2.12.08

Desertos (XIV)

(continuação)
13
PILHA-GALINHAS

Aos poucos Susana e Patrícia desenvolveram cumplicidades que as aproximaram, sendo frequentes as situações em que se juntavam para passar os poucos tempos livres que desencantavam. Num desses dias de frio seco do final de Outubro, Susana estava estacada ao sol, afastada da casa, olhando a calma superfície de água, na qual se vislumbravam os efeitos do suave vento que soprava inconstante. Era um vento gelado que queimava o nariz e as orelhas e convidava ao movimento. Porém, quando Patrícia se aproximou, encontrou uma estátua ameaçando congelar.
- Queres ficar uma pedra de gelo?
- Gosto do frio. Gosto de estar ao sol sem que este me consiga aquecer. Gosto deste ventinho cortante. E gosto da calma que sinto aqui, a olhar para esta massa de água.
- O que é que se passa contigo?
- Nada. Porque haveria de passar alguma coisa?
- Estás muito virada para dentro. Alguma coisa se passa que te faz ficar assim.
- Nada. Gosto disto.
- O que é que se passa entre ti e o Jorge?
- Porque insistes?
- Porque sou chata. E porque sei que algo não vai bem entre vocês os dois. Vejo-o com tanta clareza.
- O que queres que te diga? Que estamos zangados? Estamos. Nem tudo está bem.
- O que foi?
- Pouco está bem. Acho que o Jorge... que eu... nós não lidámos bem com esta vinda para aqui, com a falta de privacidade, com o facto de estarmos juntos a toda a hora.
- Se é só isso.
- Não é só isso. Aos pouco vou conhecendo-o melhor, e estou a descobrir uma pessoa demasiado complexa para conseguir lidar com ela. O Jorge não é fácil e eu também não.
Patrícia absteve-se de responder, convidando ao desabafo com o olhar. A luz do meio-dia ainda era amarela e fazia brilhar os seus louros cabelos. Enrolada em roupa Susana continuou, mantendo as mãos enfiadas nos bolsos e os ombros encolhidos.
- Quando estávamos em Lisboa, estávamos sozinhos. Eu dependia totalmente do Jorge, incapaz que me sentia sequer de me aventurar fora de portas. Ele sabia-se o meu protector e desempenhava o seu papel na perfeição. Agradecida eu via nele uma luz que se esbateu aqui neste monte.
“Aqui estou rodeada de gente boa, que não me atemoriza, e que conta comigo também. Aqui tenho um papel, estou integrada em algo mais amplo e sinto-me útil. Não preciso da protecção do Jorge como em Lisboa. Ele percebeu isso e agora há um conflito entre a sua necessidade de ser o protector e o meu desejo de autonomia. Há alturas em que o Jorge me abafa.
- Seguramente que com o tempo isso pode adaptar-se.
- Pois, só que agora nem tenho a compensação física. Adorava fazer amor com o Jorge e desde que aqui chegámos que isso não acontece. O nosso quarto só tem um beliche e ele range mais que uma locomotiva velha. E o Jorge tem estado... não sei... qualquer coisa aqui retirou-lhe o desejo.
- Caramba... aqui à volta há mil e um sítios onde podem ter privacidade. Agora de Inverno é mais difícil, mas no calor do Verão...
- Acho que o Jorge perdeu o domínio. Aqui já viu que quem manda é o Luis e que o Vasco é o seu lugar-tenente. Deve ser uma coisa daquelas dos machos alfa, ou assim.
- Então ele precisa de sentir o contrário. Precisa que a fêmea solte o animal que há nele. – o sorriso de Patrícia era maroto.
- Mas esta fêmea não está com muita vontade de fazê-lo.
- Não sei porquê. O Jorge é giro e, desculpa-me que to diga, é o único homem que aqui me convenceria a fazer o que quer que fosse.
Susana riu.
- Pois isso acontece... compreendo-te. Mas para além daquilo que vês há perturbações que ficam escondidas. Já não tenho paciência para elas. Preciso de algo mais simples. Ao pé do Jorge sinto-me muitas vezes velha, acabada.
- Então não sei o que te diga. Se pões um fim na relação vai desequilibrar tudo o que está tão arrumadinho neste grupo. A única solteira aqui sou eu, tirando as menores de idade. E solteiro, maior, só um homem que não olha para nós com qualquer interesse.
Um sorriso passou nos lábios de Susana no exacto momento em que se sentiu preparada para revelar o seu segredo.
- Há ainda o Nuno.
- O rapaz tem dezassete anos.
- Está quase nos dezoito. E hás-de concordar que por força das nossas circunstâncias de vida e da responsabilidade que abraçou, o Nuno tem amadurecido depressa e bem.
- E o que vais fazer? Atirares-te a ele?
A pausa sorrida disse tudo sem palavras.
- O que é que já fizeste?
