3.12.08

Desertos (XV)

(continuação)
14
SOLIDARIEDADE

Debaixo da oliveira Vasco e Luis contemplavam o grupo que se aproximava pelo estradão enlameado. A chuva continuava a cair, gotas leves mas constantes num sombrio final de tarde. Jorge aproximou-se deles e Luis aproveitou para avisar todos os outros.
- Não venha mais gente para aqui. Não quero que saibam quantos somos. Nuno! – chamou.
- Sim?
- Vai buscar a outra Glock, e fica com ela dentro de casa.
- Glock? – perguntou Jorge.
- Vejo que vários deles vêm armados. Pelo menos cinco armas compridas.
- Quatro caçadeiras e uma carabina. – completou Vasco.
- Glock?
- Eles são... vinte e um.
- Nós temos Glocks?
- Sim. – respondeu Luis. – Parecem apenas um grupo a viajar para o interior ou para a cidade. Têm mulheres e crianças...
- O que diabo andam então a fazer para estes lados? Porque vieram directamente para o nosso monte? – interrogou-se Vasco sem esperar qualquer resposta.
- Oiçam lá, como é que temos pistolas?
- Temos, e pronto, Jorge. Agora isso não interessa nada.
- Mas porque entregas uma arma o Nuno que ainda é um miúdo. Devias dá-la antes a mim que sou...
- A pistola fica com o Nuno e isso não está aberto a discussão.
- Mas...
- Jorge, eu sei o que o Nuno pode fazer com a pistola. Fui eu quem o ensinou, entendido. – o tom de irritação exibido foi determinante.
- Pronto, pronto... Só queria ajudar.
- Vamos deixá-los vir cá acima?
- Tens razão, Vasco, é melhor não. Eu vou ter com eles a meio do caminho e dizer-lhes que têm que voltar para trás. Jorge...
- Sim?
- Vai lá dentro e arranja um saco com pão, leite, ovos e vegetais. Sê generoso que eles são muitos. Mas não metas carne alguma, está bem? Depois ficas preparado para descer com isso se eu te fizer um sinal, de acordo?
- Certo. – concordou abalando para casa.
- Achas seguro, Luis?
- Não sei. Pessoas cansadas, com fome e frio, com crianças para defender podem ser perigosas e insensatas. É melhor pensarmos bem no que vamos fazer.
- Eu aqui de cima não te posso ajudar. Estarei muito longe.
- Temos que nos decidir. Em cinco minutos chegam aqui.
- Se descer contigo posso parar naqueles dois chaparros além. Dali já posso fazer-te cobertura. Mas também não acho que tenhamos problemas. Eles têm as crianças com eles e não têm qualquer abrigo. E avançam a peito descoberto, sem mostrar reservas ou agressividade.
- Está bem, vamos a isso. Mas mantém-te alerta.
“Inês! – chamou.
- Diz. – a sua mulher aproximou-se rápido.
- Eu e o Vasco vamos descer. Ele dá-me apoio e eu vou tentar correr com eles. Nada correrá mal mas, pelo sim pelo não, já sabes que se houver sarilhos...
- Cala-te!, não vai...
- Cala-te tu. Se houver sarilhos vais buscar as G-3. Dá uma ao Pedro. Ele fez a tropa quando era novo e ainda deve saber disparar aquilo. A outra ao Jorge, que está desejoso de mostrar que também pode ser útil a defender o grupo.
“Que porra! – desabafou. – Eu levo um comunicador e deixo-o em via aberta para ti. Fica atenta.
Dito isto deu-lhe um leve beijo e arrancou a passo largo pela lama do caminho. Vasco seguiu-o logo atrás.

