7.12.08

Desertos (XIX)

(continuação)
18
REGRESSO

- Tivemos sorte.
- Sem dúvida.
- Nunca pensei que nos despachássemos tão depressa.
- Foi boa a ideia do quartel. Era, efectivamente, o local mais adequado para encontrarmos o que tínhamos em mente.
Num canto do quartel militar de Estremoz o boi ruminava umas ervas. A seu lado a carroça empilhava uma larga carga encimada por janelas que cobriam portas, tábuas e barrotes.
Um pavilhão pré-fabricado evidenciava a pilhagem das peças criteriosamente escolhidas por Mário que agora conversava com Jorge. Ainda havia um monte muito grande de material cuidadosamente empilhado junto ao muro defendido com arame farpado.
- Ainda assim temos aqui material para mais duas ou três viagens.
- Como seria bom ter uma carrinha a funcionar...
- Como seria bom ter um cigarro para o fumar. Quando andava nas obras qualquer paragem me dava um pretexto para acender um.
- Nunca fizeste uma cura?
- A minha cura foi deixar de ter dinheiro para comprar o tabaco cada vez mais raro. Foi guardar um maço para o futuro, para uma ocasião especial, e fumá-lo todo dois dias depois.
- Quando ainda trabalhava para a televisão andava o dia todo de um lado para o outro com a câmara numa mão e o cigarro na outra. Fumava que nem um desalmado. No dia em que me despediram deixei de fumar. Deixei de ter vontade de o fazer. De um dia para o outro, sem esforço. Acho que foi a tristeza.
- Triste é ainda hoje, anos passados, procurar o maço nos bolsos. Nunca consegui substituir o hábito. Tal como o café. As saudades que tenho da nicotina e da cafeína.
- Essa já não partilho. Nunca gostei de café. Nunca bebi café. A malta ia toda ao café e eu apenas acompanhava. Para mim o conceito da bica está associado ao vómito.
- Eu bebia cerca de seis bicas por dia. E de um momento para o outro o café desapareceu... deixou de se ver.
- Por deixar de ver... onde andam o pai e o filho?
- Foram dar uma volta pelos arredores, a ver se há alguma coisa a relatar.
- Mas já é noite.
- Não te preocupes. Vamos para dentro acender a lareira. O frio vai rachar à noite.
Entraram no edifício que escolheram para se acoitarem até ao dia seguinte. Era uma casa pequena, ideal para aquecer e se manter quente, que nos seus tempos áureos provavelmente albergara um ou dois oficiais. Pouco depois recolheram o boi para uma casa ao lado, resguardando-o também.
Quando Nuno e Vasco regressaram, correndo para junto do fogo que ardia seguro, Jorge questionou-os de imediato.
- Então, o que é que viram?
- Nada. Incrivelmente, nada.
- Estremoz é uma cidade fantasma, - completou Vasco, - pois não vimos ninguém na volta que demos. Diria que toda a gente partiu, seja para outra terra seja para outro mundo.
Rindo em altas gargalhadas Mário concluiu.
- Essa foi boa. Para o outro mundo. Será que os deixaram emigrar?
Os outros entreolharam-se sorrindo, sem perceber onde estava a piada que justificasse aquelas gargalhadas soltas.