Mordendo o lábio inferior, Susana ergueu as sobrancelhas e respondeu com um sorriso.
- “O que é que nós fizemos”, seria a pergunta. Sim. Fizemo-lo. Mas por favor...isso não se pode sequer sonhar.
- Mas como? Quando?
- No dia da vindima. Sem querer entrou na casa-de-banho estava eu a secar-me. E naquele momento... nem sei. Tomei a iniciativa e tudo aconteceu ali no chão.
- Tu és doida! Como é que?... Então e depois?
- Depois nada. Nem sequer dissemos nada. Quando acabámos pus o dedo à frente dos lábios e disse “Shhh”. Voltei para o duche e quando saí já ele lá não estava. Desde então temos estado..., cúmplices no silêncio.
- E agora?
- Agora não sei. O Nuno fez-me sentir desejada e sentir bem. Gostei do que fizemos, mas não sei se alguma vez poderemos ir mais além disto. Contudo, esta noção de que o mundo não congelou, que as relações ainda estão em condições de evoluir, modificar, faz-me pensar seriamente no que estou a fazer com o Jorge.
- Olha, amiga, o que te posso dizer é que tens muito mais sorte do que eu. E também te posso dizer que nem sinto o rabo de tanto frio que está aqui em cima. E se descêssemos para um chá?
Com um aceno Susana agarrou no braço de Patrícia e começaram a descer da pequena elevação em direcção ao barracão dos animais. Ao longe o vento empurrava nuvens negras que ameaçavam estragar a hora do jantar. Já perto da edificação ambas escutaram o alvoroço das galinhas aparentemente perturbadas e mais ruidosas que o habitual. Curiosas, decidiram ir espreitar.
Ao virar a esquina para a porta principal do barracão viram o vulto semi-curvado de escuro vestido. Alguém com uma camisola com capuz, que lhe cobria a cabeça, de roupa esfarrapada e suja punha-se em fuga com uma galinha inerte na mão, morta com o pescoço torcido.
Era um rapaz novo, que as sentiu e espreitou sobre o ombro quando começou a correr, deixando entrever umas grossas sobrancelhas e brilhantes olhos negros. Antes que conseguissem reagir já ele estava distante.
- EH!, volta aqui! Essa galinha é nossa!
- Agarra o gajo! Ladrão! Ladrão! – gritaram repetidamente.
O alarme chegou à casa e Luis foi o primeiro a sair, correndo na sua direcção.
- Luis, estava um gajo a roubar galinhas. Foi para ali! – apontou Patrícia.
Luis desviou a sua rota correndo na direcção indicada. Pelo caminho agarrou numa enxada desarrumada junto de um dos bebedouros do exterior. Desapareceu na primeira descida para voltar minutos mais tarde.
- Incrível..., mas mesmo com este horizonte com pouco relevo já não vi ninguém. Ou ele era muito rápido ou desapareceu no ar.
- Que idade tinha o sacana? – perguntou Jorge.
- Era mais novo que nós.
- E estava sozinho?
- Não vi mais ninguém. - voltou a responder Susana.
Naquele dia coubera a Nuno levar as ovelhas à procura dos verdes rebentos de pasto que floresceram às primeiras chuvas. Aproveitando o dia solarengo, Nuno afastava-se o mais que podia para preservar o pasto mais próximo para dias mais difíceis.
- O melhor é chamar o Nuno. – alvitrou Luisa.
- É melhor, é... Eu vou ao rádio.
- Ele não o levou hoje, - adiantou-se Inês, - porque ontem esqueceram-se do meter a recarregar e por isso não o quis levar.
- Então vou ter com ele. – decidiu Vasco.
Quando Inês e Luis se mudaram para o monte rapidamente se aperceberam das novas dimensões da sua vida, pelo que frequentemente se chamavam por telemóvel. Como tal não fazia sentido algum, compraram uns intercomunicadores recarregáveis que ainda duravam nos dias de hoje, e eram usados por quem mais se afastava da casa.
- Pelo sim pelo não leva a caçadeira.
- Bolas, Luis, lá estás tu com a merda das armas. – Disparou Rita. – Parece que queres resolver tudo a ferro e fogo.
- Não quero resolver nada, mas prevenir tudo.
Não chegou a ter resposta porque Vasco, muito rapidamente, tinha entrado na casa e saído com a arma na mão e partido a passos largos na direcção do minúsculo rebanho.
- Se calhar era melhor contar à Rita e a todos os outros o porquê dessas tuas cautelas com a caçadeira.
O olhar de Luis para Inês transmitiu o assentimento com a ideia. Reforçou o acordo:
- Para que não pensem que sou um pistoleiro, aproveito então para vos contar a história de Ti’ Zé e Ti’ Francisca.
À sua volta apertaram-se os restantes companheiros. As folhas das árvores agitaram-se com uma súbita rajada de vento, e o sol envergonhou-se com uma nuvem.
- Vocês ainda não tinham chegado. Só a Luisa, o Vasco e o Nuno estavam cá connosco...

