(continuação)
12
TENTAÇÕES
Quando ainda havia petróleo e electricidade para todos, quando a vida era normal para o cidadão do século XXI, Jorge concluiu a sua formação técnica e foi admitido como estagiário numa das estações de televisão que alimentavam o ócio e a alienação da população activa. Operador de câmara de profissão, começou por fazer a contra gosto os concursos da tarde, em estúdio. Uma oportunidade caída do céu e algumas jogadas de bastidores por si orquestradas abriram a porta para, num meio altamente competitivo, passar para as notícias.
Esperas monstruosas à porta dos tribunais, dos ministérios e das sedes dos partidos políticos passaram a ser o seu quotidiano para conseguir uns minutos de imagem, uma entrevista, um aceno, uma cara. Aos fins-de-semana a cobertura dos desafios de futebol quebravam a rotina, assim como uma ou outra “operação especial” que juntasse um grande acervo de meios da estação.
Com vinte e dois anos agarrou com ambas as mãos a ida para mais um dos muitos conflitos do petróleo, embarcando para a Arábia Saudita quando esta foi invadida pelos Estados Unidos a pretexto de um pedido da família real após um golpe de estado cujo fim único era o controlo das últimas reservas petrolíferas dos poços sauditas. Jorge revelou-se temerário, destemido, e conseguiu imagens únicas e espectaculares para as audiências do canal, vendo assim reconhecida uma qualidade que importava rentabilizar. Por isso, logo depois, aterrou na fria Rússia para cobrir os ataques do Kremlin às sangrentas dissidências das terras petrolíferas.
Num dia de Inverno, acompanhado pelo repórter e por uma equipa da BBC e respectivos tradutores, foi emboscado. À sua frente abateram os dois russos que traduziam. O seu colega inglês tentou filmar a cena mas apenas conseguiu uma rótula desfeita a tiro. Os seus gritos ficaram gravados de forma indelével na memória daqueles dias. Para o calarem os guerrilheiros esmagaram-lhe a boca com uma coronhada. Teve medo. Muito medo.
Vendado foi levado para um local frio e húmido onde o mantiveram algemado às escuras durante quatro semanas. Perdeu a noção do tempo. Do espaço. Não sabia se o seu colega repórter, ou a equipa da BBC estavam ali também, ou sequer se ainda estavam vivos. Chorou até não ter mais lágrimas. Tremeu de medo até que se deixou abater até não ter mais força. Desistiu de viver mas isso não chegou para atenuar o sofrimento.
Permaneceu encarcerado até ao dia em que ouviu tiros e explosões e a porta se abriu em luz para que vultos armados pegassem em si e o levassem para o hospital. À sua maneira as forças russas abateram todos os guerrilheiros para salvar os reféns. Soube então que o operador de câmara inglês morrera poucos dias depois do rapto.
Regressado a Portugal ficou internado ainda mais três semanas, e foi então que conheceu Luisa, ainda enfermeira. Depois da alta, e de ter rendido ao canal inúmeras entrevistas que o obrigaram a reviver os dias de terror e padecimento, a estação dispensou-o. Revoltado, primeiro, compreendeu três meses depois que despedi-lo era uma inevitabilidade, quando as emissões foram suspensas para sempre.
Logo após, aquando dos primeiros apagões, conheceu Susana, rapariga que nunca trabalhara porque nunca houvera emprego para si. Aos primeiros sinais de convulsão social, de pedradas e fogueiras na rua, de gás lacrimogéneo e balas de borracha, passaram a viver juntos buscando conforto e protecção no colo um do outro. Por coincidência ficaram paredes-meias com Pedro, que um dia lhes fora apresentado por Luisa.
- Sabes o que devias saber fazer?
- O quê?
- Cerveja. Tenho umas saudades de uma cerveja bem fresca.
- Isso seria muito bom, muito bom mesmo... Infelizmente só aprendi a fazer vinho.
Jorge e Luis esticavam-se debaixo das oliveiras que cresciam junto à margem e ao som das cigarras esperavam que o sol baixasse. Tirando as duas miúdas que dormiam no fresco da casa, todos se reuniram ali naquele último domingo de Agosto.
