréguas também se mantiveram os habitantes do Monte das Murtas, com um rígido esquema de vigilância com turnos de duas horas, acompanhados pelos incansáveis rafeiros alentejanos. Os cães perceberam o seu papel e nunca mais se afastaram da casa. Mesmo a dormir uma orelha acompanhava todos os sons. À menor suspeita levantavam-se, concentravam-se e, por vezes, ladravam um aviso.
Durante uma semana esperaram que aparecesse alguém do grupo de Horácio Sousa. Mas ninguém subiu o estradão enlameado. Ninguém calcorreou os campos em redor. Aos poucos retomaram o ritmo das tarefas relaxando no sobressalto.
Luis, desconfiado, propôs uma ida ao Monte Branco para saber dos visitantes. Mas foi desencorajado pelo bom-senso que lhe revelaram: se eles por lá ficaram e ainda não apareceram é porque querem ficar sozinhos, disseram-lhe. O argumento era tão válido que acatou a recomendação.
Estavam em finais de Outubro e, assim que a chuva parou, o frio acomodou-se e passou a cobrir as madrugadas de branco. Num desses dias coube a Rita levar as ovelhas à procura de pasto.
O sol brilhava no imaculado céu azul, mas pouco conseguia fazer para aquecer o ar que corria montado num cortante vento gelado. Animado de boa vontade, e farto que estava de nesse dia estar parado, Nuno ofereceu-se após o almoço para a ir procurar com um termo cheio de chá quente.
Antes de sair procurou Rita pelo intercomunicador, pelo que rapidamente a descobriu após uma curta caminhada. Aproveitou como farol os balidos das ovelhas que estavam estranhamente agitadas, apercebendo-se da razão logo que encontrou o pequeno rebanho. A mulher e os animais estavam em apuros pelo que largou a correr em seu auxílio sem sequer pensar.
À volta do pequeno rebanho, oito ou nove cães de pêlo sujo e dente arreganhado apontavam aos lãzudos ovinos. Juntos destes Rita segurava o cajado com as duas mãos como se de um taco de basebol se tratasse.
Imprudentemente, na sua corrida Nuno desatou aos berros captando a atenção dos animais selvagens que por momentos se distraíram das suas presas. Num primeiro momento, inseguros, os cães recuaram ladrando e rosnando, permitindo a Nuno juntar-se a Rita.
- Estás bem?
- Por enquanto. Vamos embora daqui?
- Já pediste ajuda pelo rádio?
- Não... quando apareceram assustei-me e deixei-o cair quando o queria ligar. Nem sei onde está.
- Então vamos tentar sair daqui, mas com calma, a ver se eles nos deixam.
- Não sabia que havia lobos assim.
- Não são lobos, são cães selvagens. Ou antes, que se tornaram selvagens quando foram abandonados pelos seus donos. Quando se foram embora deixaram-nos para trás e eles juntaram-se em matilha. Vivem no mato, morrem muitos, mas sobrevivem os mais fortes. E num instante se tornam selvagens. O Marvão não estava contigo?
- Não. Hoje não trouxe nenhum dos cães. Como não ia para muito longe... Vamos voltar?
- Tentemos. Dá-me o teu cajado.
Ao primeiro chamamento as ovelhas assustadas responderam de imediato arrancando para casa. Porém, de imediato aumentaram os latidos e os cães, que se tinham reorganizado, por certo decidiram que compensaria tentar o ataque. Vinham agora todos juntos, por trás, decididos a apanhar uma vítima.
- Continua a correr e a chamar as ovelhas. – gritou Nuno.
- O que é que vais fazer?
- Vou fazê-los parar.
Ao verem Nuno parado, de cajado erguido, confrontando-os os cães voltaram a hesitar e pararam. A medo foram fazendo pequenos avanços.
Nuno quedou-se imóvel, calculando o tamanho do cajado e procurando o macho alfa da matilha. Era notório que um dos cães, um castanho de pêlo comprido, era o comandante das tropas caninas, pois avançava primeiro e mais que os outros, mostrando-se mais forte e afoito.