- Sabes, pai, cada vez mais tenho a sensação que estamos sozinhos. Que já ninguém vive por estas bandas e que aquele grupo que vimos há dois meses foram os últimos habitantes de Portugal que alguma vez veremos.
- Estás a exagerar.
- Estou? Da última vez que vim a Estremoz com o Luis ainda vimos gente na cidade. Uns velhotes davam sinais de vida à terra, ao contrário de ontem. É um pouco assustador passear à noite como fizemos e não ver uma única luz em qualquer casa. Uma que fosse, duma vela ou duma lareira. Nada. A escuridão e o silêncio que presenciámos são aterradores.
“E aqui no caminho... Para além de não nos cruzarmos com ninguém, todas as estradas têm vegetação e terra a invadi-las. Ninguém passa por estes caminhos há muito tempo.
Tinham partido à primeira luz da madrugada para o regresso ao monte. A geada repousava por todo o lado criando manchas brancas como a neve. O boi reclamava do fardo e do frio, bufando grandes nuvens de vapor com a sua respiração, mas sentindo que regressava ao seu domínio, ao seu canto quente e seco, lá se lançou a passo lento mas firme, arrastando os materiais de construção recuperados no quartel. Vasco e o filho caminhavam ao lado do possante animal, conduzindo-o conversando para afastar a mente do frio.
- Não sejas tão negativo. Haverá, certamente, mais gente por aí. Lembra-te é que mesmo os velhotes da cidade tiveram que procurar um bocadinho de terra para cultivar as suas couves e batatas, senão morreriam à fome. Aqui para o Alentejo, longe da capital, se não produzires alimento estás feito ao bife. Nem é uma zona onde encontres alimento à disposição para o colher...
- Mas nós já agimos de forma tão estranha com medo dos outros que não conhecemos, ou sequer sabemos se existem. Andamos armados e tememos... sei lá o que tememos.
“Por exemplo, pai, se agora víssemos outro grupo a caminhar na nossa direcção o que é que fazias?
Depois de uma pausa reflexiva, Vasco respondeu.
- Pegava na arma e assegurava-me que a podia disparar rapidamente se fosse preciso.
- Exactamente. É isso que estou a dizer. Eu também iria procurar a pistola. Porque receio os desconhecidos. Como poderemos sobreviver assim? Como poderemos progredir, melhorar?
- Sabes, Nuno, acho que tens tido pouco trabalho.
- Como assim?
- Pensas demais. Caramba, agora até a mim deixas preocupado. Nunca pensara nisso assim. Mas faz sentido que sejas tu a colocar a questão. Com a tua idade deves ser tu a questionar o futuro, a questionar como poderás tu encontrar uma mulher, constituir uma família e assim contribuir para salvar a vida em sociedade.
- Mas não é nisso que penso agora, - respondeu Nuno de imediato recordando com saudade o corpo de Susana, - mas sim em saber se temos futuro, ou se regressaremos aos tempos do selvagem, que nem sempre será “bom”.
- Gostava de saber como não pensas nisso. Com a tua idade só pensava nas miúdas e na altura em que iria para a cama com uma.
- Não te preocupes com isso.
- Só deixei de pensar nisso depois... nem foi depois da primeira vez, mas sim depois da minha primeira namorada a sério e de ter sexo com regularidade.
- Pai, - apelou com ar arrepiado, - se não te importas deixamos essa conversa de lado, está bem? Há certas coisas que não estou com vontade de partilhar...
“Por agora tenho andado muito ocupado a tentar perceber a nossa situação, a dar-lhe um sentido, e encontrar-lhe um futuro. Sim, o meu futuro. Quanto às mulheres, contigo era mais difícil de as esquecer pois que seguramente te cruzavas com elas a toda a hora. Eu não vejo um par de pernas desconhecidas há dois anos, não é?
- Está bem. Tens razão. Mas para mim acho que temos mesmo que pensar nas coisas aos poucos, fazer projectos um a um e ver em que pé vão andando as coisas. Agora concentramo-nos nas obras. Amanhã logo se vê.
- Não é chamar-te velho... mas esse conformismo não encai...
- Parem todos! – foi a voz de comando que Jorge, que seguia mais à frente, lançou a todo o grupo, interrompendo a conversa.
Obedecendo de imediato, Mário deteve o boi e quedou-se imóvel. Vasco fez saltar a caçadeira do ombro para as duas mãos, agarrando-a com firmeza. Jorge, lentamente, foi baixando a mão direita que levantara para dar mais força à sua ordem. Mostrava-se concentrado, focando o olhar num ponto adiante.
- Ouvi qualquer coisa. – sussurrou para trás enquanto se acocorou. Vasco, devagar, avançou juntando-se-lhe. A estrada em que seguiam estava agora mais estreita à medida que os arbustos que cresciam na berma se espraiavam para o alcatrão. À sua frente desenhava-se uma curva à direita cuja visibilidade era roubada pelos eucaliptos que a rodeavam.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- E o que era?