Consigo Vasco e Mário partilhavam um jogo de King, torcendo-se no chão à procura da posição mais confortável que defendesse as suas cartas dos olhares indiscretos dos adversários. Enquanto Luisa, Inês e Rita liam ou dormitavam, Nuno, Patrícia e Susana voltavam a partilhar o descanso domingueiro, sentados dentro de água, refrescando-se. As duas mulheres ladeavam o rapaz e os três iam conversando e rindo alto, o eco das águas propagando as suas interjeições de feliz excitação e as deliciosas gargalhadas de Susana.
Um guincho mais alto pontuou o momento em que as duas saltaram literalmente para cima de Nuno forçando-o a ficar de costas, totalmente submerso. Ao vir à superfície, debatendo-se, Nuno agarrou Susana, abraçando-a com força e lançando-se para a frente, retaliando a maldade. Patrícia socorreu a outra mulher e ambas continuaram a luta até que desistiram todos, rindo cansados, deitados na água de pouca profundidade da margem.
- Joga. – disse Pedro.
Após uns segundos sem reacção insistiu.
- Jorge, és tu.
Jorge desviou o olhar da borda de água para as cartas já jogadas e sem pensar jogou por baixo evitando apanhar a mão. Luis, procurando para onde olhava Jorge tão absorto decidiu continuar a conversa para o distrair.
- Mas já que falas nisso, Jorge, daqui a duas semanas, se não chover antes, fazemos a vindima. – anunciou.
- Isso é coisa complicada?
- Nem por isso. São poucas as videiras. O ano passado, eu, o meu filho e o Luis apanhámos a uva toda num dia. Depois o vinho é que demorou.
- Aí há que ter calma e paciência, especialmente quando se trabalham quantidades tão pequenas.
- Onde aprendeste a fazer vinho? – interrogou Mário fazendo as contas de mais uma mão e preparando-se para baralhar.
- Fiz um curso, a sério, de enologia, numa quinta de Estremoz. Não aprendi os segredos de um excelente vinho, mas o essencial da técnica para o fabricar. Depois, com a prática consegui, com a escassa matéria-prima de que disponho, passar a fazer um vinho que se bebe sem dificuldade. Haviam de ver os primeiros que fiz... directos para o lixo de tão horríveis que eram. – terminou com uma gargalhada.
- E não é nada mau, o que tu consegues. – apreciou Jorge com um sorriso recordando o que bebera ao almoço. – Tanto assim é que não tenho saudades de vinho. Agora duma cervejola...
- Eu estive uma vez sem ver uma cerveja durante um mês. E foi das coisas que mais falta me fez.
- Quando?
Pedro respondeu.
- Num estágio que fiz na Arábia Saudita. Estive lá a resolver-lhes um problema e a paga que tive foi a de não tocar numa gota de álcool durante o mês inteiro. Já estavam sob o regime fundamentalista...
- Eu também estive um mês sem cerveja. Mas nem por uma vez pensei nela.
Fez-se um silêncio enquanto todos recordaram o cativeiro de Jorge, cujo olhar vagueou de novo fixando-se na borda de água. Pedro desbloqueou a conversa.
- Contudo, com o descalabro das nossas vidas tal como o conhecemos, nem me lembrava da cerveja, não fosses tu a falar nela. Falta-me tanta coisa...
- Também sou da mesma opinião. Até hoje nem pensara em cerveja. Mas agora que falaste nela... – começou Mário. – Raios, vinha mesmo a calhar uma imperial.
Por uns instantes, no silêncio, os quatro olharam para o ar imaginando cada um o seu copo de cerveja gelada.
- Já vi que o jogo acabou. Tudo para dentro de água. Banhos frios para ver se nos passa a vontade. – riu Luis.
Duas semanas depois, manhã cedo, o monte fervilhava de agitação. Enquanto Patrícia e Rita, com a simbólica ajuda das suas filhas, tratavam dos animais, todos os outros atacaram os grandes cachos da pequena vinha. Todos excepto Susana, a quem calhara a tarefa de arrumar a casa e preparar o almoço.