O cajado voou no espaço com um movimento circular rápido e preciso, atingindo o focinho do cão castanho. A pancada, forte e vibrante, rasgou um lenho na cabeça do bicho que ganiu aflito de dor e surpresa, incapaz que fora de se desviar a tempo. Todos os outros ladraram em sua defesa mas não ousaram avançar.
Nuno recuou. Sempre sem virar as costas à matilha foi caminhando às arrecuas para o monte. Por cima do ombro viu Rita ganhar um confortável avanço com as ovelhas trotando a seu lado em direcção aos curros. Porém, recuar foi visto por dois dos cães como um sinal de insegurança, pelo que logo se aproximaram.
Nuno escolheu o maior e desferiu nova pancada. Mais latidos e sangue. Mas como o cajado teve que abrandar o seu movimento, o outro cão abocanhou-o e puxou-o. Com um esticão Nuno reaveu o pau, mas então pensou que tudo aquilo tinha sido uma má ideia.
Cansados dos insucessos, mas crentes da fragilidade do oponente os cães decidiram avançar todos ao mesmo tempo. Abocanharam-lhe as calças, as pernas, e tentaram derrubá-lo enfrentando o pau que Nuno agitava vigorosamente sem cessar desferindo violentas pancadas causando dor e desorientação nos animais. Era, contudo, vã a resistência, porque o número e a determinação dos cães selvagens lograram derrubar o rapaz, avançando imparáveis de dentes arreganhados para a cabeça e o pescoço que Nuno tentou desesperadamente proteger entrelaçando as mãos na nuca e ajoelhando-se todo encolhido.
Os latidos, a saliva, a dor da carne rasgada pararam no instante em que ouviu dois disparos rápidos, um atrás do outro. Nuno ouviu junto a si o som oco do chumbo a embater em duas carcaças que se quedaram de imediato, prontas para morrer. Os cães que sobravam largaram em fuga mas mais três tiros abateram outros tantos canídeos.
Com a arma apontada Vasco não desperdiçara um único cartucho. Célere chegou ao filho que a custo se erguia. Ajudou-o a voltar.
- Lamento, Luisa.
- Mas, de certeza?
- Fizemos tudo o que podíamos, mas já não há como voltar atrás.
- Estou cá faz sete anos.
- O critério de escolha foi esse mesmo: o tempo de serviço neste Hospital. À Luisa calhou a fava. É a última das dispensadas.
- Despedidas.
- Como?
- Despedidas. Usem o raio da palavra. Deixem-se de eufemismos.
- Desculpe... Vai ver que sem dificuldade arranja trabalho noutro hospital, ou numa clínica. Só podemos dar-lhe as melhores referências.
- Que não chegam para me manter a trabalhar. Nos dias de hoje deve haver seguramente muitos hospitais à procura de enfermeiras de bloco operatório. – ironizou.
- Lamento, Luisa.
- Eu também.
- A cada dia que passa sinto que o nosso pequeno paraíso comunitário se vai desfazendo. Primeiro os estranhos. Agora os cães. A chuva e o frio.
- Quanto ao frio e à chuva vais ter que te habituar. Aqui terás sempre pouca Primavera e pouco Outono. Sem aviso, sem preparação saltarás do Verão para o Inverno e vice-versa. É o Alentejo, Mário. Agora quanto ao resto...
- Por este andar temos que construir uma paliçada à volta do monte? Viver numa fortaleza?
Luis respondeu.
- Temos é que aprender a viver com as coisas. A vida nem sempre foi fácil para os homens. Sempre tivemos ameaças naturais. Lobos, outros predadores e rivais sempre estiveram nessa lista. Por isso é que nasceram as comunidades e as armas.
“Nós temos que nos adaptar para estarmos preparados para reagir a estas adversidades. Agora que temos conhecimento de que andam aí estes cães selvagens tomaremos as devidas medidas.
- E fazemos o quê?