- Vegetação. Naquelas canas junto aos eucaliptos... está lá alguém.
- Não vejo nada.
- Duvidas?
- Não. Mas não vejo nem oiço nada. E não podemos ficar assim, neste impasse. Temos que avançar. – Vasco sentiu a respiração ofegante e a tensão muscular de Jorge. Alguma sugestão?
- E se é uma emboscada?
- E se não é?
- És doido, Vasco? Garanto-te que não quero ser emboscado.
- Vamos preparados. – disse afagando a caçadeira.
- Pois garanto-te que também estarei preparado. – Jorge afundou a mão dentro da sua mochila e daí tirou um pequeno machado corticeiro que guardava embrulhado em tela.
- Onde arranjaste tu isso?
- Que pergunta. Tu andas armado e eu vinha de mãos a abanar? Tirei-o do barracão.
Vasco encolheu os ombros e disse:
- Antes de avançar vou avisar o Nuno e o Mário.
Em segundos voltou para junto de Jorge e com um olhar decidiram avançar em direcção à curva, pausadamente, afastando-se um do outro. Ainda não tinham progredido sequer cinquenta metros quando as canas se agitaram de novo. Vasco ergueu a caçadeira ao ombro, apertando a bochecha na mesma. Apontando, gritou.
- Quem está aí?
Silêncio.
- Quem está aí? – repetiu. – Está aí alguém? – insistiu.
Sentiu-se um novo restolhar e mais silêncio. Jorge, ansioso, e porque estava mais próximo, junto à berma, pegou num calhau e lançou-o em arco para as canas agitadas.
Um grunhido assustou-os. De imediato um javali escuro, grande, com ar feroz, saltou para o alcatrão e começou a correr na direcção de Vasco. Grunhia ameaçador e avançava determinado.
A caçadeira troou três vezes numa rápida sequência, mas os cartuchos carregavam chumbo pouco grosso para caça tão pesada. Incapazes de parar a besta corredora, resvalaram na pele dura fazendo apenas ferimentos superficiais que ainda a enfureceram mais. Vasco começou a correr para o lado tentando esquivar-se ao animal que, não contente por ter afugentado quem o ameaçava, decidiu levar até ao fim a sua investida, apontando às pernas do homem da caçadeira. Jorge e Nuno avançaram em seu auxílio, gritando na tentativa de distrair a fera.
Perante a proximidade dos dentes trituradores, Vasco virou-se para os enfrentar, tentando pôr a coronha de permeio entre eles e as suas pernas. Mas o impacto do focinho foi tão violento que a caçadeira voou das suas mãos e se sentiu projectado para o chão.
O javali estacou e voltou atrás atacando de novo a presa agora caída com os joelhos por terra. Jorge lançou o seu pequeno mas cortante machado à cabeça do bicho mas, caprichosamente, o instrumento ao rodar pelo ar acabou por embater com o cabo sem causar qualquer ferimento. Largou um palavrão ao ver que não o detivera e avaliava o que mais fazer quando ouviu duas detonações.
Bang! Bang!
O javali foi lançado para o lado caindo. Junto aos olhos uma massa sangrenta revelava os impactos. A uma dúzia de metros Nuno segurava a Glock, braço direito estendido, mão esquerda apoiando o tiro e firmado o ombro direito, na perfeita posição que Luis lhe ensinara.
Os tiros ainda ecoavam, abafados pelos aflitivos grunhidos do animal em mortal sofrimento. Perante o olhar do seu pai, ofegante, de Jorge, boquiaberto, e de Mário, estático, empunhando um barrote que puxara da carroça como se fosse um taco de basebol, Nuno deu cinco passos e apontou a pistola. Disparou uma única vez, calando definitivamente o animal.
Enquanto devolvia a arma à mochila virou-se para o pai e perguntou, sem conseguir esconder que todo ele tremia de excitação com aquele pico de adrenalina.
- Estás bem?
- Sim... obrigado.
- Não te feriu?
- ... Não, não me atingiu. Que belos tiros... – comentou em tom baixo, ainda incrédulo e sem sequer completar a frase que lhe morreu nos lábios.
- Mas afinal tu tens uma pistola?
- Sim.
- E porque não mo disseste?
- Nunca perguntaste.
Jorge ficou sem saber o que dizer.
- Fico satisfeito por saber que o Luis fez bem em confiar em ti. Acabaste de salvar a vida ao teu pai. – disse Vasco abraçando o filho.
Jorge afastou-se falando sozinho palavras imperceptíveis. Mário aproximou-se do javali, ainda com o barrote na mão.
- E agora o que fazemos?
- Febras. – respondeu Vasco rindo de alívio – Carregamos esse javardo e vamos tentar chegar a casa ainda hoje para jantar. – depois, encaminhando-se para Jorge, agradeceu – Obrigado pela ajuda. Se não o tens visto a tempo... E por pouco não lhe espetaste o machado. - Teria sido mais fácil acabar com ele a tiro. – foi a resposta do antigo operador de câmara.
(continua)

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