Também Nuno ficou de fora da vindima. Na véspera evidenciou sinais de constipação e, para evitar males maiores, ficou “de baixa” em repouso. Perante tal ordem da sua mãe, actualmente a responsável pela saúde de todo o grupo, Nuno quedou-se no quarto explorando a informação recolhida em diversos discos que lia no computador portátil, velha peça a acusar o peso dos anos. Curioso como cada vez mais eram as peças de alta tecnologia que pareciam anacrónicas.
Volta e meia repousava o olhar na luz mais branda do exterior que já anunciava a mudança de estação. O calor intenso dera tréguas mas o ar mantinha-se abafado graças às nuvens altas que filtravam o sol e conservavam a estufa natural.
No silêncio da casa, Nuno ergueu-se depositando o computador em cima da cama e arrastou-se para a casa-de-banho, embrenhado nas suas cogitações. Assim alheado abriu a porta destrancada e entrou no pequeno espaço. Ainda com a mão na maçaneta estacou embaraçado. Lá dentro, com uma toalha na mão e nada mais sobre a pele estava Susana, resplandecente.
O seu olhar fixou-se nos seios redondos e lenta e desavergonhadamente desceu pela barriga até à púbis. Só então, ciente da sua indelicada curiosidade corou e ergueu o olhar até aos olhos da mulher que nua se mantinha à sua frente, sem sequer por um segundo se ter tentado cobrir. Segundos passaram que demoraram para sempre, enquanto Nuno pensava o que fazer, o que dizer, como sair daquela situação. Sabia apenas que não deveria manter-se assim.
- Desculpa... – disse após uma hesitação, demonstrando a sua intenção de sair.
- Nuno... – chamou Susana, já ele lhe virava as costas. – Espera. Entra.
O tom era suave mas determinado. Nuno escutou a ordem, parou e virou-se. Um passo bastou para Susana se chegar junto de si. Sentiu o seu cheiro acabado de se banhar. Sentiu a pele fresca a centímetros da sua. Sentiu dois seios como setas que o tinham por alvo.
- Mas...
- Shhh... – sussurrou. Com as duas mãos agarrou-lhe a face e puxou-a para si, beijando-lhe suavemente os lábios.
Nuno reagiu lentamente, retribuindo o beijo. Cautelosa e timidamente pousou as suas mãos na cintura desnuda. Um braço de Susana foi esticado e a porta da casa-de-banho fechou-se nas suas costas, como uma armadilha que se encerra. Uma armadilha na qual se lançaria de boa vontade. As mãos de Susana exploraram por baixo da sua camisola que animada de vontade própria voou para o chão.
No chão da pequena casa-de-banho perdeu a virgindade.
Dias antes, ainda o calor fazia suar as estopinhas, Jorge e Susana desapareceram logo após do almoço. Juntos apontaram a Norte e calcorrearam o caminho em direcção ao velho olival que ao longe restava abandonado numa propriedade vizinha. Quem os viu partir não evitou um sorriso compreensivo da necessidade de intimidade que cada vez era mais difícil de descobrir no Monte sobrelotado.
Regressaram ao cair da tarde, já os pardais faziam o seu chinfrim à volta das árvores onde pernoitavam. Vinham afastados, caminhando em silêncio e a passos largos. Quem os viu regressar não evitou um esgar de curiosa preocupação.
À hora de almoço, reunidos que estavam os treze à mesa, a vindima estava acabada e os projectos para a uva eram o tema de conversa. Um observador atento teria reparado que, não obstante a proximidade, em momento algum o olhar de Nuno e Susana se cruzou.
Seria assim nos dias seguintes. Luisa chegou a comentar como um resfriado de Verão calara o seu filho. No entanto, o silêncio de Nuno não expressava nenhuma doença do corpo mas apenas a incerteza do coração. E naquela cabeça adolescente fervilhavam luxúria e paixão, ao mesmo tempo que o medo, o remorso e a incapacidade de lidar com um episódio proibido tocavam em pano de fundo a pauta da insegurança.