Vasco sentiu a coronha firmemente pressionada de encontro ao ombro, por si abraçada como se fosse uma extensão natural do seu corpo. A mão esquerda sustentava a empunhadura de madeira fina e leve. A mão direita apontava todo o instrumento, enquanto o dedo indicador dominava o gatilho.
Alheou-se de tudo o mais à sua volta. Não ouviu nada nem ninguém. Não ouviu o vento, apesar do sentir e saber no seu íntimo de onde vinha, com que força, como iria influenciar o disparo.
- Vai! – foi a curta e seca expressão de comando, um baixo grito que deu a ordem para despoletar uma sequência de tiro.
Sucessivamente duas fortes molas responderam à sua direita. O cano da caçadeira elevou-se captando imediatamente os dois discos laranja que cruzavam o horizonte. Seguiu-os por ínfimos instantes e libertou duas descargas de chumbo.
As duas nuvens de pó alaranjado eram sinónimo de sucesso. Relaxou e ouviu o entusiasmo da audiência. Naquele dia de Fevereiro, havia dezasseis anos atrás, Vasco alcançou os mínimos para a prova de fosso olímpico dos Jogos Olímpicos.
Aceitou cumprimentos à esquerda e à direita. Meses depois ninguém o iria sequer receber ao aeroporto, quando regressou eliminado logo após a primeira ronda.

Vasco e Nuno regressaram acompanhados por Beja e Marvão que ajudavam a empurrar as poucas ovelhas e encontraram toda a gente amontoada no alpendre, silenciosa e apreensiva. A tarde chegava ao fim e, com ela um tecto escuro de nuvens apagou o céu, onde as estrelas e a lua não iriam aparecer naquela noite que pintaria de negro toda a paisagem.
- Então, novidades?
- Nada.
- Porque raio demoraram tanto?
- Não demorámos assim tanto, - respondeu Vasco -, mas os animais não ajudaram. E viemos a olhar para todo o lado com medo de alguma surpresa.
- Porque está toda a gente com essa cara? – perguntou Nuno.
- Contei-lhes de Ti’ Francisca e Ti’ Zé.
- Ah!, pois...
- Luis, o melhor é nos próximos dias mantermos alguém de guarda, deixar os cães alerta e alguém sempre por perto deles, atento e armado. – ao dizer isto Vasco olhou para Rita. Desta feita a sugestão não a chocou, arrepiada que ficara com os pormenores da história que ouvira pouco antes.
- É melhor, sim.
- O seguro morreu de velho. – corroborou Inês com uma pérola da sabedoria popular.
- E o desconfiado ainda é vivo.
- Hã...?
- E o desconfiado ainda é vivo, - repetiu Jorge, - É o fim do provérbio.
Vasco voluntariou-se.
- Organizem os turnos, de preferência curtos para não serem sofridos na madrugada, que eu faço já o primeiro. – ergueu a caçadeira que apoiou no ombro e, antes de se afastar da casa chamando Marvão ainda concluiu, - Já não tenho idade para estas merdas de ficar acordado a noite toda.

Passou-se um dia de chuva constante que tudo ensopou e enlameou. Pelas cinco da tarde, avizinhando-se nova noite de água e trovoada, já todo o grupo terminara as tarefas da jornada. Os animais estavam recolhidos nos seus poisos, as portas do barracão encerradas, os materiais arrumados.
No alpendre Pedro e Mário viam Vasco debaixo da velha oliveira, olhando o horizonte. Dentro em pouco a negra noite não deixaria mais nada para ver. Beja estava enrolada aos pés deles, no seco. Marvão parecia gostar mais da chuva e mantinha-se junto a Vasco, saindo da protecção dos ramos da árvore para as gotas de chuva que caíam espaçadas, alimentando o cheiro a pelo de cão molhado. Foi ele quem primeiro os sentiu.
As orelhas ergueram-se, estacou virado para o longo caminho de acesso e ladrou uma vez, forte como um trovão. Enquanto escutava o eco Vasco perguntou, sem esperar qualquer resposta.
- O que foi?
Ladrou de novo. Desta feita duas vezes, já Beja estava a seu lado após uma breve corrida. Também ela se concentrou no caminho e ladrou duas vezes.
Reconhecendo o inconfundível latido de alerta Luis saiu de imediato de casa e encaminhou-se para junto de Vasco e dos cães. Mário e Pedro seguiram-no. Luis olhou na direcção que os animais apontavam e com um gesto pediu-lhes silêncio. Os dois rafeiros alentejanos compreenderam que o seu dono estava já alertado e mantiveram-se em sentido sem repetir os latidos.
- Acho que vem lá alguém. – traduziu para os outros três.
- Que fazemos?
- Esperamos, Mário. Esperamos. Chega-te a caçadeira? – perguntou Luis a Vasco.
- Sabes bem que sim.
- À cautela vou buscar uma pistola.
Ficaram todos de olhos fixos no caminho.
(continua)

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