- Em primeiro lugar ficamos unidos e alimentamos o espírito de equipa. – Luis apercebeu-se de estar agora a defender o trabalho de grupo, e a confiança na divisão de tarefas. - E usamos as nossas célulazinhas cinzentas para nos acautelarmos, defendermos, dominarmos. Uma paliçada é uma coisa tonta, medieval. Fisicamente falando, porque não só impede o que está lá fora de entrar como dificulta a quem está no interior de sair. E fecharmos os nossos horizontes será sempre um erro. Bastar-nos-á imaginar tal paliçada, construir mentalmente o nosso forte para impedir o perigo de nele entrar. E para isso temos que esquematizar regras, procedimentos e cuidados a cumprir por todos para que, se confiarmos que cada um faz a sua parte, estaremos seguros.
- Infelizmente não fui preparado para isso. Não me sinto à altura do desafio. Já sinto que vou acumulando um desgaste que não é natural, com o qual nunca vivi. Primeiro foi a vida endurecida da cidade, com os cortes, as carências, as necessidades, o horror de não saber o que fazer às miúdas, à Rita. Como as proteger? Sabia apenas que as minhas filhas nunca iriam gozar aquilo que eu gozei quando era criança, quando cresci.
“Os pais esperam sempre poder dar aos filhos mais do que aquilo que tiveram. Deve ser um atavismo do melhoramento da espécie, por isso é duro ver que vivemos um pico e que estamos em descida, em queda livre, e que apenas o precipício temos para oferecer aos nossos filhos.
- Tens razão. – concordou Luis encolhendo os largos ombros.
- Depois foi a decisão de vir para tua casa e o horror, o desgaste, o stress, a insegurança de toda a viagem. E aqui toda uma vida de trabalho que vai para além dos limites do meu ser, pois que nas minhas obras não era quem fazia o esforço físico. Eu era o general das tropas, mandava e desmandava. Nada como aqui. Mas enquanto tinha paz de espírito e a ilusão da segurança ainda tolerava este cansaço. Neste momento sinto o desgaste acumulado como se me tivesse atingido um malho.
- Quando estive na Marinha fiz recruta e dei recruta. Se uma coisa aprendi nessas experiências foi a conhecer os limites do meu corpo e da minha mente. Estão muito, mas mesmo muito para além daquilo que imaginava. E não apenas eu. Todos os meus camaradas, todos os meus praças descobriram a mesma coisa.
“Dias a fio de marcha, de stress induzido pela incerteza, pela insegurança, pelo perigo, a fome e a sede... A dada altura pensamos que chega, que não queremos mais, que não podemos mais. Só que depois... – fez uma pausa e continuou abrindo muito os olhos cinzentos, - depois somos forçados a arrancar de novo, a socorrer o camarada que ainda está pior que nós, aquele que precisa de nós, e quando damos por isso ultrapassámos aquele cume que julgáramos inultrapassável. E continuamos. Até ao novo desânimo, ao novo cume. Que voltamos a passar. E de novo. E de novo.
“A certa altura olhamos para trás e somamos o que já fizemos. Olhamos para o nosso corpo e vemos o que lhe aconteceu, aquilo a que foi sujeito. Miramos os nossos camaradas e revemo-nos. E, caramba, é então que nos apercebemos de que já aguentámos muito, muito mais do que julgávamos possível, mesmo nas nossas estimativas mais optimistas.
- Eu já fui para além das minhas expectativas.
- Mas podes ir, e seguramente irás, muito mais. Basta-te ter a motivação certa, e tu tens. Tens as tuas filhas, a tua mulher. Por elas farás tanto, muito mais do que aquilo que farias apenas por ti. No mar, deixar-te-ias ir ao fundo. Mas por elas até com as orelhas nadavas para as poderes segurar e salvar.
“Por isso, venham cães ou bandidos, tu estarás aqui com uma caçadeira nas mãos, ou uma pistola, ou um pau, uma pedra para lutar por elas. Mesmo que não durmas há uma semana. Que não comas há uma semana. E serás um verdadeiro animal de batalha.
“Agora, por favor, não mostres esse desânimo às tuas filhas. Elas precisam de um pai rochedo para aguentar os dias maus como o de hoje. Precisam de um pai e de uma mãe que lhes dê a segurança de um porto de abrigo ao qual podem recolher para escapar às tempestades.
(continua)
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