O vento mudou e tornou-se mais presente. Rajadas fortes agitaram árvores dia e noite roubando as folhas com que se vestiam. Sem outro aviso nuvens negras e densas apareceram e taparam o sol cada dia mais envergonhado.
Em ambiente de festa fizeram a matança do porco, seguindo a tradição da preparação para o Inverno, abatendo quatro suínos. Os urros dos animais sob a faca que os sangrou gravaram-se na memória dos mais impressionáveis. Só Filipa e Sandra foram poupadas, mandadas que foram para longe do improvisado matadouro pastorear as ovelhas.
O primeiro animal tombou às mãos de Luis, experimentado na lide e desejoso de a ensinar para a poder partilhar e aliviar o sanguinário fardo. Tirando Jorge, ninguém quis experimentar. E por três vezes cravou fundo a longa faca enquanto os outros homens tentavam manter firme a amarração que tolhia os bichos que aos gritos se debatiam perante o seu algoz. O sucesso dos movimentos de Jorge foi comentado pela sua eficácia. Satisfeito disse:
- Se têm que morrer mais vale que seja logo, rápido e com o mínimo de dor. Não podemos ser incompetentes nesta missão.
Apesar de perdido num monte alentejano, Jorge mantinha o ar de surfista com que crescera. Cabelo comprido, muitas vezes preso com os óculos escuros que usava sobre a cabeça, pele morena de anos acumulados de sol, pernas arqueadas, muito magras mas bastante musculadas. Todo ele anunciava um centro de gravidade baixo, como que o convidando a equilibrar-se numa prancha em movimento sobre as ondas. O seu sorriso era escancarado e mostrava os dentes sem vergonha.
Depois da queima do pêlo e do desmanche das carnes Inês ensinou a preparar os enchidos que todos aprenderam a fazer. No meio da suja confusão de tal arte eram constantes os sorrisos de antecipação perante a tentação da carne que iria durar o resto do ano.
TENTAÇÕES
Quando ainda havia petróleo e electricidade para todos, quando a vida era normal para o cidadão do século XXI, Jorge concluiu a sua formação técnica e foi admitido como estagiário numa das estações de televisão que alimentavam o ócio e a alienação da população activa. Operador de câmara de profissão, começou por fazer a contra gosto os concursos da tarde, em estúdio. Uma oportunidade caída do céu e algumas jogadas de bastidores por si orquestradas abriram a porta para, num meio altamente competitivo, passar para as notícias.
Esperas monstruosas à porta dos tribunais, dos ministérios e das sedes dos partidos políticos passaram a ser o seu quotidiano para conseguir uns minutos de imagem, uma entrevista, um aceno, uma cara. Aos fins-de-semana a cobertura dos desafios de futebol quebravam a rotina, assim como uma ou outra “operação especial” que juntasse um grande acervo de meios da estação.
Com vinte e dois anos agarrou com ambas as mãos a ida para mais um dos muitos conflitos do petróleo, embarcando para a Arábia Saudita quando esta foi invadida pelos Estados Unidos a pretexto de um pedido da família real após um golpe de estado cujo fim único era o controlo das últimas reservas petrolíferas dos poços sauditas. Jorge revelou-se temerário, destemido, e conseguiu imagens únicas e espectaculares para as audiências do canal, vendo assim reconhecida uma qualidade que importava rentabilizar. Por isso, logo depois, aterrou na fria Rússia para cobrir os ataques do Kremlin às sangrentas dissidências das terras petrolíferas.
Num dia de Inverno, acompanhado pelo repórter e por uma equipa da BBC e respectivos tradutores, foi emboscado. À sua frente abateram os dois russos que traduziam. O seu colega inglês tentou filmar a cena mas apenas conseguiu uma rótula desfeita a tiro. Os seus gritos ficaram gravados de forma indelével na memória daqueles dias. Para o calarem os guerrilheiros esmagaram-lhe a boca com uma coronhada. Teve medo. Muito medo.