À frente do numeroso grupo seguiam dois homens barbudos. Um aparentava ser o mais velho e provavelmente o patriarca do clã. Acompanhava-o um rapaz que pelos traços fisionómicos aparentava ser o seu filho, o seu delfim.
O grupo, com ar sujo, ensopado, tinha sete mulheres e cinco crianças, uma delas de colo. Entre os homens, dois eram jovens adolescentes. Caminhavam agrupados, estando os indivíduos armados colocados em redor do grupo numa clara malha defensiva, carregando as espingardas ao ombro.
Luis avançou o mais que pôde e parou no estradão, claramente dirigido ao patriarca, homem com uns sessenta anos mas sem indícios de velhice. Todo o grupo que o acompanhava parou. Enquanto os homens armados perscrutavam tudo à volta certificando-se da segurança dos seus o velho e o filho esgotaram a distância que os separava de Luis.
- Boa tarde. O meu nome é Horácio. Horácio Sousa. – disse estendendo a mão.
- Luis. – respondeu retribuindo o cumprimento.
- Este é o meu filho, João Sousa.
Apertaram as mãos. Fez-se silêncio. A bola estava do lado de Horácio Sousa que, após breve hesitação, falou.
- Vimos de Setúbal. Desistimos da cidade. Podemos ficar por aqui uns dias?
- Não me leve a mal, mas estamos um pouco cheios demais.
- Nós acampamos num canto qualquer.
- Pois... Posso fazer uma sugestão?
- Diga.
- Voltem atrás até à estrada. Virem para Estremoz. Três quilómetros depois há um caminho igual a este, mas do lado direito. Se o seguirem vão dar ao Monte Branco. Ainda deve ter uma tabuleta junto à velha caixa do correio. Está abandonado mas em condições. Fiquem por lá o tempo que quiserem. Tem um poço, uma casa, um telhado. Tem um grande armazém.
- Obrigado pela sugestão, mas compreenda... estamos esfomeados, cansados, ensopados. É quase noite. Mais três quilómetros para chegar a um sítio desconhecido...
- Lamento..., mas repito que não cabem neste monte. Podemos dar-vos alguma da nossa comida. É o mínimo que nos é exigido. Aliás, bastava pedi-la.
Um pouco de embaraço cruzou o olhar de Horácio Sousa.
- Peço desculpa pelo Toninho. Ontem pedimos ao rapaz para ver se havia lugar para ficarmos para este lado e o sacana foi logo roubar-vos uma galinha. Garanto que levou um sopapo. Apesar de tudo aquilo por que já passámos não é por isso que nos vamos tornar ladrões.
- Esqueça lá isso. – dito isto voltou-se para trás e fez um gesto com o braço para Jorge que já o aguardava no início da descida. Depois continuou.
- Espero que compreenda. Nos dias de hoje temos que ser cautelosos. Assim como vocês o são, a ver pelos vossos homens armados. Num monte aqui próximo mataram um casal de velhotes nosso amigo. E aqui no Monte das Murtas já temos muita gente. Não temos condições para fundar uma vila.
- Compreendo.
- Mas, se porventura decidirem ficar no Monte Branco, avisem. Podemos ajudar-vos nas primeiras plantações. Dicas e sementes, percebe?
- Obrigado.
- Mas, Pai... – falou João Sousa pela primeira vez denunciando inconformar-se com a posição de Luis.
- Cala-te! – cortou brusca e secamente Horácio Sousa. Não houve resposta, apenas obediência.
Em silêncio viram Jorge aproximar-se rápido com dois sacos pesados.
- Boa tarde. Aqui têm.
- Obrigado. – agradeceu Luis pegando nos sacos. – Agora recua para junto da Inês, por favor. – sussurrou.
Enquanto Jorge regressava, ofereceu os sacos ao grupo que aparecera sem convite.
- Levem isto. Leite, ovos, vegetais, pão. Dará para alguns dias.
- Obrigado, não vos incomodaremos mais. – com um aceno de cabeça indicou ao filho para pegar nos sacos. Este assim fez, murmurando um amargo “obrigado”, e recuou.
Depois de um “até qualquer dia”, também Horácio Sousa virou costas e se encaminhou para o grupo, dando instruções para retirar. Expressões de desânimo ouviram-se entre os caminhantes. Uma ordem seca do patriarca fez todos recuar. Porém, várias vozes discutiam a sua decisão.
Luis permaneceu no caminho. A chuva engrossava. Vasco juntou-se-lhe.
-Então?
- Talvez esteja tudo bem. Talvez. - Concluiu com esperança.
(continua)

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