Vendado foi levado para um local frio e húmido onde o mantiveram algemado às escuras durante quatro semanas. Perdeu a noção do tempo. Do espaço. Não sabia se o seu colega repórter, ou a equipa da BBC estavam ali também, ou sequer se ainda estavam vivos. Chorou até não ter mais lágrimas. Tremeu de medo até que se deixou abater até não ter mais força. Desistiu de viver mas isso não chegou para atenuar o sofrimento.
Permaneceu encarcerado até ao dia em que ouviu tiros e explosões e a porta se abriu em luz para que vultos armados pegassem em si e o levassem para o hospital. À sua maneira as forças russas abateram todos os guerrilheiros para salvar os reféns. Soube então que o operador de câmara inglês morrera poucos dias depois do rapto.
Regressado a Portugal ficou internado ainda mais três semanas, e foi então que conheceu Luisa, ainda enfermeira. Depois da alta, e de ter rendido ao canal inúmeras entrevistas que o obrigaram a reviver os dias de terror e padecimento, a estação dispensou-o. Revoltado, primeiro, compreendeu três meses depois que despedi-lo era uma inevitabilidade, quando as emissões foram suspensas para sempre.
Logo após, aquando dos primeiros apagões, conheceu Susana, rapariga que nunca trabalhara porque nunca houvera emprego para si. Aos primeiros sinais de convulsão social, de pedradas e fogueiras na rua, de gás lacrimogéneo e balas de borracha, passaram a viver juntos buscando conforto e protecção no colo um do outro. Por coincidência ficaram paredes-meias com Pedro, que um dia lhes fora apresentado por Luisa.
- Sabes o que devias saber fazer?
- O quê?
- Cerveja. Tenho umas saudades de uma cerveja bem fresca.
- Isso seria muito bom, muito bom mesmo... Infelizmente só aprendi a fazer vinho.
Jorge e Luis esticavam-se debaixo das oliveiras que cresciam junto à margem e ao som das cigarras esperavam que o sol baixasse. Tirando as duas miúdas que dormiam no fresco da casa, todos se reuniram ali naquele último domingo de Agosto.
Consigo Vasco e Mário partilhavam um jogo de King, torcendo-se no chão à procura da posição mais confortável que defendesse as suas cartas dos olhares indiscretos dos adversários. Enquanto Luisa, Inês e Rita liam ou dormitavam, Nuno, Patrícia e Susana voltavam a partilhar o descanso domingueiro, sentados dentro de água, refrescando-se. As duas mulheres ladeavam o rapaz e os três iam conversando e rindo alto, o eco das águas propagando as suas interjeições de feliz excitação e as deliciosas gargalhadas de Susana.
Um guincho mais alto pontuou o momento em que as duas saltaram literalmente para cima de Nuno forçando-o a ficar de costas, totalmente submerso. Ao vir à superfície, debatendo-se, Nuno agarrou Susana, abraçando-a com força e lançando-se para a frente, retaliando a maldade. Patrícia socorreu a outra mulher e ambas continuaram a luta até que desistiram todos, rindo cansados, deitados na água de pouca profundidade da margem.
- Joga. – disse Pedro.
Após uns segundos sem reacção insistiu.
- Jorge, és tu.
Jorge desviou o olhar da borda de água para as cartas já jogadas e sem pensar jogou por baixo evitando apanhar a mão. Luis, procurando para onde olhava Jorge tão absorto decidiu continuar a conversa para o distrair.
- Mas já que falas nisso, Jorge, daqui a duas semanas, se não chover antes, fazemos a vindima. – anunciou.
- Isso é coisa complicada?
- Nem por isso. São poucas as videiras. O ano passado, eu, o meu filho e o Luis apanhámos a uva toda num dia. Depois o vinho é que demorou.
- Aí há que ter calma e paciência, especialmente quando se trabalham quantidades tão pequenas.
- Onde aprendeste a fazer vinho? – interrogou Mário fazendo as contas de mais uma mão e preparando-se para baralhar.
- Fiz um curso, a sério, de enologia, numa quinta de Estremoz. Não aprendi os segredos de um excelente vinho, mas o essencial da técnica para o fabricar. Depois, com a prática consegui, com a escassa matéria-prima de que disponho, passar a fazer um vinho que se bebe sem dificuldade. Haviam de ver os primeiros que fiz... directos para o lixo de tão horríveis que eram. – terminou com uma gargalhada.
- E não é nada mau, o que tu consegues. – apreciou Jorge com um sorriso recordando o que bebera ao almoço. – Tanto assim é que não tenho saudades de vinho. Agora duma cervejola...
- Eu estive uma vez sem ver uma cerveja durante um mês. E foi das coisas que mais falta me fez.
- Quando?
Pedro respondeu.
- Num estágio que fiz na Arábia Saudita. Estive lá a resolver-lhes um problema e a paga que tive foi a de não tocar numa gota de álcool durante o mês inteiro. Já estavam sob o regime fundamentalista...
- Eu também estive um mês sem cerveja. Mas nem por uma vez pensei nela.
Fez-se um silêncio enquanto todos recordaram o cativeiro de Jorge, cujo olhar vagueou de novo fixando-se na borda de água. Pedro desbloqueou a conversa.
- Contudo, com o descalabro das nossas vidas tal como o conhecemos, nem me lembrava da cerveja, não fosses tu a falar nela. Falta-me tanta coisa...
- Também sou da mesma opinião. Até hoje nem pensara em cerveja. Mas agora que falaste nela... – começou Mário. – Raios, vinha mesmo a calhar uma imperial.
Por uns instantes, no silêncio, os quatro olharam para o ar imaginando cada um o seu copo de cerveja gelada.
- Já vi que o jogo acabou. Tudo para dentro de água. Banhos frios para ver se nos passa a vontade. – riu Luis.
Duas semanas depois, manhã cedo, o monte fervilhava de agitação. Enquanto Patrícia e Rita, com a simbólica ajuda das suas filhas, tratavam dos animais, todos os outros atacaram os grandes cachos da pequena vinha. Todos excepto Susana, a quem calhara a tarefa de arrumar a casa e preparar o almoço.
Também Nuno ficou de fora da vindima. Na véspera evidenciou sinais de constipação e, para evitar males maiores, ficou “de baixa” em repouso. Perante tal ordem da sua mãe, actualmente a responsável pela saúde de todo o grupo, Nuno quedou-se no quarto explorando a informação recolhida em diversos discos que lia no computador portátil, velha peça a acusar o peso dos anos. Curioso como cada vez mais eram as peças de alta tecnologia que pareciam anacrónicas.
Volta e meia repousava o olhar na luz mais branda do exterior que já anunciava a mudança de estação. O calor intenso dera tréguas mas o ar mantinha-se abafado graças às nuvens altas que filtravam o sol e conservavam a estufa natural.
No silêncio da casa, Nuno ergueu-se depositando o computador em cima da cama e arrastou-se para a casa-de-banho, embrenhado nas suas cogitações. Assim alheado abriu a porta destrancada e entrou no pequeno espaço. Ainda com a mão na maçaneta estacou embaraçado. Lá dentro, com uma toalha na mão e nada mais sobre a pele estava Susana, resplandecente.
O seu olhar fixou-se nos seios redondos e lenta e desavergonhadamente desceu pela barriga até à púbis. Só então, ciente da sua indelicada curiosidade corou e ergueu o olhar até aos olhos da mulher que nua se mantinha à sua frente, sem sequer por um segundo se ter tentado cobrir. Segundos passaram que demoraram para sempre, enquanto Nuno pensava o que fazer, o que dizer, como sair daquela situação. Sabia apenas que não deveria manter-se assim.
- Desculpa... – disse após uma hesitação, demonstrando a sua intenção de sair.
- Nuno... – chamou Susana, já ele lhe virava as costas. – Espera. Entra.
O tom era suave mas determinado. Nuno escutou a ordem, parou e virou-se. Um passo bastou para Susana se chegar junto de si. Sentiu o seu cheiro acabado de se banhar. Sentiu a pele fresca a centímetros da sua. Sentiu dois seios como setas que o tinham por alvo.
- Mas...
- Shhh... – sussurrou. Com as duas mãos agarrou-lhe a face e puxou-a para si, beijando-lhe suavemente os lábios.
Nuno reagiu lentamente, retribuindo o beijo. Cautelosa e timidamente pousou as suas mãos na cintura desnuda. Um braço de Susana foi esticado e a porta da casa-de-banho fechou-se nas suas costas, como uma armadilha que se encerra. Uma armadilha na qual se lançaria de boa vontade. As mãos de Susana exploraram por baixo da sua camisola que animada de vontade própria voou para o chão.
No chão da pequena casa-de-banho perdeu a virgindade.
Dias antes, ainda o calor fazia suar as estopinhas, Jorge e Susana desapareceram logo após do almoço. Juntos apontaram a Norte e calcorrearam o caminho em direcção ao velho olival que ao longe restava abandonado numa propriedade vizinha. Quem os viu partir não evitou um sorriso compreensivo da necessidade de intimidade que cada vez era mais difícil de descobrir no Monte sobrelotado.
Regressaram ao cair da tarde, já os pardais faziam o seu chinfrim à volta das árvores onde pernoitavam. Vinham afastados, caminhando em silêncio e a passos largos. Quem os viu regressar não evitou um esgar de curiosa preocupação.
À hora de almoço, reunidos que estavam os treze à mesa, a vindima estava acabada e os projectos para a uva eram o tema de conversa. Um observador atento teria reparado que, não obstante a proximidade, em momento algum o olhar de Nuno e Susana se cruzou.
Seria assim nos dias seguintes. Luisa chegou a comentar como um resfriado de Verão calara o seu filho. No entanto, o silêncio de Nuno não expressava nenhuma doença do corpo mas apenas a incerteza do coração. E naquela cabeça adolescente fervilhavam luxúria e paixão, ao mesmo tempo que o medo, o remorso e a incapacidade de lidar com um episódio proibido tocavam em pano de fundo a pauta da insegurança.
O vento mudou e tornou-se mais presente. Rajadas fortes agitaram árvores dia e noite roubando as folhas com que se vestiam. Sem outro aviso nuvens negras e densas apareceram e taparam o sol cada dia mais envergonhado.
Em ambiente de festa fizeram a matança do porco, seguindo a tradição da preparação para o Inverno, abatendo quatro suínos. Os urros dos animais sob a faca que os sangrou gravaram-se na memória dos mais impressionáveis. Só Filipa e Sandra foram poupadas, mandadas que foram para longe do improvisado matadouro pastorear as ovelhas.
O primeiro animal tombou às mãos de Luis, experimentado na lide e desejoso de a ensinar para a poder partilhar e aliviar o sanguinário fardo. Tirando Jorge, ninguém quis experimentar. E por três vezes cravou fundo a longa faca enquanto os outros homens tentavam manter firme a amarração que tolhia os bichos que aos gritos se debatiam perante o seu algoz. O sucesso dos movimentos de Jorge foi comentado pela sua eficácia. Satisfeito disse:
- Se têm que morrer mais vale que seja logo, rápido e com o mínimo de dor. Não podemos ser incompetentes nesta missão.
Apesar de perdido num monte alentejano, Jorge mantinha o ar de surfista com que crescera. Cabelo comprido, muitas vezes preso com os óculos escuros que usava sobre a cabeça, pele morena de anos acumulados de sol, pernas arqueadas, muito magras mas bastante musculadas. Todo ele anunciava um centro de gravidade baixo, como que o convidando a equilibrar-se numa prancha em movimento sobre as ondas. O seu sorriso era escancarado e mostrava os dentes sem vergonha.
Depois da queima do pêlo e do desmanche das carnes Inês ensinou a preparar os enchidos que todos aprenderam a fazer. No meio da suja confusão de tal arte eram constantes os sorrisos de antecipação perante a tentação da carne que iria durar o resto do ano.
Quando caíram as primeiras chuvas, o monte estava preparado para o frio, o gelo, a água. Vinha aí o Inverno.
(continua)
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